Konstantinos Kaváfis – Prece

Um marujo o abismo do mar guardou consigo.
Sem de nada saber, a mãe coloca um círio

aceso diante da Virgem, um longo círio,
para que volte logo, a salvo dos perigos.

No bramido dos ventos põe o seu ouvido;
mas, enquanto ela reza e faz o seu pedido,

sabe o ícone a escutá-la, grave, com pesar,
que o filho que ela espera nunca há de voltar.

Trad.: José Paulo Paes

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Wilfred Owen – Futilidade

Coloquem-no à luz do sol… Em casa
Seu toque gentil o acordava com a lembrança
De campos ainda por plantar…
O sol o acordou sempre, até na França,
Até chegarem a manhã de hoje e a neve que aí está.
Se alguma coisa pode acorda-lo agora,
Só o velho sol saberá.

Lembrem que também acorda sementes…
E que há muito acordou a argila de uma estrela fria…
Então os braços perfeitos e seu corpo
Tão rico em nervos (e ainda quente) rijos demais?
É este o fim que a argila em si encerra?
– Ah, por que, raio de sol insensato, você
Se esmerou tanto para um dia acordar a terra?

Trad.: Jorge Wanderley

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 05/02/2019

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Wilfred Owen – Futility

Move him into the sun—
Gently its touch awoke him once,
At home, whispering of fields half-sown.
Always it woke him, even in France,
Until this morning and this snow.
If anything might rouse him now
The kind old sun will know.

Think how it wakes the seeds—
Woke once the clays of a cold star.
Are limbs, so dear-achieved, are sides
Full-nerved, still warm, too hard to stir?
Was it for this the clay grew tall?
—O what made fatuous sunbeams toil
To break earth’s sleep at all?

Patrick Philips – Matinê

Após a biópsia,
após a cintilografia óssea,
após a consulta e o choro,

por algumas horas ninguém conseguia encontrá-los,
nem mesmo minha irmã,
porque acontece que

eles tinham ido ao cinema.
Passava uma tragédia,
um épico,

mas no fim eles foram de comédia,
com suas cocas
e pipocas,

a velha mulher sussurrando tudo duas vezes,
o velho marido
cobrindo o ouvido com a mão,

enquanto o sol poente iluminava um pomar
atrás do shopping center,
e eles se sentavam no escuro, de mãos dadas.

Trad.: Nelson Santander

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Matinee

After the biopsy,
after the bone scan,
after the consult and the crying,

for a few hours no one could find them,
not even my sister,
because it turns out

they’d gone to the movies.
Something tragic was playing,
something epic,

and so they went to the comedy
with their popcorn
and their cokes,

the old wife whispering everything twice,
the old husband
cupping a palm to his ear,

as the late sun lit up an orchard
behind the strip mall,
and they sat in the dark holding hands.

Vladimir Holan – A Neve

A neve começou a cair à meia-noite. E não há dúvida
de que o melhor para o homem é estar sentado na cozinha,
ainda que seja a da insônia.
Ali faz calor, preparas-te algo, bebes vinho
e contemplas pela vidraça a eternidade familiar.
Por que te angustiarias querendo saber se nascimento e morte são apenas dois pontos,
sabendo que a vida não é uma linha reta?
Por que te torturarias ao ver o calendário
e te inquietarias querendo saber o que está em jogo?
Por que admitirias que não tens dinheiro sequer
para comprar um par de sapatos para Saskia?
E por que haverias de vangloriar-se
de que sofres mais que os outros?

Mesmo que não houvesse silêncio na terra,
Esta neve já o teria criado em seu sonho.
Estás só. Nenhum gesto. Nada a ostentar.

