Linda Pastan – Fim da jornada

Que esforços fazemos para chegar à morte em segurança,
a bagagem intacta, cada filho contabilizado,
as feridas da travessia rapidamente curadas.
Consideramos os anos como paradas ao longo do caminho
de um longo voo em direção à catástrofe que
nos aguarda, pensando: finalmente livres e em casa.
Acene, acene com seu lenço para o fim da jornada;
desvie os olhos das janelas encardidas de crepúsculo
onde paisagens passam correndo, terríveis e encantadoras.

Trad.: Nelson Santander

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Journey’s End

How hard we try to reach death safely,
luggage intact, each child accounted for,
the wounds of passage quickly bandaged up.
We treat the years like stops along the way
of a long flight from the catastrophe
we move to, thinking: home free all at last.
Wave, wave your hanky towards journey’s end;
avert your eyes from windows grimed with twilight
where landscapes rush by, terrible and lovely.

Linda Pastan – Imortalidade

Meu pai dizia que ninguém realmente morre
até que não reste mais ninguém para
pensar neles.
Você vive de novo, dizia ele,
toda vez que alguém se lembra de você.

Eu era jovem demais na época para pensar
na morte dele, muito menos na minha.
Tudo o que eu conseguia pensar era naquele momento
em Peter Pan em que a plateia
aplaudia para manter a Sininho viva.

Minha mãe morreu há trinta anos,
e eu me lembro dela todos os dias:
seu bico de viúva1, seus lilases, o jeito como ela dizia
“Oh, querida…” quando minha vida dava errado.
Pai, raramente penso em você.

Será que o releguei a um purgatório
de esquecimento porque você punia
o que chamava de insolência
com dias de silêncio?
E, no entanto, aqui está você agora.

Trad.: Nelson Santander

  1. Expressão usada para a linha de cabelo que algumas pessoas apresentam em forma de “V” na parte frontal superior da testa ↩︎

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Immortality

My father said nobody really dies
until there’s no one left behind
to think of them.
You live again, he said,
each time someone remembers you.

I was too young then to believe
in his death, let alone in mine.
All I could think of was that moment
in Peter Pan the audience
clapping to keep Tinker Bell alive.

My mother has been dead now thirty years,
and I remember her every day:
her widow’s peak, lilacs, the way she said
“Oh, sweetheart…” when my life went wrong.
Father, I seldom think of you.

Have I consigned you to a purgatory
of neglect, and is it because you punished
what you called insolence
with days of the silent treatment?
And yet, here you are now.

Nelson Santander – Apresentando Linda Pastan

Em 30 de janeiro de 2023, falecia a poeta Linda Pastan, vencedora do Prêmio Dylan Thomas, entre outros, e ex-poeta laureada de Maryland (1991-1995). Ela tinha 90 anos e morreu devido a complicações após uma cirurgia para o tratamento de um câncer.

Autora de mais de 15 livros de poesia desde o início dos anos 70, Linda escrevia sobre temas aparentemente banais e comuns – família, maternidade, casa, natureza – além de de outros mais profundos, como perda, mortalidade, identidade e o impremeditado.

Sua poesia lírica é marcada por uma abordagem absolutamente original desses temas. Similar à poeta polonesa Wislawa Szymborska, os poemas de Pastan frequentemente revelam o extraordinário nos acontecimentos insuspeitos da vida cotidiana. Seu olhar aguçado se estende a tudo o que lhe desperta curiosidade – de um quadro ou uma escultura a um fato banal que, retrabalhado a partir de sua lente apurada, revela o que está por trás do óbvio, que quase todos parecem ignorar. Pastan explora a passagem do tempo e a inevitabilidade da perda, temas recorrentes em sua obra, sempre tratados com uma percepção única, onde o usual muitas vezes se mistura ao épico:

O último tio está partindo
em sua nau fúnebre (…)
após trancar
as portas atrás de si
para toda uma geração.

E veja: somos os mais velhos agora,
com nossos rotos retalhos
de história, solitários
na costa não mapeada
deste século novo e cru.

(“O último tio”)

O humor e a ironia também permeiam muitos de seus poemas, servindo como lentes que transformam experiências pessoais em universais. Tem método: ao criar um distanciamento sutil do eu lírico, ela permite que o leitor se reconheça nas nuances da vida, mesmo em temas mais sombrios.

