Fleur Adcock – O Hospital Soho para Mulheres (IV)

Estou no supermercado, hesitante –
nesta tarde, precisamente nela –
entre os tomates, o queijo e os pães,

coisas que uso como ingredientes
para preparar meu jantar, e elas
comem na cama suas refeições:

Janet com seus grandes sardos seios,
sua voz escocesa encoberta,
que nunca esteve em um hospital,

lá foi fazer alguns exames, veio,
mas sua alta agora é incerta;
na cama, perto da porta, Coral,

que ofegou e gemeu atrás da tela,
as enfermeiras entrando e saindo
a noite toda e em parte do dia;

com dezenove, confusa, amarela.
E Mary, que está bem, quase partindo.
Não já. E Alice, de longa estadia.

Ao passo que eu estou quase ilesa,
tonta de liberdade, de dor não.
E percebo, erguendo minha cesta,

como é de pouco o que se precisa;
e vou pro caixa, para o temporal,
para as luzes e para a rua vasta.

Trad.: Nelson Santander

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The Soho Hospital for Women (IV)

I am out in the supermarket choosing –
this very afternoon, this day –
picking up tomatoes, cheese, bread,

things I want and shall be using
to make myself a meal, while they
eat their stodgy suppers in bed:

Janet with her big freckled breasts,
her prim Scots voice, her one friend,
and never in hospital before,

who came in to have a few tests
and now can’t see where they’ll end;
and Coral by the bed by the door

who whimpered and gasped behind a screen
with nurses to and fro all night
and far too much of the day;

pallid, bewildered, nineteen.
And Mary, who will be all right
but gradually. And Alice, who may.

Whereas I stand almost intact,
giddy with freedom, not with pain.
I lift my light basket, observing

how little I needed in fact;
and move to the checkout, to the rain,
to the lights and the long street curving.

Maria do Rosário Pedreira – Onde quer que o encontres

Onde quer que o encontres –
escrito, rasgado ou desenhado:
na areia, no papel, na casca de
uma árvore, na pele de um muro,
no ar que atravessar de repente
a tua voz, na terra apodrecida
sobre o meu corpo – é teu,

para sempre, o meu nome.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 10/07/2019

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Roo Borson – Livrai-nos

Livrai-nos da noite,
das infindáveis e sombrias
rodovias, e dos oásis
néon dos postos de gasolina,
do ronco dos motores
imortais após a meia-noite,
quando o tempo perde o sentido,
dos cafés da madrugada,
suas tortas macabras,
e do babado alaranjado no
avental da garçonete,
das cadeiras de plástico combinando,
do laranja e do marrom e de
todos os tons sobrenaturais,
banindo-os de volta ao tubo de ensaio,
livrai-nos deles,
daqueles banheiros com um
cenário lunar refletido no espelho,
da fadiga, sua implacável luminosidade,
quando cada célula se arrepia,
e da sensação nos dentes,
e da eterna sentinela da mente,
e da cidade não mapeada
com sua cama fria.
Livrai-nos da insônia,
de sua maratona,
dos sinos da escola e da fábrica,
das salas de estar como tumbas,
seus sofás quadriculados
e constelações de poeira,
das cadeiras sem braços,
de qualquer conjunto de móveis combinados,
das cortinas até o chão que
encerram o mundo,
dos sutiãs acolchoados e dos ternos alugados,
de qualquer objeto onde o horror esteja oculto.
Livrai-nos de acordar após os pesadelos,
livrai-nos dos pesadelos,
de outros mundos,
dos contornos imóveis e mudos
das cômodas e dos sapatos,
de outro dia imensurável, livra-nos.

