Raymond Carver – Medo

Medo de ver a polícia estacionar à minha porta.
Medo de dormir à noite.
Medo de não dormir.
Medo de que o passado desperte.
Medo de que o presente alce voo.
Medo do telefone que toca no silêncio da noite.
Medo de tempestades elétricas.
Medo da faxineira que tem uma pinta no queixo!
Medo de cães que supostamente não mordem.
Medo da ansiedade!
Medo de ter que identificar o corpo de um amigo morto.
Medo de ficar sem dinheiro.
Medo de ter demais, mesmo que ninguém vá acreditar nisso.
Medo de perfis psicológicos.
Medo de me atrasar e medo de ser o primeiro a chegar.
Medo de ver a letra dos meus filhos em envelopes.
Medo de que eles morram antes de mim, e que eu me sinta culpado.
Medo de ter que morar com a minha mãe em sua velhice, e na minha.
Medo da confusão.
Medo de que este dia termine com uma nota infeliz.
Medo de acordar e ver que você partiu.
Medo de não amar e medo de não amar o bastante.
Medo de que o que amo se prove letal para aqueles que amo.
Medo da morte.
Medo de viver demais.
Medo da morte.

Já disse isso.

  • Trad.: Rubens Figueiredo

Maria Cecilia Brandi – A Dança

Se a festa começou às dez e meia
e terminou por volta das quatro
teve trezentos e trinta minutos
e como foram setenta e dois convidados
neste meu aniversário
de trinta e oito anos
tive menos de cinco minutos
para conversar com cada um
na verdade ainda menos
pois poucos chegaram no início
e saíram no fim
e eu devo ter ido
ao banheiro quatro vezes e
gasto dois minutos por vez
o que consumiu oito minutos meus
sem falar com ninguém
fui algumas vezes à cozinha
para repor comes e bebes
e nesse tempo também
não falei com meus convidados
só com J. que não via há três anos
devo ter conversado
por mais de dez minutos
havia muita coisa para contar
e tudo parecia ter que ser ali
como se não morássemos a sete
quilômetros de distância
mas havia outras distâncias
impedindo o encontro antes
há algo de mágico nas festas
um fogo reafirmado
talvez seja pelas velas
o tempo derretendo
a conversa para ficar boa
costuma demorar um pouco
as palavras se soltam lentamente
mesmo que o entorno acelere
eram todos meus convidados
mas não pude falar com cada um
.

Por isso a dança
A vida pisando na cara do tempo
o triunfo do coração
o discurso vitorioso dos pés
Os corpos que se dobram para contar
qualquer coisa subjetiva
e fácil de se entender
no ritmo da canção
A interação pública dos corpos
O pacto delicado que ativa as relações
e a ciência que nasce
em pulsações e movimentos
que têm neles mesmos seu fim
O congelamento mental
de alguns instantes
em meio ao fluxo enérgico
como se o corpo solto
libertasse o olhar
Menos dizer e mais sentir
A expansão do sujeito
feito bailarina do Degas:
rodopia em bronze
quente e não protela o gozo
A dança engendra
toda uma plástica:
o prazer de dançar irradia
ao seu redor
o prazer de ver dançar
A única âncora:
o próprio corpo
o mesmo corpo
que produz as ondas
antes das despedidas

Publicado originalmente na Ilustríssima, da Folha:
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/03/1867374-leia-o-poema-inedito-a-danca-de-maria-cecilia-brandi.shtml

Cassiano Ricardo – Depois de Tudo

Mas tudo passou tão depressa
Não consigo dormir agora.
Nunca o silêncio gritou tanto
Nas ruas da minha memória.
Como agarrar líquido o tempo
Que pelos vãos dos dedos flui?
Meu coração é hoje um pássaro
Pousado na árvore que eu fui.

Stig Dagerman – A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer

Sem fé, ouso pensar a vida como uma errância absurda a caminho da morte certa. Não me coube em herança qualquer deus, nem ponto fixo sobre a terra de onde algum pudesse ver-me. Tampouco me legaram o disfarçado furor do cético, a astúcia do racionalista ou a ardente candura do ateu. Não ouso por isso acusar os que só acreditam naquilo que duvido, nem os que fazem o culto da própria dúvida, como se não estivesse, também esta, rodeada de trevas. Seria eu, também, o acusado, pois de uma coisa estou certo: o ser humano tem uma necessidade de consolo impossível de satisfazer.

 

Procuro o que me pode consolar como o caçador persegue a caça, atirando sem hesitar sempre que algo se mexe na floresta. Quase sempre atinjo o vazio, mas, de tempos a tempos, não deixa de me tombar aos pés uma presa. Célere, corro a apoderar-me dela, pois sei quão fugaz é o consolo, sopro dum vento que mal sobe pela árvore. Debruço-me. Tenho-a!

Mas tenho o que entre os dedos? Se sou solitário – uma mulher amada, um desditoso companheiro de viagem. Se sou poeta ou prisioneiro – um arco de palavras com assombro reteso, um súbita suspeita de liberdade. Se sou ameaçado pela morte ou pelo mar – um animal vivo e quente, coração que pulsa sarcástico; um recife de granito bem sólido.
Sendo tudo isso, é sempre escasso o que tenho!

As formas de consolo: se procuro umas, outras há que me perseguem sem que eu as convoque. Sussurram odiosas. Enchem-me o quarto de murmúrios.
O prazer: “Entrega-te sem restrições”!
O talento: “Usa-me tão mal como a mim mesmo”!
A minha sede de gozo: “Só os gulosos sabem viver”!
A solidão: “Despreza os homens”!
Este desejo de morte: “Fere, Mata”!»

