Louise Glück – Acalanto

Minha mãe é especialista em uma coisa:
enviar pessoas que ela ama para o outro mundo.
Os pequeninos, os bebês — estes
ela embala, sussurrando ou cantando baixinho. Não posso dizer
o que ela fez pelo meu pai;
o que quer que tenha sido, tenho certeza de que foi o certo.

De fato, é a mesma coisa preparar uma pessoa
para dormir ou para morrer. Os acalantos — todos eles dizem
para não ter medo, é assim que eles parafraseiam
os batimentos cardíacos da mãe.
Assim, os vivos se acalmam lentamente; são só
os moribundos que não conseguem, que recusam.

Os moribundos são como piões, como giroscópios —
eles giram tão rapidamente que parecem imóveis.
Eles então se partem em pedaços: nos braços da minha mãe,
minha irmã era uma nuvem de átomos, de partículas — é essa a diferença.
Quando uma criança está dormindo, ela ainda está inteira.

Minha mãe viu a morte; ela não fala sobre a integridade da alma.
Ela segurou um criança, um velho, enquanto, em comparação, a escuridão
se solidificava ao redor deles, e por fim se transformava em terra.

A alma é como toda matéria:
por que permaneceria intacta, fiel à sua única forma,
quando poderia ser livre?

Trad.: Nelson Santander

Lullaby

My mother’s an expert in one thing:
sending people she loves into the other world.
The little ones, the babies—these
she rocks, whispering or singing quietly. I can’t say
what she did for my father;
whatever it was, I’m sure it was right.

It’s the same thing, really, preparing a person
for sleep, for death. The lullabies—they all say
don’t be afraid, that’s how they paraphrase
the heartbeat of the mother.
So the living grow slowly calm; it’s only
the dying who can’t, who refuse.

The dying are like tops, like gyroscopes—
they spin so rapidly they seem to be still.
Then they fly apart: in my mother’s arms,
my sister was a cloud of atoms, of particles—that’s the difference.
When a child’s asleep, it’s still whole.

My mother’s seen death; she doesn’t talk about the soul’s integrity.
She’s held an infant, an old man, as by comparison the dark grew
solid around them, finally changing to earth.

The soul’s like all matter:
why would it stay intact, stay faithful to its one form,
when it could be free?

Warsan Shire – para mulheres que são ‘difíceis’ de amar

Você é um corcel correndo sozinha
e ele tenta doma-la
compara você a uma autoestrada impossível
para uma casa em chamas
diz que você o está cegando
que ele nunca poderia deixar você
esquecer que você
não quer nada além de você
que você o atordoa, você é insustentável
que toda mulher antes ou depois de você
está embebida no seu nome
que você enche a boca dele
que os dentes dele doem com a memória do sabor
do seu corpo apenas uma grande sombra buscando a sua
mas que você é sempre muito intensa
assustadora no jeito que você o deseja
sem-vergonha e sacrificial
ele lhe diz que nenhum homem pode viver à altura daquele
que habita a sua cabeça
e você tentou mudar, não foi?
fechou mais a boca
tentou ser mais suave
mais bonita
menos volátil, menos desperta
mas mesmo enquanto dormia você podia senti-lo
se afastando de você em seus sonhos
então o que você queria fazer amor
abrir a cabeça dele?
você não pode fazer dos seres humanos um lar
alguém já deveria ter-lhe dito isso
e se ele quer ir embora
então deixe-o ir
você é assustadora
e estranha e bela
algo que nem todos sabem como amar.