Trad.: Nelson Santander

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Save Us From

Save us from night,
from bleak open highways
without end, and the fluorescent
oases of gas stations,
from the gunning of immortal
engines past midnight,
when time has no meaning,
from all-night cafes,
their ghoulish slices of pie,
and the orange ruffle on the
apron of the waitress,
the matching plastic chairs,
from orange and brown and
all unearthly colours,
banish them back to the test tube,
save us from them,
from those bathrooms with a
moonscape of skin in the mirror,
from fatigue, its merciless brightness,
when each cell of the body stands on end,
and the sensation of teeth,
and the mind’s eternal sentry,
and the unmapped city
with its cold bed.
Save us from insomnia,
its treadmill,
its school bells and factory bells,
from living rooms like the tomb,
their plaid chesterfields
and galaxies of dust,
from chairs without arms,
from any matched set of furniture,
from floor-length drapes which
close out the world,
from padded bras and rented suits,
from any object in which horror is concealed.
Save us from waking after nightmares,
save us from nightmares,
from other worlds,
from the mute, immobile contours
of dressers and shoes,
from another measureless day, save us.

Czeslaw Milosz – A queda

A morte de um homem é como a queda de uma poderosa nação
Que teve valentes exércitos, capitães e profetas,
E ricos portos e barcos em todos os mares,
Mas agora não socorrerá nenhuma cidade sitiada,
Não entrará em nenhuma aliança,

Porque suas cidades estão vazias, sua população dispersa,
Sua terra que certa vez proveu de colheitas está saturada de cardos,
Sua missão olvidada, sua língua perdida,
O dialeto de um povo posto sobre inacessíveis montanhas.

Trad.: Pedro Gonzaga

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 07/07/2019

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Upadek

Śmierć człowieka jest jak upadek państwa potężnego,
Które miało bitne armie, wodzów i proroków,
I porty bogate, i na wszystkich morzach okręty,
A teraz nie przyjdzie nikomu z pomocą, z nikim nie zawrze przymierzy,

Bo miasta jego puste, ludność w rozproszeniu,
Oset porósł jego ziemie kiedyś dającą urodzaj,
Jego powołanie zapomniane, język utracony,
Dialekt wioski gdzieś daleko w niedostępnych górach.

Adam Zagajewski – Tente louvar o mundo mutilado

Tente louvar o mundo mutilado.
Lembre-se dos longos dias de junho,
dos morangos silvestres e das gotas de vinho rosé.
Das urtigas que metódicas invadem
as propriedades abandonadas dos exilados.
Você deve louvar o mundo mutilado.
Você observou os elegantes iates e navios;
um deles tinha uma longa jornada pela frente,
enquanto o salino esquecimento aguardava os demais.
Você viu os refugiados indo a lugar nenhum,
você ouviu os algozes cantando alegremente.
Você deveria louvar o mundo mutilado.
Lembre-se dos momentos em que estiveram juntos,
em um quarto branco onde a cortina tremulava.
Volte ao concerto onde a música resplandecia.
Você colheu nozes no parque durante o outono
e as folhas rodopiavam sobre as cicatrizes da terra.
Louve o mundo mutilado
e a pena cinza que um tordo perdeu,
e a luz suave que se afasta, e desaparece
e retorna.

Trad.: Nelson Santander, a partir da versão do poema em inglês traduzido por Clare Cavanagh

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Try to Praise the Mutilated World

Try to praise the mutilated world.
Remember June’s long days,
and wild strawberries, drops of rosé wine.
The nettles that methodically overgrow
the abandoned homesteads of exiles.
You must praise the mutilated world.
You watched the stylish yachts and ships;
one of them had a long trip ahead of it,
while salty oblivion awaited others.
You’ve seen the refugees going nowhere,
you’ve heard the executioners sing joyfully.
You should praise the mutilated world.
Remember the moments when we were together
in a white room and the curtain fluttered.
Return in thought to the concert where music flared.
You gathered acorns in the park in autumn
and leaves eddied over the earth’s scars.
Praise the mutilated world
and the gray feather a thrush lost,
and the gentle light that strays and vanishes
and returns.

