Yehuda Amichai – Como a marca de nossos corpos

Como a marca de nossos corpos
Nem um sinal restará de que estivemos neste lugar.
O mundo se fecha atrás de nós,
A areia se recompõe.

Já se avizinha um futuro
Em que você não mais existe,
Já um vento sopra as nuvens
Que não choverão sobre nós.

E seu nome já está nas listas de passageiros de navios
E nos registros de hotéis
Nos quais nomes isolados
Entorpecem o coração.

As três línguas que conheço,
Todas as cores em que vejo e sonho:

Nada me ajudará.

Trad.: Nelson Santander, a partir da versão para o inglês vertida por Assia Gutmann

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Like our bodies’ imprint

Like our bodies’ imprint
Not a sign will remain that we were in this place.
The world closes behind us,
The sand straightens itself.

Dates are already in view
In which you no longer exist,
Already a wind blows clouds
Which will not rain on us both.

And your name is already in the passenger lists of ships,
And in the registers of hotels,
Whose names alone
Deaden the heart.

The three languages I know,
All the colors in which I see and dream:

None will help me.

Susana Cattaneo – Quando já não estiver…

Quem porá o pé
sobre a marca que o meu deixou?
Quem olhará estas árvores
onde meus olhos deixaram sinais?
Alguém ouvirá cantar um pássaro
que será outro.
Alguém respirará os mesmos pinheiros
de um verde mais cansado.
A vida será uma folha em branco
e não poderei timbrá-la com minha palavra.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 05/05/2020

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Cuando ya no esté…

¿Quién pondrá el pie
sobre la marca que dejó el mío?
¿Quién mirará estos árboles
donde mis ojos dejaron huellas?
Alguien oirá cantar un pájaro
que será otro.
Alguien respirará los mismos pinos
de un verde más cansado.
La vida será un papel en blanco
y no lo podré sellar con mi palabra.

Barbara Crooker – O luto

O luto

é um rio que atravessamos até chegar à outra margem.
Mas estou aqui, atolada no meio, com água dividindo-se
em torno dos tornozelos, seguindo rio abaixo
sobre pedras planas. Incapaz de levantar um pé,
de seguir em frente. Em vez disso, vou ficar aqui
nas águas rasas com a minha dor, nutrindo-a
como a um bebê rabugento, embalando-a nos braços.
Não quero que ela cresça, vá para a escola, se case.
A dor é minha. Sim, a luz do sol de outubro me envolve
em seu xale amarelo, e o ar é doce
como um Tokay dourado1. Na outra margem,
há maçãs, uvas, nozes,
e as pedras estão quentes com o sol.
Mas vou ficar aqui,
cada vez mais fria, até que cada centímetro
de minha pele esteja dormente. Não posso atravessar.
Pois, se o fizer, sua partida será definitiva.

Trad.: Nelson Santander

  1. Um vinho de sobremesa doce (licor), associado à região de Tokaj na Hungria. No poema, provavelmente simboliza uma memória de algo agradável e reconfortante para o falante. ↩︎

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Grief

is a river you wade in until you get to the other side.
But I am here, stuck in the middle, water parting
around my ankles, moving downstream
over the flat rocks. I’m not able to lift a foot,
move on. Instead, I’m going to stay here
in the shallows with my sorrow, nurture it
like a cranky baby, rock it in my arms.
I don’t want it to grow up, go to school, get married.
It’s mine. Yes, the October sunlight wraps me
in its yellow shawl, and the air is sweet
as a golden Tokay. On the other side,
there are apples, grapes, walnuts,
and the rocks are warm from the sun.
But I’m going to stand here,
growing colder, until every inch
of my skin is numb. I can’t cross over.
Then you really will be gone.