Ao olhar judicioso que estende sobre os fatos da existência e as contradições humanas, Pastan acrescenta a madura ironia da observadora experimentada (e talvez por isso, descrente), mesclada com um humor admiravelmente inteligente. Como no poema Graça, por exemplo, em que ela parece se valer da velha máxima de que não existe ateu em avião caindo para alcançar o efeito cômico dos últimos versos, obtido a partir de um inusitado exercício de terceirização da fé pelo eu lírico:

Quando o jovem professor juntou
as mãos no jantar e falou com Deus
sobre a minha chegada em segurança
em meio à neve, agradecendo-Lhe também
pelo alimento que iríamos comer,
foi no tom de voz que eu costumo
usar para falar com meus amigos quando ligo
e sou atendida pela secretária eletrônica,
(…).
No dia seguinte, voando para casa
através de um céu tempestuoso
e assustador, eu soube
que invejava sua conexão com Deus
e desejei que suas preces
mantivessem meu avião no ar.

(“Graça”)

Os poemas de Pastan raramente resvalam para a melancolia. Seu tom é quase sempre menor, mas nunca desesperançoso. Mesmo quando um poema parece exalar uma certa angústia, ele nunca se coloca em um impasse, em um beco sem saída. Saídas há, é só prestar atenção ao que o mundo nos oferta:

Estou aprendendo a abandonar este mundo
antes que ele possa me abandonar.
(…)
Mas a manhã chega trazendo as pequenas
tréguas do café e o canto dos pássaros.
Uma árvore do lado de fora da janela,
que era apenas sombra momentos atrás
recolhe de volta seus galhos, ramo
por ramo frondoso.
E enquanto retomo meu corpo,
o sol pousa seu caloroso focinho em meu colo
como se quisesse se redimir.

(“Estou aprendendo a abandonar este mundo”)

Com sua lente singular, Pastan explora as complexidades da memória e da identidade, fazendo de sua poesia uma ode à beleza encontrada nas pequenas coisas da vida. Com uma sensibilidade aguçada, transforma momentos cotidianos em experiências poéticas intensas. Em seus versos, a morte é uma presença constante, mas é a vida, em toda sua fragilidade e beleza, que emerge vitoriosa:

Pode acontecer em um dia
de clima normal —
(…) Você pode estar alimentando o cachorro,
ou tomando uma xícara de chá,
e então: o telegrama;
ou o telefonema;
ou a dor aguda percorrendo
todo o comprimento do seu
braço esquerdo, ou do dele.
(…)
E enquanto você se deita na cama
como uma efígie de si mesmo,
é o ordinário
que vem salva-lo —
a xícara de chá de porcelana esperando
para ser lavada, o velhos cães
ganindo para sair.

(“O ordinário”)

Biografia

Linda Pastan, nascida Linda B Olenik em 27 de maio de 1932, no Bronx, Nova York, era filha de Jack e Bess Schwartz Olenick, ele cirurgião, ela, dona de casa. Com uma infância isolada devido à ocupação dos pais e à distância da escola, Pastan passou a ler constantemente e a escrever livros, histórias e poemas desde cedo. Aos 12 anos, começou a enviar trabalhos para a revista The New Yorker.

Seu pai desejava que ela fosse médica, o que a repugnava. No fim, não sem um tanto de rusgas e conflitos, ele acabou aceitando sua carreira literária. “Essa é a verdadeira ironia — o que me salvou foi ser uma menina. Ele finalmente disse: ‘Ah, bem, ela é apenas uma menina’. Se eu fosse um menino, seria médico. Não teria conseguido sair disso de jeito nenhum.”, afirmou Linda em uma entrevista. Pastan estudou no Radcliffe College e se formou em 1954, mas escreveu pouco durante a faculdade. “Harvard não dava ênfase ao trabalho dos alunos”, disse ela.

Nos anos 1950, sob pressão social para ser esposa e mãe perfeita, Pastan interrompeu sua escrita. “É difícil imaginar, se você não fazia parte daquela geração, a expectativa de que uma mulher se casasse imediatamente. Eu estava na faculdade, escrevendo uma tese, mas tinha de ir ao marketing, lavar a roupa e preparar o jantar. Meu marido estava na faculdade de medicina – ele não tinha um segundo para ajudar. Alguma coisa tinha de ser feita e a poesia foi sacrificada – eu simplesmente não tinha tempo.”

Em um dado momento, todavia, ela sentiu a necessidade de voltar a escrever. “Eu sabia que ser esposa e mãe não era o suficiente”, disse Pastan. “Acho que eu estava apenas entediada sem um desafio intelectual real. Bebês certamente eram gratificantes, mas não dessa forma”. Aos 32 anos, retomou a poesia e não parou mais.

Com um mestrado pela Brandeis University em 1957, Pastan lecionou na Bread Loaf Writers’ Conference por 20 anos, mas evitou empregos regulares de ensino para preservar sua energia criativa. Ela foi poeta laureada de Maryland de 1991 a 1995.

