E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo, prazer, lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro.
E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e de acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.
Arquivos mensais: janeiro 2018
Charles Bukowski – A Retirada
desta vez o negócio acabou comigo.
me sinto como as tropas alemãs
açoitadas pela neve e pelos comunistas
caminhando curvadas
as botas gastas
forradas com papel jornal.
minha condição é tão terrível quanto.
talvez até pior.
a vitória estava tão perto
a vitória estava logo ali.
enquanto ela estava ali diante de meu espelho
mais jovem e bela do que
qualquer outra mulher que eu já conhecera
penteando metros e mais metros de cabelo ruivo
enquanto eu a observava.
e quando ela veio para a cama
estava mais bela do que nunca
e o amor foi muito muito bom.
onze meses.
agora ela se foi
como todas se vão.
desta vez o negócio acabou comigo.
é um longo caminho de volta
mas de volta pra onde?
Trad.: Pedro Gonzaga
Paola Rodrigues – Vida Lúcida
Assim como ninguém explicou o início
As ondas continuam a chegar na costa
Tudo corre sempre em direção ao fim
Os copos caem e as cidades se amontoam em nossas costas
Amar o perdido deixa confundido este coração
Ainda que os dias continuem a nascer
Os ônibus andem, os outros durmam
Meus pés tropeçam em suas pernas
E eu calo a boca ao seu lado
Nada pode o ouvido contra o sem sentido apelo do não
E por que é que não estamos satisfeitos?
Ou por que é que tentamos não estar simplesmente bem com o que é perfeito?
E duvidamos de uma vida lúcida
Depois de alguns cortes encontro vocês, meus amigos
Que também são vidro, cortam e quebram
Tudo por ter duvidado de que não seria assim tão trágico
Mas bom
E volto a sentir areia nos meus pés
As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão
Duvidei e talvez ainda duvide
De que tudo isso tenha como acabar bem
E de tantas outras coisas que hoje são tão bobas
E talvez um dia eu ria de tanto duvidar
De que a vida pode ser grande, com vocês
Em geral a gente tenta não deixar manchas
Nem gritar muito alto só pra manter a ordem das coisas
A dor é muda e a rotina caminha lenta
Acumulando concreto em nossos corpos
Num gigantesco escombro que chamamos de casa
Eu não me esforço pra lembrar
Daquele dia em que nos reconhecemos
Do amor que eu sinto pelo amor que você sente
Por todas as coisas que não sou eu
E por todos os ossos
Esses anos passaram rápido
E eu não pude notar o momento da despedida, pela segunda vez
Talvez eu tivesse dito alguma coisa
Talvez eu tivesse pedido desculpas
Por não ter sido perfeita
Mesmo sabendo que nunca estamos satisfeitos
E por que é que não estamos satisfeitos?
Ou por que é que tentamos não estar simplesmente bem com o que é perfeito?
E duvidamos de uma vida lúcida
Mesmo que visse pouco, eu te vi naquele bar
Num dia em que nada fazia sentido e nem tinha valor
Eu vi em você o amor ébrio e talvez alguma pena,
Você me levou pra casa e abraçamos uma despedida
Como quem dá adeus a um dia único
Depois disso encarei o chão entorpecida e com vergonha da verdade
Vi a areia suja em nossos pés
A noite segue seca
E assim como ninguém explicou o início
Longe, as ondas continuam a chegar na costa
Tudo corre sempre em direção ao fim
Os copos continuam a cair
E amar o perdido ainda deixa confundido este coração
Mikhail Svetlov – Dois
Deitaram-se junto à fogueira,
estenderam os corpos sem forças,
e uma bala atravessou a têmpora de um
entrando pela nuca do outro.
Abraçados às metralhadoras,
de que cuidavam escrupulosamente,
nem a tempestade, nem a neve convertida em gelo
conseguiram retirar-lhas.
Um oficial aproximou-se dos moribundos,
tirou-os dos braços um do outro desajeitadamente
e enquanto o seu olho verificava a mira
ordenou que entregassem a arma.
Mas os rostos mortos não revelam medo,
a alegria adormeceu nas suas expressões…
E o terceiro logo sentiu frio
face à sinistra felicidade daqueles dois.
1924
Versão de Diogo Vaz Pinto, a partir de tradução de Natalia Litvinova
(http://omelhoramigo.blogspot.com.br/2016/12/dois.html)
Miquel Martí i Pol – No ano que vem
No ano que vem já ninguém reparará em nós.
Agora somos recém-chegados e fitam-nos com desprezo
até mesmo os que andam por cá há quarenta anos
e já nada os muda.
Temos um ar aturdido e tenaz
que faz rir as mulheres
e quase nem nos atrevemos a mexer a cabeça
por temor a perder o equilíbrio.
Daqui a um ano, porém, já teremos mudado de pele,
envergaremos a roupa com mais desenvoltura,
perseguiremos as raparigas
e teremos aprendido a dizer palavras duras
sem que sintamos as pernas a tremer.
Chegará então o momento de esperar os outros,
os recém-chegados do turno de entrar no jogo
e faremos parte, já para sempre, do bando que odiávamos,
será o momento de ensaiar formas novas
de ganhar o fôlego de uma gargalhada
de estúpida cumplicidade
ou talvez uma ruidosa blasfémia de surpresa.