Trad.: Nelson Santander

N. do T.: quem me apresentou esse belo poema foi minha filha, Ariadne, que “encomendou” também a sua tradução. Como eu não sou louco de dizer não para a mulher mais assustadora e estranha e bela de minha vida, eis o resultado. É seu, filha.

for women who are ‘difficult’ to love

You are a horse running alone
and he tries to tame you
compares you to an impossible highway
to a burning house
says you are blinding him
that he could never leave you
forget you
want anything but you
you dizzy him, you are unbearable
every woman before or after you
is doused in your name
you fill his mouth
his teeth ache with memory of taste
his body just a long shadow seeking yours
but you are always too intense
frightening in the way you want him
unashamed and sacrificial
he tells you that no man can live up to the one who
lives in your head
and you tried to change didn’t you?
closed your mouth more
tried to be softer
prettier
less volatile, less awake
but even when sleeping you could feel
him travelling away from you in his dreams
so what did you want to do love
split his head open?
you can’t make homes out of human beings
someone should have already told you that
and if he wants to leave
then let him leave
you are terrifying
and strange and beautiful
something not everyone knows how to love.

Juan Vicente Piqueras – Museu da Acrópole

Uma mão de mármore, mas apenas os dedos,
sobre um ombro de mármore sem cabeça.

Um braço erodido que ninguém estende a ninguém.

Um cavalo sem patas.
Um cavaleiro que é apenas suas coxas.

Dionísio aos pedaços, recomposto.

Um touro sem chifres que está sendo devorado
por um leão que lá não está,
apenas suas garras.

Admiramos o desaparecido.
Talvez nossa cultura nasça dessas ausências,
do vazio, do que não há.

Também nós somos o que resta
de nós,
o que nos falta,
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Trad.: Nelson Santander

Museo de la Acrópolis

Una mano de mármol, pero sólo los dedos,
sobre un hombro de mármol sin cabeza.

Un brazo erosionado que nadie tiende a nadie.

Un caballo sin patas.
Un jinete que es sólo sus muslos.

Dionisos a pedazos, recompuesto.

Un toro sin cuernos que está siendo devorado
por un león que no está,
sólo sus garras.

Admiramos lo desaparecido.
Tal vez nuestra cultura nace de estas ausencias,
de lo vacío, de lo que no hay.

También nosotros somos lo que queda
de nosotros,
lo que nos falta,
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Javier Salvago – Canção do Esquecimento

A cor dos olhos daquele paixão juvenil.
O calor do primeiro beijo, do qual não me
lembro, embora saiba que deva ter sido
inesquecível. Tantos colegas e amigos
da escola ou de farra, que um dia foram próximos.
O latim. Tantos nomes de montanhas e de rios.
Tantas duras lições. Tantos e tantos livros,
devorados com paixão, sempre abertos, lidos
e esquecidos, assim como esquecemos caminhos,
propósitos, feridas, afetos e afeições,
paisagens e rostos que o tempo diluiu.

Quando a vida passa, são muitas as deslembranças.

Trad.: Nelson Santander

Canción del olvido

El color de los ojos de aquel amor de niño.
El calor del primer beso, que no consigo
recordar, aunque sé que debió de haber sido
inolvidable. Tantos compañeros y amigos
de colegio o de farra, que un día fueron íntimos.
El latín. Tantos nombres de montañas y ríos.
Tantas duras lecciones. Tantos y tantos libros,
con pasión devorados, siempre abiertos, leídos
y olvidados, igual que olvidamos caminos,
propósitos, heridas, afectos y cariños,
paisajes y rostros que el tiempo ha diluido.

Cuando la vida pasa, son tantos los olvidos.

Carlos Drummond de Andrade – Véspera

Amor: em teu regaço as formas sonham
o instante de existir: ainda é bem cedo
para acordar, sofrer. Nem se conhecem
os que se destruirão em teu bruxedo.

Nem tu sabes, amor, que te aproximas
a passo de veludo. És tão secreto,
reticente e ardiloso, que semelhas
uma casa fugindo ao arquiteto.

Que presságios circulam pelo éter,
que signos de paixão, que suspirália
hesita em consumar-se, como flúor,
se não a roça enfim tua sandália?

Não queres morder célere nem forte.
Evitas o clarão aberto em susto.
Examinas cada alma. É fogo inerte?
O sacrifício há de ser lento e augusto.

