Luis Alberto de Cuenca – A casa da minha infância

Fui feliz naquela casa repleta de flores
e de livros proibidos. A casa em que tu eras
Ginevra nos nossos jogos, e eu era o rei Artur
(não havia Lancelote para arruinar tudo).
A casa onde foste donzela das minhas ânsias,
senhora dos meus suspiros, muralha em meu peito,
cofre do meu tesouro, brinde dos meus soldados.
A casa que tinha uma arca misteriosa
que guardava o segredo da sabedoria
e do amor eterno, e a droga da fé,
a taça do esquecimento, o cálice da coragem.
A casa onde, à tarde, com sonhos partilhados,
enquanto a roupa dourava ao sol lá na varanda,
te nomeei soberana de um reino em que a noite
não existia e a morte não ditava as leis.

Trad.: Miguel Filipe Mochila

La casa de mi infancia

Fui feliz en aquella casa llena de flores
y de libros prohibidos. La casa en que tú eras
Ginebra en nuestros juegos, y yo era el rey Arturo
(no había un Lanzarote que echara a perder todo).
La casa donde fuiste doncella de mis ansias,
dueña de mis suspiros, muralla de mi pecho,
cofre de mi tesoro, brindis de mis soldados.
La casa que tenía un arcón misterioso
que guardaba el secreto de la sabiduría
y del amor eterno, la droga de la fe,
la copa del olvido y el cáliz del coraje.
La casa en que una tarde de sueños compartidos,
mientras se soleaba la ropa en la terraza,
te nombré soberana de un reino en que la noche
no existía y la muerte no dictaba sus leyes.

José Fernando Guedes – Coeso é o tempo

Coeso é o tempo em cada tênue segundo
Que logo se desfaz e se reconstrói
Como uma linguagem de gestos que o universo
Elabora sem que percebamos.

E mesmo no interior de cada segundo
Há suficiente espaço para se fazer o bem ou o mal
Porque é assim mesmo que acontece: o mal ou o bem
Infinitesimais, germinam e brotam no exato
Segundo onde nasceram.
Portanto o cimento da estrutura orgânica do tempo
É o mal e o bem que você e eu temos à nossa disposição.

Giuseppe Ungaretti – Silêncio

  Mariano, 27 de junho de 1916

Conheço uma cidade
que cada dia se enche de sol
e tudo é arrebatado nessa hora

Dela parti uma tarde

No coração perdurava o limar
das cigarras

Do navio
laqueado de branco
vi
minha cidade sumir
deixando
por um instante
no ar toldado um abraço de luzes
suspensas

Trad.: Geraldo Holanda Cavalcanti

Giuseppe Ungaretti – Silenzio

  Mariano, il 27 giugno 1916

Conosco una città
che ogni giorno s’empie di sole
e tutto è rapito in quel momento

Me ne sono andato una sera

Nel cuore durava il limio
delle cicale

Dal bastimento
verniciato di bianco
ho visto
la mia città sparire
lasciando
un poco
un abbraccio di lumi nell’aria torbida
sospesi

Raymond Carver – A carteira do meu pai

Muito antes de pensar em sua própria morte
meu pai dizia que gostaria de descansar perto
dos seus pais. Sentia muita falta deles
desde que tinham partido.
Falou isso o bastante para que minha mãe se lembrasse,
e eu me lembrasse. Mas quando o ar
deixou seus pulmões e todo sinal de vida
se extinguiu, ele se encontrava numa cidade
a 512 milhas de onde mais queria estar.

Mas meu pai, ele era incansável
até na morte. Até na morte
ele tinha uma última viagem a fazer.
A vida inteira gostara de perambular
e agora ele tinha mais um lugar para ir.

O agente funerário disse que cuidaria de tudo,
que não nos preocupássemos. Uma luz mirrada
entrava pela janela e caía no chão poeirento
onde aguardávamos naquela tarde,
até que o homem surgiu do quarto dos fundos
tirando as luvas de borracha.
Trazia consigo o cheiro de formol.
Ele era um homem forte, disse o agente.
E começou a nos contar por que
gostava de viver naquela pequena cidade.
O homem que acabara de abrir as veias do meu pai.
Quanto vai custar?, perguntei.

Ele sacou o caderno e a caneta e começou
a escrever. Primeiro, as taxas de preparação.
Depois calculou o transporte
dos restos mortais, a 22 centavos por milha.
Mas esta era uma viagem de ida e volta para o agente,
não esqueçam. E mais, digamos, seis refeições
e duas noites num motel. Fez algumas
outras contas. Acrescentou uma sobretaxa
de 210 dólares pelo seu tempo e trabalho,
e era isso.

Pensou que iríamos barganhar.
Havia uma mancha vermelha em
cada uma de suas bochechas quando ergueu
o rosto de seu caderno. A mesma luz mirrada
caía no mesmo ponto mirrado
do chão poeirento. Minha mãe assentiu
como se compreendesse. Mas ela
não tinha compreendido uma palavra.
Nada daquilo fazia o menor sentido para ela,
começando pelo momento em que saíra de casa
com meu pai. Sabia apenas que
o que quer que estivesse acontecendo
iria custar dinheiro.
Ela enfiou a mão em sua bolsa e retirou
a carteira do meu pai. Nós três,
naquela tarde, dentro daquele quartinho.
Nossas respirações indo e vindo.