Pastan e a Crítica

Desde seu primeiro trabalho, A Perfect Circle of Sun, Linda Pastan se consolidou como uma voz marcante na poesia contemporânea. Sua escrita, marcada por uma elegância discreta e uma profunda sensibilidade, influenciou gerações de poetas, que encontraram em seus versos um convite à reflexão sobre a condição humana.

Quando do lançamento do primeiro livro, Thomas Lask, no The New York Times, observou: “Os poemas individuais em A Perfect Circle of Sun se encaixam tão bem no trabalho total e se complementam com tanto sucesso que é fácil acreditar que Linda Pastan concebeu um livro em vez de poemas individuais. Seus versos são curtos, claros e bem cortados no final. Não há fios soltos e a marcenaria não é visível”.

Quase 20 anos depois, ao resenhar outra obra de Pastan – The Imperfect Paradise – para o The New York Times, Bruce Bennett escreveu: “O domínio infalível de Pastan sobre seu ofício mantém a escuridão firmemente sob controle”. Os elogios continuaram duas décadas depois, quando o Christian Science Monitor elogiou Traveling Light: “Ela mostra que a poesia pode ser significativa, satisfatória, adorável – e deixar as pessoas se sentindo completas”.

Não obstante as resenhas positivas, Pastan costumava reclamar que os críticos muitas vezes não conseguiam captar a profundidade de seus temas. Termos como “cotidiano”, “doméstico” e “simplicidade” frequentemente aparecem nas resenhas, sugerindo uma superficialidade que ela contestava: “Realmente sinto que os críticos me acusam de escrever apenas sobre coisas bonitas e domésticas – e isso me deixa louca.” (…) “Quando os homens escrevem sobre coisas domésticas, são elogiados aos quatro ventos – vejam que pessoa humana e maravilhosa. Mas quando as mulheres o fazem, elas são realmente rebaixadas. Meus poemas podem ter superfícies domésticas, mas não é disso que se trata, e realmente me chateia sentir que não sou levada tão a sério como seria se fosse um homem”.

Em uma entrevista dada ao The PBS NewsHour após ganhar o Prêmio Ruth Lilly, Pastan explicou: “Sempre escrevi sobre o que está ao meu redor, como o ambiente aqui na floresta, mas sempre há algo mudando. Quando meus filhos eram pequenos, havia muitas crianças pequenas correndo pelos poemas. Quando os amigos e a família começaram a envelhecer e morrer, há muito mais escuridão e morte neles. Mas acho que sempre me interessei pelos perigos que estão sob a superfície, mas que parecem ser da vida doméstica simples e comuns. Pode parecer uma superfície lisa, mas há tensões e perigos bem embaixo, e é isso que estou tentando entender”.

Em seus poemas, personagens inspirados em sua própria experiência, como pais, filhos e marido, são frequentes. Personagens arquetípicos também aparecem repetidamente, como Penélope (a paciente esposa de Odisseu), e Eva, inspirada pelos jardins ao redor da casa de Pastan em Potomac, Maryland. Outrossim, sua poesia frequentemente explora, como visto, as nuances e o significado da vida doméstica ao recontar suas transações diárias como mãe, esposa, filha e poeta à luz de histórias e mitos mais antigos (especialmente bíblicos e clássicos). Sua ironia característica emerge da contraposição entre a banalidade do cotidiano familiar e as grandes narrativas que dominam a cultura, revelando uma crítica sutil às expectativas e aos valores sociais.

Conclusão

A poesia de Linda Pastan é um convite à reflexão sobre a complexidade da experiência humana. Com uma maestria singular, a poeta entrelaça o cotidiano e o transcendental, revelando a beleza que se esconde nas sombras da experiência humana. Seus versos, marcados por uma profunda sensibilidade e uma visão singular do mundo, oferecem ao leitor uma experiência estética única e enriquecedora.

A coletânea

Depois de traduzir vários dos poemas de Pastan para o blog ao longo dos anos, reconhecendo sua beleza e excelência, senti a necessidade de me aprofundar em sua obra. Pra isso, realizei um tour por todas as suas coletâneas – fixando-me especialmente nos poemas selecionados de PM/AM: New and Selected Poems. New York: Norton, 1982, e Carnival Evening: New and Selected Poems 1968–1998. New York: Norton, 1998, sem descuidar dos poemas mais recentes, publicados em The Last Uncle: Poems. New York: Norton, 2002, Queen of a Rainy Country: Poems. New York: Norton, 2006, Traveling Light. New York: Norton, 2011, Insomnia. New York: Norton, 2015 e A Dog Runs Through It. New York: Norton, 2018, seu último trabalho publicado. Ao longo dessa jornada, dediquei especial atenção aos poemas selecionados para esta coletânea, que considero representativos da sua poética madura e profunda.