Trad.: Nelson Santander a partir de versão do poema em espanhol traduzido por Josef Forbelski

REPUBLICAÇÃO, com pequenas alterações na tradução: poema publicado na página originalmente em 22/01/2019

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Vladimir Holan – La Nieve

La nieve empezó a caer a medianoche. Y no hay duda
de que como mejor está el hombre es sentado en la cocina,
aunque sea la del insomnio.
Allí se está caliente, te preparas cualquier cosa, bebes vino
y contemplas por la ventana la eternidad familiar.
Por qué ibas a atormentarte queriendo saber si nacimiento y muerte son sólo dos puntos,
sabiendo que la vida no es una línea recta…
Por qué te ibas a torturar al ver el calendario
y a inquietarte queriendo saber qué valor hay en juego.
¿Y por qué ibas a confesarte que no tienes dinero
para comprarle unos zapatos a Saskia?
¿Y por qué ibas a jactarte
de que sufres más que los otros?

Aunque no hubiese silencio en la tierra
este nevar ya lo habría creado en su sueño.
Estás solo. Ni un gesto. Nada de ostentación.

Tung-Hui Hu – Como cuidar?

Naquele mês, eu me perguntava onde eles se reuniam,
antes dos hospitais, antes da ala oncológica,
dos cuidados intensivos, das urgências.

Naquele tempo, tudo era urgente, amarrar
mãos e pés, imobilizar o corpo
antes que pudesse se transformar em cadáver. Agora
é mais fácil, olhar fotografias em vez disso,

uma dele em sua camisa de trabalho, colarinho desgastado,
esticada sobre suas costelas. Outra, de sua filha,
que ajeita sua cabeça raspada em um travesseiro como se
arrumasse flores. Prática para a vida,

caminhar pelos corredores, ler gráficos,
raios X, examinar a cavidade de um tronco contra
a luz, pegar um suco na cafeteria,
sorvê-lo, expeli-lo para fora de mim,

era como estar em um transatlântico, a mesma
lentidão para se mover, a mesma distância da terra,
onde os homens sofrem, onde os homens vivem.

Trad.: Nelson Santander

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How to Care?

That month, I wondered where they gathered
before hospitals, before the oncology ward,
intensive care, urgent care.

Back then it was all urgent, binding
hands and feet, immobilizing the body
before it could pass into cadaver. Now
it is easier, to look at photographs instead,

one of him in his work shirt, collar fraying,
stretched across his ribs. Another, his daughter,
who sets his shaven head upon a pillow as if
arranging flowers. Practice for the living,

walking through hallways, reading charts,
X-rays, seeing the hollows of a torso held
to the light, getting juice from the cafeteria,
swallowing it, passing it out of me,

it was like being on an ocean liner, the same
slowness to move, the same distance from land,
where men are hurting, men are living.

José Luis García Martín – Em algum lugar

Logo, depois, mais tarde, quando nunca,
meus passos se afastaram dos meus passos
e em algum lugar, não sei se dentro ou fora,
ouviu-se uma voz que repetia um nome.
Uma voz, apenas um eco, quase nada,
talvez a voz do vento entre as árvores
onde árvores sequer existiam.
Tremiam os alicerces da terra
ou seria eu quem tremia naquele instante
quando um sol negro iluminava o mundo
e era minha vida inteira que ardia,
uma pilha de papéis amassados,
em um canto remoto, entre teus braços,
amor que foi, que é, que nunca existiu,
um vapor sujo que na noite se eleva.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 29/01/2019

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En Algún Lugar

Luego, después, más tarde, cuando nunca,
mis pasos se alejaron de mis pasos
y en algún lugar, no sé si dentro o fuera,
se oyó una voz que un nombre repetía.
Una voz, sólo un eco, apenas nada,
quizá la voz del viento entre los árboles
donde ni tan siquiera árboles había.
Temblaban los cimientos de la tierra
o era yo quien temblaba aquel entonces
en que un sol negro iluminaba el mundo
y era mi vida entera la que ardía,
un montón de papeles arrugados,
en el rincón remoto, entre tus brazos,
amor que fue, que es, que nunca ha sido,
un humo sucio que en la noche asciende.