William Butler Yeats – A torre

1
O que farei com esta absurdidade,
Esta caricatura, coração?
Decrepitude atada à minha idade
Como à cauda de um cão?
Jamais terei sentido
Tão grande, tão apaixonada, tão incrível
A fantasia, nem houve olho e ouvido
Que mais quisessem o impossível –
Não, nem quando menino, com inseto e anzol,
Ou mais humilde verme, no alto de Ben Bulben,
Eu tinha a desfrutar todo um dia de sol.
Devo mandar às favas minha Musa,
Ter Platão ou Plotino por amigo,
Até que fantasia, olho e ouvido,
Cedam à mente e virem escalpelo
Da ideia abstrata; ou ser escarnecido
Por uma lata presa ao tornozelo.

2
Passo pelas muralhas e reconto
Os alicerces de uma casa e o ponto
Onde a árvore, como um dedo sujo, sai do chão,
E solto a imaginação.
À luz do dia declinante apelo às
Memórias e retinas
De antigas árvores ou ruínas –
Que eu gostaria de inquirir a todas elas.

Atrás do monte, Mrs. Frech viveu, e um dia –
Todos os castiçais e candeias que havia
A iluminar o mogno escuro e o vinho,
Um servidor que se fazia de adivinho
Dos caprichos da dama do condado
Com as tesouras do jardim cortou as
Orelhas de um granjeiro ousado
E as trouxe em prato recoberto, como broas.

Na juventude ouvi, mais de uma vez, a
Canção sobre uma bela camponesa
Que vivia num áspero recanto.
Louvavam sua tez e seu encanto
Lembrando que quando ela aparecia,
Ébrios da própria fantasia,
Os granjeiros juntavam-se na praça,
Tanto a canção gabava a sua graça.

Alguns, enlouquecidos com o canto
Ou com os brindes que a louvavam tanto,
Ergueram-se da mesa, decididos
A testar a miragem e os sentidos.
Mas um trocou a lua da poesia
Pela luz veraz do dia –
A música mexeu com o seu prumo,
No pântano de Cloone se foi, sem rumo.

Estranho, esta canção a fez um cego,
Mas, quanto mais eu penso, mais eu nego
Que seja estranho; a tragédia, considero,
Teve início com outro cego,
Homero, E Helena, que traiu a nós, viventes.
Ah, que da luz de sol e lua
Um único raio flua,
Pois se eu vencer, farei mentes dementes.

E eu mesmo criei Hanrahan
E o carreguei, bêbado ou não, pela manhã,
De um dos muitos chalés da vizinhança.
Às ordens de um ancião, como criança,
Trombou, tombou, tateou, pra lá, pra cá,
Joelhos rotos por compensação
E o horrível esplendor de uma paixão.
Coisas que imaginei há vinte anos já.

A turma carteava num canteiro;
E quando foi a vez do trapaceiro,
Ele tratou as cartas com tal arte
Que fez das suas um carteado à parte:
Cães de caça tomaram o lugar
Das cartas, e uma foi a lebre.
Hanrahan, em sua febre,
Seguiu-lhes o ladrido até chegar…

Até onde chegou não sei – já basta.
Devo lembrar alguém de alma tão gasta
Que nem a orelha do inimigo, exposta,
Nem a canção faria mais disposta.
Uma figura que virou legenda
E à qual não sobrou um só vizinho
Para contar-lhe as pedras do caminho –
Proprietário falido da vivenda.

Antes da perdição, por muitos anos,
Guerreiros rudes, botas couraçadas,
Mãos de ferro, subiram as escadas
Estreitas, e alguns deles que os arcanos
Da Memória preservam, imortais,
Com altos gritos, vista acesa,
Vêm-nos roubar o sono e a paz
E os seus dados ressoam sobre a mesa.

Invoco a todos, venha toda a gente:
O velho desmontado ou indigente;
O cego e errante arauto da beleza;
Hanrahan, que um jogral tomou por presa
Pelos campos sem Deus; e essa mulher
Que orelhas, mais que ouvidos, quer;
O afogado de amor por uma loa
Das Musas más na lama da lagoa.