Coletânea elaborada ao sabor das leituras, sem me preocupar muito com a ordem cronológica e dada a falta de tempo para pesquisar mais detidamente a cronologia das publicações, os poemas seguirão publicados no blog nessa (des)ordem. É certo, todavia, que os últimos a serem publicados se referem aos trabalhos mais recentes da poeta (de 2015 para cá). Serão 60 poemas, incluindo todos já publicados aqui no passado – a maioria em novas traduções.

Sobre a tradução, a suposta simplicidade formal dos poemas da autora, que em regra dispensam rimas, métricas e formas fixas, poderia sugerir que vertê-los para outra língua seria uma tarefa simples. Nada mais enganoso. Pastan não costuma encher seu trabalho com uma gramática rebuscada ou pseudointelectual; seus versos são ordinariamente curtos e seus poemas também. Porém, as palavras e expressões que usa em cada verso são precisamente aquelas que deveriam ser usadas. Uma vírgula a mais, seria muito. Um fonema a menos, insuficiente. As palavras, em toda sua riqueza de sons e significantes, são exatamente aquelas que devem estar ali, naquele exato ponto do texto poético. A tradução deve, o mais possível, observar essa característica (presente na poesia de todo grande poeta), e buscar, também em nossa língua, o vocábulo, a sintaxe, a lírica que melhor reflitam o sentido e o som do texto original. Espero que minha tradução tenha conseguido.

A partir de amanhã, e pelos próximas semanas, convido o leitor a se aventurar no mundo poético intimista e na lírica profunda e avassaladora de Linda Pastan. Estou certo de que essa jornada revelará a riqueza e a complexidade de sua poesia, deixando uma impressão duradoura em todos que se dispuserem a acompanhá-la. Não, você não vai se arrepender.

Laura Foley – A transformação

Retornamos à mercearia
onde um dia imaginamos
fazer amor pelos corredores
entre as mangas, kiwis
e abacaxis,
mas mal ousamos sorrir,
embora eu a prenda com um olhar,
enquanto carregamos uma caixa
de famotidina, frascos
de desinfetantes para as mãos
e água esterilizada,
nossos beijos contidos
como brotos verdes
ou promessas por vir –
ela não quer me passar
as drogas da químio,
e eu não desejo transmitir-lhe
um resfriado,
e assim seguimos, transformadas
de recém-casadas risonhas
em esposas experientes
que se apoiam uma na outra,
percorrendo os corredores,
escolhendo kiwis maduros e doces,
e queijo da Espanha, para deleite,
empurrando um pesado carrinho de compras –
depois de limpar
cuidadosamente sua alça.

Trad.: Nelson Santander

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The change

We return to the store
where once we imagined
making love in the aisles
between the mangos, kiwis
and pineapples,
but barely dare a smile,
though I hold her with a look,
as we load a case
of famotidine, tubs
of hand sanitizer
and sterilized water,
our kisses held back
like green buds
or promises to come –
she doesn’t want
to pass the chemo drugs onto me,
I don’t want
to give her a cold,
and so we go, morphed
from giggling honeymooners
into seasoned wives
who lean on each other,
strolling along corridors,
choosing sweet ripe kiwis,
cheese from Spain, for treats,
pushing a heavy shopping cart –
having carefully
wiped the handles clean.

Attila József – Dói demais

A morte atenta
de dentro e fora te afugenta
(ratinho oculto com receio)

e, enquanto arderes,
vais procurar junto às mulheres
refúgio em braço, joelho e seio.

Mais que o calor
do colo afável, mais que o ardor,
precisar muito é que te apressa;

assim, quem quer
que possa abraça uma mulher
até que a boca empalideça.

Fardo supremo
é ter que amar, mas sumo prêmio.
Quem ama e não encontra um par

é, na miséria
de seu desterro, como a fera
desamparada ao defecar.

Outras guaridas
não há, mesmo que armado agridas
a própria mãe, homem ousado!

Só que houve, um dia,
uma mulher que me entendia
e, ainda assim, me pôs de lado.

Sou pária em meio
da espécie. Ornando-se de anseio
e angústia, zumbe-me a cabeça:

seu som contínuo,
que nem chocalho que um menino
chacoalhe ao ficar só, não cessa.

Como se opor
e o que fazer em seu favor?
Se o descobrir não me envergonho.