Louise Dupré – [cada poema é um outono]

cada poema é um outono
mais

não o das belas frases
só o outono
desgrenhado nas folhagens

semelhantes aos cabelos dos feiticeiros
que entretem
as crianças nas varandas

escreves
para atrair o sol
para a lentidão de um bordo

antes que a noite venha
devorá-lo

tudo se torna imagem
na tua corrida contra a treva

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Paulo Henriques Britto – À margem do Douro

Não espero nada, e já me satisfaço
com a consciência de ainda estar em mim
e não de volta ao nada de onde vim.
Por ora, ao menos, ainda ocupo espaço,
junto a uma mesa no Cais da Ribeira;
permito-me, sem culpa, desfrutar
de pão, e queijo, e vinho, e vista, e ar,
todo o entorno da minha cadeira.
Que os dias que me restam não me tragam
apenas a miséria de contá-los
pra ao fim ver que as contas não fecham. Peço
demais? Eu, que não sou desses que tragam
a vida num só gole e no gargalo,
sem ter nem mesmo perguntado o preço.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 26/01/2019

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Marie Howe – A menina

Tão perto do fim de minha vida fértil e
ainda sem filhos

– se eu pudesse lembrar de um dia sequer em que era puramente uma menina
e ainda não uma mulher –

mas não creio que tenha havido um dia assim para mim.

Quando vejo a menina que fui, pingando em seu maiô,
ou andando de bicicleta, pedalando com força pela rua recém-asfaltada,

ela exibe um olhar furtivo –
e mesmo que eu pudesse voltar no tempo até ela, na idade que tenho agora,

a menina que fui nunca viria para meus braços
sem presumir que eu quisesse algo dela.

Trad.: Nelson Santander

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The Girl

So close to the end of my childbearing life
without children

– if I could remember a day when I was utterly a girl
and not yet a woman –

but I don’t think there was a day like that for me.

When I look at the girl I was, dripping in her bathing suit,
or riding her bike, pumping hard down the newly paved street,

she wears a furtive look –
and even if I could go back in time to her as me, the age I am now

she would never come into my arms
without believing that I wanted something.

Juan Vicente Piqueras – Os Deuses Internos

Os deuses sabem mais e melhor do que nós
do que precisamos. Pedimos-lhes um filho,
e nos enviam um lobo, e não os compreendemos.

A vida diariamente os esquece.
A morte à noite os inventa.

E as doenças, como diz o sábio,
são deuses que agonizam dentro de nosso corpo,
seu último templo em ruínas,
seu refúgio sem fé. Imploram compaixão.

Os deuses não compreendem a estranha insensatez
com que decidimos acabar conosco
acabando com eles, o orgulho
com que os desprezamos.

Os deuses pedem pouco: que não os esqueçamos.

Mas é pedir demais a uma espécie escrava
que fez do esquecimento sua missão e sua vida
e sua razão de ser.
Os deuses se calam,
resignados, e morrem em silêncio
dentro de cada um de seus antigos súditos.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 23/01/2019

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Los Dioses Dentro

Los dioses saben más y mejor que nosotros
lo que nos hace falta. Les pedimos un hijo
y nos mandan un lobo, y no los comprendemos.

La vida cada día los olvida.
La muerte por la noche los inventa.

Y las enfermedades, como bien dijo el sabio,
son dioses que agonizan dentro de nuestro cuerpo,
su último templo en ruinas,
su refugio sin fe. Piden piedad.

Los dioses no comprenden la extraña insensatez
con que hemos decidido acabar con nosotros
acabando con ellos, el orgullo
con que los despreciamos.

Los dioses piden poco: que no los olvidemos.

Pero es mucho pedirle a una raza de esclavos
que han hecho del olvido su misión y su vida
y su razón de ser.
Los dioses callan,
resignados, y mueren en silencio
dentro de cada uno de sus antiguos súbditos.