Os velhos – ricos, pobres, homens ou mulheres -,
Que andaram por aqui, passaram esta porta,
Em público ou privado, acaso deblateram
Como eu contra a velhice, agora?
Mas encontrei uma resposta nesse clã
Tão impaciente para ir embora;
Pois vão; mas deixem-me Hanrahan,
Que eu necessito de sua múltipla memória.

Velho fauno, um amor em cada esquina
Extrai de tua mente toda a mina,
Tudo o que no sepulcro descobriste,
Pois sabes computar cada loucura,
Cada cega imersão, cada imprevisto
Sonho de ser que um suave olhar atrai,
Ou um toque ou um ai,
Ao labirinto de outra criatura.

Acaso a fantasia é compelida
À mulher ganha ou à mulher perdida?
Se à que perdeste, admite o teu esbulho:
Por mera covardia ou por orgulho,
Pseudoconsciência ou sutileza vaga,
Refugiste de um grande labirinto,
E se a memória volve o sol é extinto
Por um eclipse e o dia já se apaga.

3
É tempo do meu testamento.
Eu lego aos que ficam de pé
E vão contra a corrente até
O alto da fonte e cedo
Lançam o anzol, sem medo
Da pedra gotejante.
Lego O orgulho que carrego:
O orgulho dos que não têm fé
Na Causa ou no Estado,
Nem nos tiranos que escarravam
Nem nos escravos escarrados.
De gente como os Burke e Grattan
Que dá – recusando a recusa,
Orgulho como o da manhã
Quando a luz jorra profusa,
Ou o da cornucópia cheia
Ou da chuva que aflora
Quando o rio é só areia,
Ou o do cisne – na hora
Em que ele fixa o olhar
Num reflexo da aurora
Escolhendo um recanto
Do lago para alçar
O seu último canto.
Meu credo aqui proclamo.
Eu zombo de Plotino
E a Platão eu exclamo:
Morte e vida eram nada
Até o homem fazê-las
E lhes dar um destino
Com as armas e a carga
Da sua alma amarga.
Sim, sol e lua e estrelas.
Proclamo, sem receio,
Que, mortos, vamos retornar
Para criar o devaneio
De um Paraíso translunar.

Eu preparei a minha meta
Com a culta arte italiana,
Pedras da Grécia soberana,
Imagens de poeta,
Palavras de mulher,
Amor e desengano,
Tudo o que o homem quer
Para o seu sobre-humano
Sonho-espelho de ser.

No oco do tronco as gralhas
Gritam juntando a rama.
Galho após galho, empilham.
A ave-mãe com carinho
Ali fará sua cama
Para aquecer o ninho.

Eu lego o orgulho e a fé
Aos que ficam de pé,
Galgam o alto do monte
Para lançar o anzol
Na linha do horizonte.
Desse metal fui feito
Até ser alquebrado
Por este ofício estreito.

Preparo a alma, agora,
Votando-a ao estudo
Numa douta demora,
Até o fim de tudo.
Sangue que deteriora,
Desgaste da memória,
Estancamento mudo.
Ou, ainda pior,
A morte dos que outrora
Foram grandes, do olhar
Que fez sustar o alento –
Como as nuvens no ar
Quando o sol cai e um lento
Grito de ave ressoa
Na sombra que se escoa.

Trad.: Augusto de Campos

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 04/05/2020

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

The Tower

I
What shall I do with this absurdity-
O heart, O troubled heart-this caricature,
Decrepit age that has been tied to me
As to a dog’s tail?
Never had I more
Excited, passionate, fantastical
Imagination, nor an ear and eye
That more expected the impossible-
No, not in boyhood when with rod and fly,
Or the humbler worm, I climbed Ben Bulben’s back
And had the livelong summer day to spend.
It seems that I must bid the Muse go pack,
Choose Plato and Plotinus for a friend
Until imagination, ear and eye,
Can be content with argument and deal
In abstract things; or be derided by
A sort of battered kettle at the heel.