Está provado
que o próprio mundo põe de lado
quem trema ao sol e tema o sonho.

Toda a cultura
me foge tal qual, na ventura
alheia, a roupa cai do amante.

Mas, vendo a morte
caçoar-me, que ela nem se importe
e eu sofra só – não é o bastante?

Dói, ao recém-
nascido, o parto, e à mãe também.
Reduz-se a dor quando é conjunta.

Eu, se me esmero
cantando a dor, ganho dinheiro
e a mim a infâmia é que se junta.

Basta! – Garotos,
que vossos olhos ceguem rotos
onde, por perto dela, andais.

Vós, inocentes,
gritai sob botas inclementes,
dizendo-lhe que dói demais.

Cães adestrados,
sede na rua atropelados
a lhe ganir que dói demais.

E vós, gestantes,
não deis à luz, abortai antes
e lhe chorai que dói demais.

Gente sadia,
adoecei e, na agonia,
lhe sussurrai que dói demais.

Homens que houver
se engalfinhando por mulher,
não silencieis que dói demais.

Cavalos, touros,
à espera dos jugos vindouros,
gemei castrados: dói demais.

Peixes nadando
mudos sob gelo, arfai-lhe quando
o anzol fisgar-vos: dói demais.

Tudo de vivo
que a dor aflige sem alívio,
queime-se a terra que habitais-

vinde tisnados
e, junto à cama dela, aos brados,
bramai comigo: dói demais.

Que saiba disso
a vida toda: por capricho,
ela negou-se por inteiro,

mandando embora
um ser em fuga dentro e fora
de seu refúgio derradeiro.

Trad.: Nelson Ascher

Peguei aqui: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il1004201111.htm

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 23/05/2020

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Nagyon Fáj

Kivül-belől
leselkedő halál elől
(mint lukba megriadt egérke)
amíg hevülsz,
az asszonyhoz ugy menekülsz,
hogy óvjon karja, öle, térde.

Nemcsak a lágy,
meleg öl csal, nemcsak a vágy,
de odataszit a muszáj is –

ezért ölel
minden, ami asszonyra lel,
mig el nem fehérül a száj is.

Kettős teher
s kettős kincs, hogy szeretni kell.
Ki szeret s párra nem találhat,

oly hontalan,
mint amilyen gyámoltalan
a szükségét végző vadállat.

Nincsen egyéb
menedékünk; a kés hegyét
bár anyádnak szegezd, te bátor!

És lásd, akadt
nő, ki érti e szavakat,
de mégis ellökött magától.

Nincsen helyem
így, élők közt. Zúg a fejem,
gondom s fájdalmam kicifrázva;

mint a gyerek
kezében a csörgő csereg,
ha magára hagyottan rázza.

Mit kellene
tenni érte és ellene?
Nem szégyenlem, ha kitalálom,

hisz kitaszit
a világ így is olyat, akit
kábít a nap, rettent az álom.

A kultura
ugy hull le rólam, mint ruha
másról a boldog szerelemben –

de az hol áll,
hogy nézze, mint dobál halál
s még egyedül kelljen szenvednem?

A csecsemő
is szenvedi, ha szül a nő.
Páros kínt enyhíthet alázat.

De énnekem
pénzt hoz fájdalmas énekem
s hozzám szegődik a gyalázat.

Segítsetek!
Ti kisfiuk, a szemetek
pattanjon meg ott, ő ahol jár.

Ártatlanok,
csizmák alatt sikongjatok
és mondjátok neki: Nagyon fáj.

Ti hű ebek,
kerék alá kerüljetek
s ugassátok neki: Nagyon fáj.

Nők, terhetek
viselők, elvetéljetek
és sirjátok neki: Nagyon fáj.

Ép emberek,
bukjatok, összetörjetek
s motyogjátok neki: Nagyon fáj.

Ti férfiak,
egymást megtépve nő miatt,
ne hallgassátok el: Nagyon fáj.

Lovak, bikák,
kiket, hogy húzzatok igát,
herélnek, rijjátok: Nagyon fáj.

Néma halak,
horgot kapjatok jég alatt
és tátogjatok rá: Nagyon fáj.

Elevenek,
minden, mi kíntól megremeg,
égjen, hol laktok, kert, vadon táj –

s ágya körül,
üszkösen, ha elszenderül,
vakogjatok velem: Nagyon fáj.

Hallja, mig él.
Azt tagadta meg, amit ér.
Elvonta puszta kénye végett

kivül-belől
menekülő élő elől
a legutolsó menedéket.