Sophia de Mello Breyner Andresen – Quando

Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 05/07/2019

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Ada Limón – Antes

Descalça e usando um capacete
vermelho reluzente, eu cavalgava
na garupa da Harley do meu pai
aos sete anos de idade.
Antes do divórcio.
Antes do novo apartamento.
Antes do novo casamento.
Antes da macieira.
Antes das cerâmicas na lixeira.
Antes da corrente do cachorro.
Antes que as carpas fossem todas comidas
pela garça. Antes da estrada
entre nós, havia a estrada
embaixo de nós, e eu era
grande o suficiente para não me soltar:
Henno Road, riacho logo abaixo,
violento vento, pernas em alicate,
e nunca soube que sobreviver
era assim. Se você sobrevive,
olha para trás e implora
por isso novamente: a arriscada
felicidade antes de compreender
o que você perderia.

Trad.: Nelson Santander

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Before

No shoes and a glossy
red helmet, I rode
on the back of my dad’s
Harley at seven years old.
Before the divorce.
Before the new apartment.
Before the new marriage.
Before the apple tree.
Before the ceramics in the garbage.
Before the dog’s chain.
Before the koi were all eaten
by the crane. Before the road
between us, there was the road
beneath us, and I was just
big enough not to let go:
Henno Road, creek just below,
rough wind, chicken legs,
and I never knew survival
was like that. If you live,
you look back and beg
for it again, the hazardous
bliss before you know
what you would miss.

Ian Hamilton – Fantasmas

O caixão lustroso e suntuosamente adornado
Desliza como um novo navio para as profundezas em chamas.
Na terra firme,
A congregação se ajoelha em murmúrios.

Do meu banco no canto
Tenho uma visão livre e desimpedida
de sua partida.
Se você estivesse deitada de lado
Talvez pudesse captar seu olhar insuspeito.

No pátio, ao anoitecer,
Os tributos florais. Eu poderia jurar
Tê-la visto
Aspirando o aroma das coroas de flores
E contando as cabeças inclinadas dos enlutados por você.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 01/07/2019

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Ghosts

The scrubbed, magnificently decked coffin
Skates, like a new ship, into the fiery deep.
On dry land,
The congregation rustles to its knees.

From my corner pew
I command an unobstructed view
Of your departure.
If you had been lying on your side
I might have caught your unsuspecting eye.

Out on the patio, at dusk,
The floral tributes. I could almost swear
That it was you I saw
Sniffing the wreath-scented air
And counting the bowed heads of your bereaved.

Konstantinos Kaváfis – Muros

Sem cuidado nenhum, sem respeito nem pesar
Ergueram à minha volta altos muros de pedra.

E agora aqui estou, em desespero, sem pensar
noutra coisa: o infortúnio a mente me depreda.

E eu que tinha tanta coisa por fazer lá fora!
Quando os ergueram, mal notei os muros, esses.

Não ouvi voz de pedreiro, um ruído que fora.
Isolaram-me do mundo sem que eu percebesse.

Trad.: José Paulo Paes

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Joan Margarit – Banheiro

Cuido para que não caias ao banhar-te,
e ao secar-te as costas sigo suavemente
a grande cicatriz da espinha.
O futuro está sempre na janela.
Tua vida é este pequeno espaço
de tua cama e tua música, este céu
de umas poucas pessoas e uma casa.
E pela primeira vez
não estarei mais contigo.
Não virei mesmo que me chames.
Ficarei te olhando
nas fotografias dos álbuns
que folheias amiúde. Teu herói
ainda não aprendeu a lidar com a morte.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 29/06/2019

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Joan Margarit – Cuarto de Baño

Cuido que no te caigas al ducharte,
y al secarte la espalda sigo con suavidad
la larga cicatriz del espinazo.
El futuro está siempre en la ventana.
Tu vida es este pequeño espacio
de tu cama y tu música, este cielo
de unas pocas personas y una casa.
Y por primera vez
ya no estaré contigo.
No vendré aunque me llames.
Me quedaré mirándote
en las fotografía de los álbumes
que hojeas a menudo.
Tu héroe no ha aprendido aún a morir.