II
I pace upon the battlements and stare
On the foundations of a house, or where
Tree, like a sooty finger, starts from the earth;
And send imagination forth
Under the day’s declining beam, and call
Images and memories
From ruin or from ancient trees,
For I would ask a question of them all.

Beyond that ridge lived Mrs. French, and once
When every silver candlestick or sconce
Lit up the dark mahogany and the wine,
A serving-man, that could divine
That most respected lady’s every wish,
Ran and with the garden shears
Clipped an insolent farmer’s ears
And brought them in a little covered dish.

Some few remembered still when I was young
A peasant girl commended by a song,
Who’d lived somewhere upon that rocky place,
And praised the colour of her face,
And had the greater joy in praising her,
Remembering that, if walked she there,
Farmers jostled at the fair
So great a glory did the song confer.
And certain men, being maddened by those rhymes,
Or else by toasting her a score of times,
Rose from the table and declared it right
To test their fancy by their sight;
But they mistook the brightness of the moon
For the prosaic light of day-
Music had driven their wits astray-
And one was drowned in the great bog of Cloone.

Strange, but the man who made the song was blind;
Yet, now I have considered it, I find
That nothing strange; the tragedy began
With Homer that was a blind man,
And Helen has all living hearts betrayed.
O may the moon and sunlight seem
One inextricable beam,
For if I triumph I must make men mad.

And I myself created Hanrahan
And drove him drunk or sober through the dawn
From somewhere in the neighbouring cottages.
Caught by an old man’s juggleries
He stumbled, tumbled, fumbled to and fro
And had but broken knees for hire
And horrible splendour of desire;
I thought it all out twenty years ago:

Good fellows shuffled cards in an old bawn;
And when that ancient ruffian’s turn was on
He so bewitched the cards under his thumb
That all but the one card became
A pack of hounds and not a pack of cards,
And that he changed into a hare.
Hanrahan rose in frenzy there
And followed up those baying creatures towards-

O towards I have forgotten what -enough!
I must recall a man that neither love
Nor music nor an enemy’s clipped ear
Could, he was so harried, cheer;
A figure that has grown so fabulous
There’s not a neighbour left to say
When he finished his dog’s day:
An ancient bankrupt master of this house.

Before that ruin came, for centuries,
Rough men-at-arms, cross-gartered to the knees
Or shod in iron, climbed the narrow stairs,
And certain men-at-arms there were
Whose images, in the Great Memory stored,
Come with loud cry and panting breast
To break upon a sleeper’s rest
While their great wooden dice beat on the board.

As I would question all, come all who can;
Come old, necessitous, half-mounted man;
And bring beauty’s blind rambling celebrant;
The red man the juggler sent
Through God-forsaken meadows; Mrs. French,
Gifted with so fine an ear;
The man drowned in a bog’s mire,
When mocking muses chose the country wench.

Did all old men and women, rich and poor,
Who trod upon these rocks or passed this door,
Whether in public or in secret rage
As I do now against old age?
But I have found an answer in those eyes
That are impatient to be gone;
Go therefore; but leave Hanrahan,
For I need all his mighty memories.

Old lecher with a love on every wind,
Bring up out of that deep considering mind
All that you have discovered in the grave,
For it is certain that you have
Reckoned up every unforeknown, unseeing
Plunge, lured by a softening eye,
Or by a touch or a sigh,
Into the labyrinth of another’s being;

Does the imagination dwell the most
Upon a woman won or woman lost?
If on the lost, admit you turned aside
From a great labyrinth out of pride,
Cowardice, some silly over-subtle thought
Or anything called conscience once;
An that if memory recur, the sun’s
Under eclipse and the day blotted out.

