Arquivos mensais: junho 2018
Manuel António Pina – Esplanada
Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,
agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.
O café agora é um banco, tu professora de liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.
Belchior – Comentários a Respeito de John
Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho
Deixem que eu decido a minha vida
Não preciso que me digam de que lado nasce o sol
Porque bate lá o meu coração
Sonho e escrevo em letras grandes de novo
pelos muros do país
João, o tempo andou mexendo com a gente, sim
John, eu não esqueço (oh no, oh no, oh no),
a felicidade é uma arma quente
John, eu não esqueço (oh no, oh no, oh no),
a felicidade é uma arma quente
Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho
Deixem que eu decido a minha vida
Não preciso que me digam de que lado nasce o sol
Porque bate lá o meu coração
Sob a luz do teu cigarro na cama
Teu rosto rouge, teu batom me diz
João, o tempo andou mexendo com a gente, sim
John, eu não esqueço (oh no, oh no, oh no),
a felicidade é uma arma quente
John, eu não esqueço (oh no, oh no, oh no),
a felicidade é uma arma quente
Joan Margarit – Discurso do Método
Já de criança procurava as janelas
para pode fugir com o olhar.
Desde então, se entro em um lugar,
observo com atenção onde deixo meu casaco
e onde está a porta de saída.
Liberdade, para mim, quer dizer fuga.
Há muitas portas no mundo.
Inclusive o sexo, em caso de emergência,
pode sê-lo, embora todas se vão fechando
e, para fugir, depressa fiquem
apenas as janelas da infância.
De par em par abertas para poder saltar.
Trad.: Nelson Santander
Joan Margarit – Discurso del Método
De niño ya buscaba las ventanas
para poder huir con la mirada.
Desde entonces, si entro en un lugar,
miro con atención dónde dejo el abrigo
y dónde está la puerta de salida.
Libertad, para mí, quiere decir huida.
Hay muchas puertas en el mundo.
Incluso el sexo, en caso de emergencia,
puede serlo, aunque todas van cerrándose
y, para huir, muy pronto quedarán
tan solo las ventanas de la infancia.
De par en par abiertas para poder saltar.
Idea Vilariño – Ou foram nove
Talvez tivemos só sete noites
não sei
não as contei
como poderia ter feito.
Talvez não mais que seis
ou foram nove.
Não sei,
mas valeram a pena
como o amor mais duradouro.
Talvez
com quatro ou cinco noites dessas,
mas precisamente como essas,
talvez
seja possível viver
como de um longo amor
uma vida inteira.
Trad.: Nelson Santander
Idea Vilariño – O fueron nueve
Tal vez tuvimos sólo siete noches
no sé
no las conté
cómo hubiera podido.
Tal vez no más que seis
o fueron nueve.
No sé
pero valieron
como el más largo amor.
Tal vez
de cuatro o cinco noches como esas
pero precisamente como esas
tal vez
pueda vivirse
como de un largo amor
toda una vida.
Manuel António Pina – Lugares da infância
Lugares da infância onde
sem palavras e sem memória
alguém, talvez eu, brincou
já lá não estão nem lá estou.
Onde? Diante
de que mistério
em que, como num espelho hesitante,
o meu rosto, outro rosto, se reflecte?
Venderam a casa, as flores
do jardim, se lhes toco, ficam hirtas
e geladas, e sob os meus passos
desfazem-se imateriais as rosas e as recordações.
O quarto eu não o via
porque era ele os meus olhos;
e eu não o sabia,
e essa era a sabedoria.
Agora sei estas coisas
de um modo que não me pertence,
como se as tivesse roubado.
A casa já não cresce
à volta da sala,
puseram a mesa para quatro
e o coração só para três.
Falta alguém, não sei quem,
foi cortar o cabelo e só voltou
oito dias depois, já o
jantar tinha arrefecido.
E fico de novo sozinho,
na cama vazia, no quarto vazio.
Lá fora é de noite, ladram os cães;
e cubro a cabeça com os lençóis.
Paulo Henriques Britto – Queima de Arquivo
Houve um tempo em que eu amava
em cada corpo o reflexo
do que eu queria ter sido.
No fundo do sexo eu buscava
o meu desejo perdido.
Acabei achando o outro
que em mim mesmo destruí.
Foi fácil reconhecê-lo:
de tudo que vi em seu rosto
somente o ódio era belo.
Esse morto adolescente
implacável e virginal
não me perdoa a desfeita.
Não faz mal. Eu sigo em frente.
Nem tudo que fui se aproveita.