Então, amor, escolhes o disfarce.
Como brincas (e és sério) em cabriolas,
em risadas sem modo, pés descalços,
no círculo de luz que desenrolas!

Contempla este jardim: os namorados,
dois a dois, lábio a lábio, vão seguindo
de teu capricho o hermético astrolábio,
e perseguem o sol no dia findo.

E se deitam na relva; e se enlaçando
num desejo menor, ou na indecisa
procura de si mesmos, que se expande,
corpóreo, são mais leves do que brisa.

E na montanha-russa o grito unânime
é medo e gozo ingênuo, repartido
em casais que se fundem, mas sem flama,
que só mais tarde o peito é consumido.

Olha, amor, o que fazes desses jovens
(ou velhos) debruçados na água mansa,
relendo a sem-palavra das estórias
que nosso entendimento não alcança.

Na pressa dos comboios, entre silvos,
carregadores e campainhas, rouca
explosão de viagem, como é lírico
o batom a fugir de uma a outra boca.

Assim teus namorados se prospectam:
um é mina do outro; e não se esgota
esse ouro surpreendido nas cavernas
de que o instinto possui a esquiva rota.

Serão cegos, autômatos, escravos
de um deus sem caridade e sem presença?
Mas sorriem os olhos, e que claros
gestos de integração, na noite densa!

Não ensaies demais as tuas vítimas,
ó amor, deixa em paz os namorados
Eles guardam em si, coral sem ritmo,
os infernos futuros e passados.

Hannah Sullivan – 3.31 (de “Three Poems”)

O que subsistirá a nós?
Larkin pensava que a resposta poderia ser “amor,”
Mas não conseguiu prova-lo.

“A pasta de rascunhos era o lugar mais interessante.” “Sempre foi você, no final.”
“Ele tentou lhe dizer à sua maneira.”

Curtas cadeias de carbono no pó,
Esta é a resposta prática.
Velhos laptops, marca-passos, parafusos ósseos.
Filamentos de DNA revelando a causa da morte.
E-mails que mandamos e rascunhos que não enviamos.
As coisas que dissemos e as que deveríamos ter dito.

Videos pornô baixados revelam
Inclinações que chocam nossos amigos:
Mordaças de algodão, cordas ferindo as fendas
De colegiais japonesas de vinte e poucos anos.
Mas nada imundo o suficiente para interessar a estranhos.

Antigos amantes cruzam suas pernas, dobram de novo o papel,
Estudam a imagem residual na janela do metrô.
Ninguém se lembra de tudo sobre alguém.

Uma rápida limpada das axila às 6, um toque de perfume,
Dança de meia-calça, duas manchas de sangue.
Um dedo que arranca cabelos rebeldes e prende o elástico.
Neve na segunda semana de dezembro.

Mas como foi sentir aquele cheiro depois,
Em minhas mãos?

Trad.: Nelson Santander

3.31

What will survive of us?
Larkin thought the answer might be “love,”
But couldn’t prove it.

“The drafts folder was the most interesting place.” “It was always you, in the end.”
“He tried to tell you in his own way.”

Short chains of carbon in the dust,
This is the practical answer.
Old laptops, pacemakers, leg pins.
DNA fibres revealing death’s cause.
Emails we sent and drafts we didn’t send.
The things we said and those we should’ve.

Downloaded porn videos reveal
Proclivities that shock our friends:
Cotton gags, string cutting into the clefts
Of twenty-something Japanese schoolgirls.
But nothing filthy enough to interest strangers.

Old lovers cross their legs, refold the paper,
Study the afterimage in the metro window.
No one remembers everything about someone.

A quick armpit wash at 6, a fluster of perfume,
Dancing into tights, two daubs of blood.
A finger pulls vagrant hairs, snags the elastic.
Snow in the second week of December.

But how was it that you smelled afterwards,
On my hands?