E envelheceremos depressa,
pois nada cansa tanto quanto conquistar
em só um ano tudo aquilo que almejávamos.
Trad.: Miguel Filipe Mochila
Miquel Martí i Pol – El año que viene ya nadie se fijará en nosotros…
El año que viene ya nadie se fijará en nosotros.
Ahora somos recién llegados y nos miran con desprecio
hasta los que llevan aquí cuarenta años
y nada les altera.
Tenemos un aire aturdido y tenaz
que hace reír a las mujeres
y apenas si nos atrevemos a girar la cabeza
por temor a perder el equilibrio.
De aquí en un año, sin embargo, habremos mudado la piel,
llevaremos la ropa con más desenvoltura,
perseguiremos a las chicas
y tendremos que decir palabras duras
sin sentir que nos tiemblan las piernas.
Será entonces el momento de esperar a los otros,
a los recién llegados con turno de entrar en el juego
formando parte ya para siempre del bando que odiábamos
el momento de intentar formas nuevas
de ganarse el halago con una risotada
en estúpida complicidad,
o tal vez una ruidosa blasfemia de sorpresa.
Y envejeceremos deprisa,
porque nada cansa tanto como lograr
en un solo año todo lo que anhelábamos.
Manuel de Freitas – “Pela manhã o gato…”
Pela manhã o gato estende-se
vagaroso nesse impreciso lugar
em que luz e sombra
se entretecem. Nas pedras
rondantes do que sempre chamámos
a nossa casa, esse sonho
de irmos por detrás das janelas
encarcerados nas agrestes
paredes do amor.
Todas as manhãs, enquanto
a escola me espera, o
gato é tão certo como os passos
que dele se desviam. Um mero
olhar, a melancolia
de depois te dizer já sem o mesmo encanto
a sua negra quietude, o silêncio
em que se move.
Estamos todos, eu tu e o gato,
neste estranho sossego
de a morte ser um dia destes,
entre luz e sombra.
César Cantoni – Uma Arte Invisível
O poeta caminha
nu pelas ruas,
mas ninguém o vê.
O poeta vai ao cinema,
desvia de putas,
anda de ônibus,
sempre nu,
mas as pessoas
olham para outro lado.
O poeta não tem meios
de chamar a atenção
porque a poesia
é uma arte invisível.
A poesia se escreve
sem palavras.
Trad.: Nelson Santander
César Cantoni – Un arte invisible
El poeta camina
desnudo por la calle,
pero la gente no lo ve.
El poeta va al cine,
sale de putas,
viaja en colectivo,
siempre desnudo,
pero la gente
mira para otro lado.
El poeta no tiene modo
de llamar la atención,
porque la poesía
es un arte invisible.
La poesía se escribe
sin palabras.
Carlos Marzal – Estranha Forma de Vida
A Vicente Gallego
Sob a bigorna de fogo
que o sol de agosto acende
no muro caiado, derretem-se as pétalas
de uma sedenta buganvília grená.
Que estranha esta beleza moribunda,
esta desaforada desnudez grandiosa,
esta sílaba breve do milagre.
Trad.: Inês Dias
Carlos Marzal – Extraña Forma de Vida
Bajo el yunque de fuego
que el sol de agosto enciende
en el muro encalado, se derriten los pétalos
de una sedienta buganvilia grana.
Qué extraña esta belleza moribunda,
esta desaforada desnudez grandiosa,
esta sílaba escueta del milagro.
Billy Collins – Pardal de Natal
A primeira coisa que ouvi esta manhã
foi um rápido bater de asas, suave, insistente –
asas contra vidro, como se percebeu depois,
lá em baixo, quando vi um pequeno pássaro
agitando-se na moldura de uma janela alta,
tentando lançar-se através do
enigma de vidro até a ampla luz.
E então um ruído na garganta do gato
que estava pregado ao tapete
contou-me como o pássaro ficara lá dentro,
transportado na noite fria
através da portinhola na porta da cave,
e posteriormente solto do aperto suave dos dentes.
De pé numa cadeira, prendi as suas pulsações
numa camisa e levei-o para a porta,
tão leve que parecia
ter desaparecido no ninho de tecido.
Mas cá fora, quando abri as mãos,
ele saiu disparado para o seu elemento,
mergulhando sobre o jardim adormecido
num espasmo de bater de asas
e desaparecendo sobre um renque alto de acácias.
Durante o resto do dia,
senti o seu vibrar selvagem
contra a palma das mãos, sempre que pensava
nas horas que a ave deve ter passado
presa nas sombras da sala,
escondida nos ramos pontiagudos
da nossa árvore decorada, onde respirou
entre anjos metálicos, maçãs de louça, estrelas de verga,
os seus olhos abertos, como os meus, deitado aqui esta noite,
imaginando este pardal sortudo e raro
aconchegado agora num arbusto de azevinho,
com a neve caindo através da escuridão, sem uma aragem.
Ana Hatherly – A Verdadeira Mão
A verdadeira mão que o poeta estende
não tem dedos:
é um gesto que se perde
no próprio ato de dar-se
O poeta desaparece
na verdade da sua ausência
dissolve-se no biombo da escrita
O poema é
a única
a verdadeira mão que o poeta estende
E quando o poema é bom
não te aperta a mão:
aperta-te a garganta