Fitamos a carteira por um minuto.
Ninguém dizia nada.
A vida tinha abandonado aquela carteira.
Era velha, suja e rasgada.
Mas era a carteira do meu pai. Então minha mãe a abriu
e olhou lá dentro. E sacou dali
um punhado de dinheiro que pagaria
por aquela última, e a mais espantosa viagem.

Trad.: Cide Piquet

Raymond Carver – My Dad’s Wallet

Long before he thought of his own death,
my dad said he wanted to lie close
to his parents. He missed them so
after they went away.
He said this enough that my mother remembered,
and I remembered. But when the breath
left his lungs and all signs of life
had faded, he found himself in a town
512 miles away from where he wanted most to be.
My dad, though. He was restless
even in death. Even in death
he had this one last trip to take.
All his life he liked to wander,
and now he had one more place to get to.
The undertaker said he’d arrange it,
not to worry. Some poor light
from the window fell on the dusty floor
where we waited that afternoon
until the man came out of the back room
and peeled off his rubber gloves.
He carried the smell of formaldehyde with him.
He was a big man, the undertaker said.

Then began to tell us why
he liked living in this small town.
This man who’d just opened up my dad’s veins.
How much is it going to cost? I said.
He took out his pad and pen and began
to write. First, the preparation charges.
Then he figured the transportation
of the remains at 22 cents a mile.
But this was a round-trip for the undertaker,
don’t forget. Plus, say, six meals
and two nights in a motel. He figured
some more. Add a surcharge of
$210 for his time and trouble,
and there you have it.
He thought we might argue.
There was a spot of color on
each of his cheeks as he looked up
from his figures. The same poor light
fell in the same poor place on
the dusty floor. My mother nodded
as if she understood. But she
hadn’t understood a word of it.
None of it made any sense to her,
beginning with the time she left home
with my dad. She only knew
that whatever was happening
was going to take money.
She reached into her purse and bought up
my dad’s wallet. The three of us
in that little room that afternoon.
Our breath coming and going.
We stared at the wallet for a minute.
Nobody said anything.
All the life had gone out of the wallet.
It was old and rent and soiled.
But it was my dad’s wallet. And she opened
it and looked inside. Drew out
a handful of money that would go
toward this last, most astounding, trip.

Francisco Brines – A Piedade do Tempo

Em que escuro recanto do tempo que morreu
vivem ainda,
a arder, aqueles coxas?

Dão luz ainda
a estes olhos tão velhos e enganados,
que voltam agora a ser o milagre que foram:
desejo de uma carne, e a alegria
do que não se nega.

A vida é o naufrágio de uma obstinada imagem
que já nunca saberemos se existiu,
pois só pertence a um lugar extinto.

Trad.: José Bento

Francisco Brines – La piedad del tiempo

¿En qué oscuro rincón del tiempo que ya ha muerto
viven aún,
ardiendo, aquellos muslos?

Le dan luz todavía
a estos ojos tan viejos y engañados,
que ahora vuelven a ser el milagro que fueron:
deseo de una carne, y la alegría
de lo que no se niega.

La vida es el naufragio de una obstinada imagen
Que ya nunca sabremos si existió,
Pues sólo pertenece a un lugar extinguido.

Paulo Henriques Britto – Uma nova teoria de tudo

Todas as coisas que existem no mundo
fazem sentido. Senão não teria
sentido elas serem. Ou estarem. Tudo
mais depende desse princípio. Os dias

vêm antes das noites, não depois. Nunca
faz parte de sempre, assim como zero
é apenas um número entre outros números.
Toda forma é perfeita: não só a esfera,

que é só mais redonda que as outras – nada
de mais. E todas as proposições
são verdadeiras – se tornam verdade

no instante exato em que são formuladas.
Ficam sem efeito as contradições
todas. (Pronto. Creia. Não faça alarde.)

Rui Chafes

“Só a forma e o vazio são universais; tudo o resto é pó e cinzas.”

Helena Zelic – Dimensões

dimensões

e se todos esses dias
toda a angústia, toda a treva
todos esses sonhos
todos os abraços
toda guerra e invasão
mais as terras dos quilombos
as festas e as decapitações históricas
o grande amor de nossas vidas
a revolução bolivariana
o nosso medo do escuro
os reflexos das poças d’água
o barulho dos bules ferventes
as certezas que escondemos
forem o sonho estranho
de uma cachorra velha
que se mexe, de olhos fechados,
na soleira de um mundo
por completo desconhecido?

Sophia Mello Breyner Andresen – 25 de abril

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Rainer Maria Rilke – Tira-me a luz dos olhos

Tira-me a luz dos olhos; continuarei a ver-te.
Tapa-me os ouvidos; continuarei a ouvir-te.
E, mesmo sem pés, posso caminhar para ti.
E, mesmo sem boca, posso chamar por ti.
Arranca-me os braços e tocar-te-ei
Com o meu coração como com uma mão…
Despedaça-me o coração; e o meu cérebro baterá
E, mesmo que faças do meu cérebro uma fogueira
Continuarei a trazer-te no meu sangue

Trad.: Maria Teresa Dias Furtado

Put out my eyes

Put out my eyes, and I can see you still,
Slam my ears to, and I can hear you yet;
And without any feet can go to you;
And tongueless, I can conjure you at will.
Break off my arms, I shall take hold of you
And grasp you with my heart as with a hand;
Arrest my heart, my brain will beat as true;
And if you set this brain of mine afire,
Then on my blood-stream I yet will carry you