III
It is time that I wrote my will;
I choose upstanding men
That climb the streams until
The fountain leap, and at dawn
Drop their cast at the side
Of dripping stone; I declare
They shall inherit my pride,
The pride of people that were
Bound neither to Cause nor to State,
Neither to slaves that were spat on,
Nor to the tyrants that spat,
The people of Burke and of Grattan
That gave, though free to refuse-
Pride, like that of the morn,
When the headlong light is loose,
Or that of the fabulous horn,
Or that of the sudden shower
When all streams are dry,
Or that of the hour
When the swan must fix his eye
Upon a fading gleam,
Float out upon a long
Last reach of glittering stream
And there sing his last song.
And I declare my faith:
I mock Plotinus’ thought
And cry in Plato’s teeth,
Death and life were not
Till man made up the whole,
Made lock, stock and barrel
Out of his bitter soul,
Aye, sun and moon and star, all,
And further add to that
That, being dead, we rise,
Dream and so create
Translunar Paradise.
I have prepared my peace
With learned Italian things
And the proud stones of Greece,
Poet’s imaginings
And memories of love,
Memories of the words of women,
All those things whereof
Man makes a superhuman
Mirror-resembling dream.

As at the loophole there
The daws chatter and scream,
And drop twigs layer upon layer.
When they have mounted up,
The mother bird will rest
On their hollow top,
And so warm her wild nest.

I leave both faith and pride
To young upstanding men
Climbing the mountain side,
That under bursting dawn
They may drop a fly;
Being of that metal made
Till it was broken by
This sedentary trade.

Now shall I make my soul,
Compelling it to study
In a learned school
Till the wreck of body,
Slow decay of blood,
Testy delirium
Or dull decrepitude,
Or what worse evil come-
The death of friends, or death
Of every brilliant eye
That made a catch in the breath-
Seem but the clouds of the sky
When the horizon fades;
Or a bird’s sleepy cry
Among the deepening shades.

Jeffrey Harrison – Um gole de água

Quando meu filho de dezenove anos abre a torneira da cozinha,
e se inclina sobre a pia, virando a cabeça de lado
para beber diretamente do jato de água fresca,
eu penso no meu irmão mais velho, agora quase dez anos ausente,
que costumava fazer o mesmo nessa idade;

e quando ele ergue a cabeça de volta e, saciado,
enxuga a água que escorre da face
com a manga da camisa, é o mesmo gesto casual
que meu irmão costumava fazer; e eu não lhe digo
para usar um copo, como nosso pai fazia com meu irmão,

porque gosto de me lembrar do meu irmão
quando ele era jovem, décadas antes de algo
dar errado, e gosto do jeito como meu filho
se torna um pouco mais meu irmão por um momento
com este pequeno hábito nascido de uma necessidade simples,

que, natural e espontânea, os une
além dos limites da morte, e através do tempo…
como se o jato límpido fluísse entre dois mundos
e entrasse neste pela torneira da cozinha,
meu filho e meu irmão bebendo a mesma água.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

A drink of water

When my nineteen-year-old son turns on the kitchen tap
and leans down over the sink and tilts his head sideways
to drink directly from the stream of cool water,
I think of my older brother, now almost ten years gone,
who used to do the same thing at that age;

and when he lifts his head back up and, satisfied,
wipes the water dripping from his cheek
with his shirtsleeve, it’s the same casual gesture
my brother used to make; and I don’t tell him
to use a glass, the way our father told my brother,

because I like remembering my brother
when he was young, decades before anything
went wrong, and I like the way my son
becomes a little more my brother for a moment
through this small habit born of a simple need,

which, natural and unprompted, ties them together
across the bounds of death, and across time …
as if the clear stream flowed between two worlds
and entered this one through the kitchen faucet,
my son and brother drinking the same water.

Laurie Lee – A sombra abandonada

Percorrendo a sombra abandonada
das habitações da minha infância,
meus ouvidos relembram o badalar,
ouvindo suas vozes soterradas.

Ouço o verão primordial,
as margens da aurora iluminadas por aves,
o pulsar de sangue da escrevedeira-amarela
dourando meus olhos de berço.

Ouço a lua-de-estanho subir
e a moeda do crepúsculo cair,
o rastejar da geada e o gemido
do degelo e o pio dos piscos no inverno.