De “Álbum”
Eduardo Chirinos – O que meu pai realmente quer de mim
1
Esta noite tive um sonho. Seguia com meu pai
por uma estrada de terra. Os dois íamos a cavalo
e mal trocávamos uma palavra. Ao longe se via
a sombra de alguns salgueiros, as luzes de um povoado
desconhecido e remoto. De repente, meu pai deteve
seu cavalo e perguntou-me se eu sabia para onde íamos.
Respondi que não. Então estamos bem, ele me disse.
2
Os cavalos do sonho sabiam de cor
o caminho. Era caso de abandonar as
rédeas, de deixar-se levar. Isso me causava um
pouco de apreensão, até mesmo um pouco de medo.
Meu pai, por outro lado, parecia muito tranquilo.
Pensei, parece tranquilo porque está morto.
3
Aqui é onde vivo, disse, como se me tirasse
uma venda. Foi muito pouco o que vi. Só um
deserto de pedras, redemoinhos de areia,
ossos amarelos de cavalos. O que você acha?
Não soube o que dizer. Estava com sede e me doía um
pouco a garganta. É um lugar bonito, disse,
mas às vezes gostaria de voltar. Por que
não voltas então?, perguntei. Porque é
mais fácil que tu venhas para cá, disse. E desapareceu.
Trad.: Nelson Santander
Eduardo Chirinos – Lo que mi padre quiere realmente de mí
1
Anoche tuve un sueño. Acompañaba a mi padre
por un camino de tierra. Los dos íbamos a caballo
y apenas cruzábamos palabras. A lo lejos se veía
la sombra de unos sauces, las luces de un pueblo
desconocido y remoto. De pronto, mi padre detuvo
su caballo y preguntó si yo sabía a dónde íbamos.
Le contesté que no. Entonces vamos bien, me dijo.
2
Los caballos del sueño sabían de memoria
el recorrido. Era cuestión de abandonar las
riendas, de dejarse llevar. Eso me causaba un
poco de aprensión, incluso un poco de miedo.
Mi padre, en cambio, parecía muy tranquilo.
Pensé, parece tranquilo porque está muerto.
3
Aquí es donde vivo, dijo como si me quitara
una venda. Fue muy poco lo que vi. Sólo un
páramo de piedras, remolinos de arenisca,
huesos de caballos amarillos. ¿Qué te parece?
No supe qué decir. Tenía sed y me dolía un
poco la garganta. Es un lugar hermoso, dijo,
pero a veces me gustaría regresar. ¿Por qué
no regresas, entonces?, pregunté. Porque es
más fácil que tú vengas me dijo. Y desapareció.
Wislawa Szymborska – Gato num apartamento vazio
Morrer — isso não se faz a um gato.
Pois o que há de fazer um gato
num apartamento vazio.
Trepar pelas paredes.
Esfregar-se nos móveis.
Nada aqui parece mudado
e no entanto algo mudou.
Nada parece mexido
e no entanto está diferente.
E à noite a lâmpada já não se acende.
Ouvem-se passos na escada
mas não são aqueles.
A mão que põe o peixe no pratinho
também já não é a mesma.
Algo aqui não começa
na hora costumeira.
Algo não acontece
como deve.
Alguém esteve aqui e esteve,
e de repente desapareceu
e teima em não aparecer.
Cada armário foi vasculhado.
As prateleiras percorridas.
Explorações sob o tapete nada mostraram.
Até uma regra foi quebrada
e os papéis remexidos.
Que mais se pode fazer.
Dormir e esperar.
Espera só ele voltar,
espera ele aparecer.
Vai aprender
que isso não se faz a um gato.
Para junto dele
como quem não quer nada
devagarinho
sobre as patas muito ofendidas.
E nada de pular miar no princípio.
Trad.: Regina Przybycien
Manuel de Freitas – Grand Hotel København, 326
Onze horas: a tua mão adormecida marca
agora um conto de Karen Blixen
– veremos em breve essa casa cinzenta,
em Helsingør – enquanto eu ouço uma sonata
de Scarlatti tocada por Scott Ross
e sei que também isso ficarei a dever à Dinamarca.
Apontamentos culturais? Podem até chamar-lhes
assim, ignorando a áspera nudez da voz,
o grito comum que viemos suspender aqui.
Lá em baixo, por exemplo, os funcionários do
restaurante, terminado o serviço, abrem
a terceira garrafa de champanhe e fumam
ruidosamente, como se amanhã não existisse.
A questão, no fundo, é apenas esta: há momentos
em que a vida nos parece quase bela,
escolhos onde embatem as mais íntimas certezas.
Talvez adormeçamos lado a lado,
de costas para a morte, e haja corsários ao fundo,
um mar de gelo protegendo-nos da noite.