1936. október-november

Dorianne Laux – A Fada dos Dentes

Eles pincelaram uma moeda com cola
e purpurina, entraram de pés
descalços, e sem me acordar
pintaram fileiras de delicadas pegadas
douradas em meus lençóis com um amor
tão silencioso que ainda não consigo ouvi-lo.

Minha mãe deve ter sido
uma beldade naquela época, sentada
à mesa da cozinha com ele,
uma brisa morna levantando suas
cortinas bordadas, esperando-me
adormecer.

É mais difícil de acreditar
nos anos que se seguiram, as mãos
fechadas em punhos, um chão
de pratos quebrados, ela fumando sem cessar
durante longos silêncios, ele
esburacando as paredes a socos.

Ainda me lembro dos vestidos
estampados dela, do táxi quadriculado dele, do dia
em que a encontrei no guarda-roupas
com uma faca de cozinha, da noite
em que ele chutou minha irmã nas costelas.

Ele vive sozinho no Oregon agora, morrendo
de uma rara doença óssea.
O rosto salpicado de cinzas, os tornozelos
inchados sob as meias de lã.

Ela trabalha como enfermeira no turno noturno,
chega em casa de manhã e me liga,
bebe sua cerveja escura e vai para a cama.

E eu ainda me pergunto como eles fizeram aquilo, deslizaram
aquela moeda sob o meu travesseiro, fizeram aquelas
pegadas perfeitas…

Sempre que a visito, pergunto de novo.
“Não sei”, diz ela, balançando, fechando
os olhos. “Ficamos tão surpresos quanto você”.

Trad.: Nelson Santander

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The Tooth Fairy

They brushed a quarter with glue
and glitter, slipped in on bare
feet, and without waking me
painted rows of delicate gold
footprints on my sheets with a love
so quiet, I still can’t hear it.

My mother must have been
a beauty then, sitting
at the kitchen table with him,
a warm breeze lifting her
embroidered curtains, waiting
for me to fall asleep.

It’s harder to believe
the years that followed, the palms
curled into fists, a floor
of broken dishes, her chain-smoking
through long silences, him
punching holes in his walls.

I can still remember her print
dresses, his checkered Taxi, the day
I found her in the closet
with a paring knife, the night
he kicked my sister in the ribs.

He lives alone in Oregon now, dying
of a rare bone disease.
His face stippled gray, his ankles
clotted beneath wool socks.

She’s a nurse on the graveyard shift,
Comes home mornings and calls me,
Drinks her dark beer and goes to bed.

And I still wonder how they did it, slipped
that quarter under my pillow, made those
perfect footprints…

Whenever I visit her, I ask again.
“I don’t know,” she says, rocking, closing
her eyes. “We were as surprised as you.”

Mary Oliver – O dia de verão

Quem criou o mundo?
Quem fez o cisne e o urso-negro?
Quem fez o gafanhoto?
Digo, aquele gafanhoto –
aquele que saltou da grama,
aquele que agora come açúcar na minha mão,
aquele que move as mandíbulas para frente e para trás, não de cima para baixo –
aquele que olha ao redor com seus olhos enormes e complexos.
Agora ele ergue os pálidos antebraços e lava a cara com cuidado.
Agora ele abre as asas e levanta voo.
Eu não sei ao certo o que é uma oração.
Eu sei como prestar atenção, como me prostrar
no chão, ajoelhar-me na grama,
como ser ociosa e abençoada, como caminhar pelos campos,
que é o que tenho feito o dia todo.
Diga-me, o que mais eu deveria ter feito?
No fim, tudo não morre – e muito cedo?
Diga-me, o que você planeja fazer
Com sua única selvagem e preciosa vida?

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 20/05/2020

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The Summer Day

Who made the world?
Who made the swan, and the black bear?
Who made the grasshopper?
This grasshopper, I mean –
the one who has flung herself out of the grass,
the one who is eating sugar out of my hand,
who is moving her jaws back and forth instead of up and down –
who is gazing around with her enormous and complicated eyes.
Now she lifts her pale forearms and thoroughly washes her face.
Now she snaps her wings open, and floats away.
I don’t know exactly what a prayer is.
I do know how to pay attention, how to fall down
into the grass, how to kneel in the grass,
how to be idle and blessed, how to stroll through the fields
which is what I have been doing all day.
Tell me, what else should I have done?
Doesn’t everything die at last, and too soon?
Tell me, what is it you plan to do
With your one wild and precious life?