Ouço novamente a casa falante
e as quatro vogais do vento,
e o sussurrar dos monstros da meia-noite
na lívida garganta do meu quarto.

Liturgia das estações e da paisagem,
o texugo e a persistência da chuva,
o trissar dos morcegos e o salto dos
coelhos borbulhando sob a colina:

Cada língua antiga e ecoada
canta para o meu olhar que recua,
mas a voz do menino, o menino que procuro,
na minha boca está muda.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 01/05/2020

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

The abandoned shade

Walking the abandoned shade
of childhood’s habitations,
my ears remembering chime,
hearing their buried voices.

Hearing original summer,
the birdlit banks of dawn,
the yellow-hammer beat of blood
gilding my cradle eyes.

Hearing the tin-moon rise
and the sunset’s penny fall,
the creep of frost and weep of thaw
and bells of winter robins.

Hearing again the talking house
and the four vowels of the wind,
and midnight monsters whispering
In the white throat of my room.

Season and landscape’s liturgy,
badger and sneeze of rain,
the bleat of bats, and bounce of rabbits
bubbling under the hill:

Each old and echo-salted tongue
sings to my backward glance;
but the voice of the boy, the boy I seek,
within my mouth is dumb.

Philip Roth – Patrimônio (excerto)

“Quando se visita uma sepultura, todo mundo tem pensamentos mais ou menos iguais, que, abstraída a questão da eloquência, não diferem muito daqueles que Hamlet expressou ao contemplar o crânio de Yorick. Há muito pouco para se pensar ou dizer que não seja uma variante de “Ele me carregou nos ombros mil vezes”. Num cemitério, a gente costuma se dar conta de como são limitados e banais nossos pensamentos sobre o assunto. Ah, pode-se tentar conversar com o morto, caso você acredite que isso possa ser útil; pode-se começar, como fiz naquela manhã, dizendo: “Muito bem, mamãe…”, porém é difícil não pensar – mesmo que se tenha ido além da primeira frase- que você poderia, do mesmo modo, estar conversando com a coluna vertebral pendurada no consultório de alguma osteopata. Você pode fazer promessas a eles, pô-los a par das últimas notícias, implorar que o compreendam, que o desculpem ou que lhe deem seu amor – ou pode optar por uma abordagem oposta, mais efetiva, arrancando as ervas daninhas, ajeitando os cascalhos, passando o dedo pelas letras gravadas na lápide; pode até se abaixar e pôr as mãos diretamente sobre os vestígios deles – tocando a terra, a terra deles, pode fechar os olhos e recordar-se de como eram quando ainda estavam ao seu lado. Mas nada se modifica com tais recordações, exceto que os mortos parecem ainda mais distantes e fora do alcance do que estavam quando você dirigia o carro dez minutos antes. Se não há ninguém no cemitério para observá-lo, você pode fazer algumas coisas bem doidas a fim de conseguir que os mortos pareçam algo mais do que são. Mas, mesmo que você tenha êxito e se motive suficientemente para sentir a presença deles, ainda assim irá embora sem eles. O que os cemitérios provam, ao menos para gente como eu, não é que os mortos estão presentes, mas que se foram de vez. Eles se foram, enquanto nós, por enquanto, não fomos. Isso é fundamental e, embora inaceitável, bem fácil de compreender.”

Trad.: Jorio Dauster

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

José Miguel Silva – Tudo coisas mortais para a poesia

A casa, o lume, o sono dobrado
do corpo feliz, a cesta de figos,
a curva do rio, a fotografia
no cimo do monte, a veracidade
das glicínias, o rosto da mãe,
a fava no bolo, o trunfo de copas,
o filme da tarde, a música nova,
o rasto da chuva por entre os pinheiros,
as aves que voltam, os dias que passam
perto de nós.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 09/04/2020

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Donald Justice – Ponto de Ônibus

Luzes ardem
Em salas silenciosas
Onde vidas continuam
Tais quais as nossas.