Clint Smith – Para os dias mais difíceis

Algumas noites, após dias em que o mundo
parece ter despejado todo seu desespero sobre mim,
quando estou sobrecarregado por fardos que repousam
em meu corpo como um saco de sombras em tumulto,

encontro um lugar para assistir ao pôr do sol, enterro
meus pés em um solo que se renovou
milhões de vezes, ouço o som
das folhas enquanto elas decidem se

é hora ou não de descer de seus ramos.
É difícil descrever o conforto que se sente
ao estar com algo em que você confia que sempre estará
lá, algo em que pode contar para permanecer

familiar quando tudo parece estar errado. Como é
notável saber que tantos viram o mesmo
pôr do sol antes de você. Como o vento pode transportar
o pólen e deixá-lo em lugares onde nunca esteve.
Como as folhas sempre se transformam no solo

que então se transforma nas folhas novamente. Como talvez
não sejamos tão diferentes das folhas.
Como talvez também estejamos sempre renascendo
para ser algo mais do que já fomos.

Como talvez seja isso que acordar todas as manhãs signifique.
Um lembrete de que nascemos
dos mesmos átomos de cada planta e ave
e monte e mar ao nosso redor.

Trad.: Nelson Santander

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For The Hardest Days

Some evenings, after days when the world feels
like it has poured all of its despair onto me,
when I am awash with burdens that rests stop
my body like a burlap of jostling shadows,

I find a place to watch the sun set i dig
my feet into a soil that has rebirthed itself
a millions times over i listen to the sound
of leaves as they decide whether or not

it is time to descend from their branches.
It is hard to describe the comfort one feels
in sitting with something you trust will always be
there, something you can count on to remain

familiar when all else seems awry. How remarkable
it is to know that so many have watched the same
sun set before you. How the wind can carry
pollen and drop it somewhere it has never been.
How the leaves have always become the soil.

that then become the leaves again. How maybe
we are not so different from the leaves.
How maybe we are also always being reborn
to be something more than we once were.

How maybe that’s what waking up each morning is.
A reminder that we are born
of the same atoms as every plant and bird
and mountain and ocean around us.

Raúl Ferruz – Com os olhos bem abertos

Quando meu avô sorria depois de cada gole de água,
isso significava. Não sabes o que é beber o próprio mijo.
Quando desenhava uma parábola no ar que só ele via,
isso significava. Fogo cruzado.
Quando tapava o rosto para que não o víssemos chorar,
isso significava. Os alemães nos infligiram horrores.
Quando fechava a porta do banheiro para que não o víssemos mijar,
isso também significava. Os alemães nos infligiram horrores.
Um dia, estendeu os braços para mim, e isso significou. Estou morrendo.
Depois disso caiu no chão. E
morreu com os olhos bem abertos.
Encarando o céu inimigo.
Duas guerras depois.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 19/05/2020

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Con los ojos muy abiertos

Cuando mi abuelo sonreía después de cada sorbo de agua,
eso significaba. No sabes lo que es beber tu propia meada.
Cuando dibujaba una parábola en el aire que sólo él veía,
eso significaba. Fuego cruzado.
Cuando se tapaba la cara para que no pudiésemos verle llorar,
eso significaba. Los alemanes nos hicieron cosas horribles.
Cuando cerraba la puerta del baño para que no pudiésemos verle mear,
eso también significaba. Los alemanes nos hicieron cosas horribles.
Un día, me tendió los brazos, y eso significó. Me estoy muriendo.
Después de eso, se desplomó sobre el suelo. Y
murió con los ojos muy abiertos.
Mirando el cielo enemigo.
Dos guerras después.

W. H. Auden – À memória de W. B. Yeats

1
Ele se foi na hora morta do inverno.
Os arroios estavam gelados, os aeroportos quase desertos,
E a neve deformava estátuas públicas
O mercúrio desceu na boca do dia a morrer.
Oh os instrumentos todos concordam
O dia de sua morte foi um dia frio e escuro.

Longe de sua doença,
Os lobos percorriam as florestas sempre verdes,
Ia-se o rio agreste livre dos cais em moda;
E foi por vozes plangentes
De seus poemas afastada a morte do poeta.

Foi para ele, no entanto, a última tarde como ele próprio,
Uma tarde de enfermeiras e rumores;
As províncias de seu corpo rebelaram-se,
Esvaziaram-se as praças de sua mente,
O silêncio invadiu os seus subúrbios,
E cessou a corrente dos sentidos. Ele se transformou em seus admiradores.

Agora vai disperso por centenas de cidades,
E inteiramente entregue a afeições desconhecidas;
Para encontrar ventura em bosques diferentes,
E ser punido sob estranhos preceitos de consciência:
As palavras de um morto
Se modificam nas entranhas dos que vivem.