As vidas tranquilas
Que nos acompanham —
Essas vidas que levamos
Mas não possuímos —

Permanecem na chuva
Tão silenciosamente
Quando partimos,
Tão silenciosamente…

E o último ônibus
Chega despejando
Guarda-chuvas escuros —
Flores escuras, flores escuras.

E as vidas continuam.
E as vidas continuam
Como luzes repentinas
Nas esquinas

Ou como as luzes
Em salas silenciosas
Deixadas acesas por horas,
Ardendo, ardendo.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Bus Stop

Lights are burning
In quiet rooms
Where lives go on
Resembling ours.

The quiet lives
That follow us—
These lives we lead
But do not own—

Stand in the rain
So quietly
When we are gone,
So quietly . . .
And the last bus
Comes letting dark
Umbrellas out—
Black flowers, black flowers.

And lives go on.
And lives go on
Like sudden lights
At street corners

Or like the lights
In quiet rooms
Left on for hours,
Burning, burning.

Juan Vicente Piqueras – Lençóis herdados

A ferida mais íntima é herdada.

O onde, o como, o quando,
a morte, o nascimento,
língua, família, deus, tempo, amor:
o decisivo do que nos acontece,
e quem somos,
não é algo desejado nem escolhido.

E passamos a vida, a despeito disso, ou por isso,
crendo que o desejo é nosso deus,
e não uma rosa rara que em nós cultiva
o acaso
que nos guia, nos cega e nos ignora.

Ninguém escolheu o mundo em que nasceu.
Nem sequer seu nome, sua memória.

O importante se impõe, não se escolhe.

E no entanto somos seres livres
para escolher entre dar e destruir
o que temos, deseja-lo, ama-lo
mais do que o que não há, lutar sem mundo,
aceitar o que ocorre e trabalhar
duro para que ocorra
o que de todo modo vai ocorrer.

Não há mais sabedoria ou remédio
que amar a vida mais que o seu sentido
e deixar-se levar pelas águas indomáveis
de estar aqui e, assim, com sede de partir,
de escolher o que há e, ai de nós,
ser quem somos, pródigos, saber
que não temos mais que o que damos.

Chamamos liberdade a esta tarefa
minuciosa e secreta de bordar,
manchar, romper, lavar, estender, dobrar,
guardar no armário, entre folhas de marmelo,
lençóis herdados da avó
que por sua vez herdou da sua, um estranho enxoval
para essa solidão que me desposou.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 09/04/2020

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Sábanas Heredadas

La más íntima herida es heredada.

El dónde, el cómo, el cuándo,
la muerte, el nacimiento,
lengua, familia, dios, época, amor:
lo decisivo de lo que nos pasa,
y los que somos,
no es algo deseado ni elegido.

Y pasamos la vida, sin embargo o por eso,
creyendo que el deseo es nuestro dios
y no una rosa rara que en nosotros cultiva
el azar
que nos guía, nos ciega y nos ignora.

Nadie ha elegido el mundo en que ha nacido.
Ni siquiera su nombre, su memoria.

Lo importante se impone, no se elige.

Y sin embargo somos seres libres
de escoger entre dar y destruir
lo que tenemos, desearlo, amarlo
más que a lo que no hay, luchar sin mundo,
aceptar lo que ocurre y trabajar
duro para que ocurra
lo que de todos modos va a ocurrir.

No hay más sabiduría ni remedio
que amar la vida más que su sentido
y dejarse llevar por las aguas salvajes
de estar aquí y así, con sed de irse,
de elegir lo que hay y, ay de nosotros,
ser quienes somos, pródigos, saber
que no tenemos más que lo que damos.

Llamamos libertad a esta tarea
minuciosa y secreta de bordar,
manchar, romper, lavar, tender, plegar,
guardar en el armario entre membrillos
sábanas heredadas de la abuela
que a su vez heredó de la suya, extraño ajuar
para esta soledad que me ha esposado.