Mas na importância e no barulho de amanhã,
Quando os corretores rugirem como feras nos assoalhos da Bolsa,
E os pobres padecerem como estão acostumados,
E cada qual na cela de si próprio quase julgar-se livre,
Alguns milhares hão de pensar nesse dia,
Como num dia em que se fez algo um pouco diferente.

Oh todos os instrumentos concordam
O dia de sua morte foi um dia frio e escuro.

2

Você era tolo como nós: seu dom resistiu a tudo;
À paróquia de ricas mulheres, à decadência fisica,
À você mesmo, que a louca Irlanda machucou até à poesia.
Ela ainda vive com seu clima e em seu estado de demência,
Pois a poesia não faz nada suceder: apenas sobrevive
No vale de seus ditos onde executivos
Jamais se arriscariam; para o sul desce a correr
De ranchos solitários e sofrimentos vivos,
Cruas cidades em que cremos e morremos; sobrevive,
O
Uma boca, um modo de acontecer.

3
Terra, acolhe hóspede honroso;
William Yeats jaz em repouso:
Da Irlanda a jarra vazia
Descanse sem a poesia.

O tempo que é intolerante
Com os bravos e inocentes,
E despreza em poucos dias
As belas anatomias,

Adora a língua e perdoa
A quem a vida lhe doa,
Perdoa o medo, a altivez,
Deita-lhe as honras aos pés;

Perdoou com escusas tais
Kipling e seus ideais,
Perdoará Claudel também,
E este, que escreveu bem.

Ladram no sonho de breu
Os cães do mundo europeu,
E as nações vivas esperam,
Nos ódios que as dilaceram.

A intelectual desgraça
Em todo rosto ameaça,
E tranca-se e gela o mar
Da piedade em todo olhar.

Siga o poeta e se afoite
Nas profundezas da noite,
Com a voz irrefreada
A cantar nos persuada.

Com o cultivo das linhas
Da maldição crie vinhas,
Celebre o insucesso humano
No enlevo do desengano.

Na areia do coração
Solte a água de redenção
No dia aprisionador
Ao livre ensine o louvor.

Trad.: Paulo Vizioli

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In memory of W. B. Yeats

He disappeared in the dead of winter:
The brooks were frozen, the airports almost deserted,
And snow disfigured the public statues;
The mercury sank in the mouth of the dying day.
O all the instruments agree
The day of his death was a dark cold day.

Far from his illness
The wolves ran on through the evergreen forests,
The peasant river was untempted by the fashionable quays;
By mourning tongues
The death of the poet was kept from his poems.

But for him it was his last afternoon as himself,
An afternoon of nurses and rumours;
The provinces of his body revolted,
The squares of his mind were empty,
Silence invaded the suburbs,
The current of his feeling failed; he became his admirers.

Now he is scattered among a hundred cities
And wholly given over to unfamiliar affections,
To find his happiness in another kind of wood
And be punished under a foreign code of conscience.
The words of a dead man
Are modified in the guts of the living.

But in the importance and noise of to-morrow
When the brokers are roaring like beasts on the floor of the Bourse,
And the poor have the sufferings to which they are fairly accustomed,
And each in the cell of himself is almost convinced of his freedom,
A few thousand will think of this day
As one thinks of a day when one did something slightly unusual.

O all the instruments agree
The day of his death was a dark cold day.

II

You were silly like us; your gift survived it all:
The parish of rich women, physical decay,
Yourself; mad Ireland hurt you into poetry.
Now Ireland has her madness and her weather still,
For poetry makes nothing happen: it survives
In the valley of its saying where executives
Would never want to tamper, it flows south
From ranches of isolation and the busy griefs,
Raw towns that we believe and die in; it survives,
A way of happening, a mouth.

III

Earth, receive an honoured guest:
William Yeats is laid to rest.
Let the Irish vessel lie
Emptied of its poetry.

Time that is intolerant
Of the brave and innocent,
And indifferent in a week
To a beautiful physique,

Worships language and forgives
Everyone by whom it lives;
Pardons cowardice, conceit,
Lays its honours at their feet.

Time that with this strange excuse
Pardoned Kipling and his views,
And will pardon Paul Claudel,
Pardons him for writing well.

In the nightmare of the dark
All the dogs of Europe bark,
And the living nations wait,
Each sequestered in its hate;

Intellectual disgrace
Stares from every human face,
And the seas of pity lie
Locked and frozen in each eye.

Follow, poet, follow right
To the bottom of the night,
With your unconstraining voice
Still persuade us to rejoice;

With the farming of a verse
Make a vineyard of the curse,
Sing of human unsuccess
In a rapture of distress;

In the deserts of the heart
Let the healing fountain start,
In the prison of his days
Teach the free man how to praise.