Bem estreito é o fio da navalha! Entre dois perigos me equilibro: de um lado ameaça-me a ávida boca do excesso, do outro a amargura da avareza que de si mesma se alimenta.

E teimo na recusa de optar entre a orgia e a ascese, ainda que com isso me sujeite ao suplício em brasa dos desejos. Não sou livre nos meus atos, por isso tudo me pode ser desculpado.

O que procuro para a vida não é uma desculpa, mas exatamente o seu contrário: é o perdão que busco. Descubro, afinal, que se não levar em conta a minha liberdade, todo o consolo é enganador, mera imagem refletida do desespero. De fato, assim que o desespero me diz – “perca a esperança, o dia não passa de um momento de luz entre duas noites”, há uma falsa voz que me grita – “tenha confiança, a noite não é mais que um momento de trevas entre dois dias”.

A humanidade, porém, não é de palavras que precisa; anseia por um consolo que ilumine. E mesmo aquele que deseje tornar-se mau — agir como se todos os atos fossem defensáveis — deve ter ao menos a bondade de notar quando o consegue.

Ninguém pode enumerar todos os casos em que o consolo é uma necessidade. É impossível saber quando cairá o crepúsculo, impossível enumerar todos os casos em que o consolo se fará necessário. A vida não é um problema que possa resolver-se dividindo a luz pela escuridão ou os dias pelas noites, mas sim uma viagem imprevisível entre lugares que não existem.

Por vezes, à beira-mar, no perpétuo movimento das águas e no eterno fugir do vento, sinto o desafio que a eternidade me lança. Pergunto-me então o que vem a ser o tempo, e descubro que não passa do consolo que nos resta por não durarmos para sempre. Miserável consolo que só os Suíços enriquece…

Noites há em que, sentado à lareira, no quarto mais resguardado de todos, sinto subitamente a morte cercar-me: no fogo, nos objetos pontiagudos que me rodeiam, no peso do teto e na massa das paredes; na água, na neve, no calor, no meu sangue. Pergunto-me então o que vem a ser a nossa muito humana sensação de segurança, e percebo que não passa de um consolo para o fato de a morte ser o que há de mais próximo à vida. Pobre consolo, que não cessa de nos recordar o que desejaria fazer-nos esquecer!

Decido encher todas as minhas páginas em branco com as mais belas combinações de palavras que seja capaz de engendrar. E depois, porque quero assegurar-me que a vida não é absurda e não me encontro só sobre a terra, reúno todas num livro e ofereço-o ao mundo. Este, retribui-me com a riqueza, a glória e o silêncio. Mas não sei que fazer com este dinheiro nem que prazer tirar de contribuir para o progresso da literatura, pois só desejo o que jamais obterei — a certeza de que as minhas palavras tocaram o coração do mundo. É então que me pergunto o que vem a ser o meu talento, e descubro que não passa de uma forma de me consolar da solidão. Risível consolo — que apenas me torna cinco vezes mais pesada a solidão.
Nesse animal que, veloz, atravessa a clareira, por vezes capaz de ver encarnada a liberdade e ouvir uma voz que me insinua: “Vive com simplicidade, frui do que desejas e não temas as leis”! Excelente conselho. Mas de que se trata senão de uma forma de consolo para o fato da liberdade não existir? Impiedoso consolo — para quem sabe que o Homem levou milhões de anos para não conseguir ser senão um lagarto, podre de indiferença!

Quando, por fim, me apercebo que esta terra é uma vala comum, onde Salomão, Ofélia e Himmler repousam lado a lado, concluo que tanto o crápula como a infeliz têm o mesmo fim que o sábio. Por isso, para uma vida falhada, a morte pode tornar-se numa forma de consolo — e bem atroz, sobretudo para quem na vida queria encontrar forma de vencer a morte.

Não possuo filosofia, em que possa mover-me como o peixe na água ou o pássaro no céu. Tudo em mim é um duelo, uma luta travada a cada minuto da vida entre falsas e verdadeiras formas de consolo. Umas não fazem senão aumentar a impotência e tornar-me mais fundo o desespero, outras são fonte de temporária libertação. Falsas e verdadeiras! Deveria antes dizer verdadeira, pois só existe uma consolação verdadeiramente real: a que me diz que sou um homem livre, um indivíduo inviolável, ser soberano no interior dos seus limites.
Mas a liberdade começa na escravidão e a soberania na dependência. O sinal mais vivo da servidão é o medo de viver. O definitivo sinal de liberdade é o fato de o medo deixar espaço ao gozo tranquilo da independência.

Dir-se-á que preciso ser dependente para conhecer o gozo de ser livre! É certamente verdade. À luz dos meus atos, percebo que toda a minha vida parece não ter tido por objetivo senão construir o seu próprio infortúnio: sempre me escravizou o que devia tornar-me livre.

Outros homens têm outros mestres. A mim o talento torna-me escravo ao ponto de não ousar em pregá-lo — tal é o medo de o ter perdido. Mais: subjugo-me de tal modo ao meu nome, que mal me atrevo a escrever uma linha, não vá esta manchá-lo. E, quando se instala a depressão, é dela que sou também escravo. O meu maior desejo é retê-la. O meu prazer mais forte, sentir que tudo o que valho residia no que julgo ter perdido: essa capacidade de gerar beleza a partir do que é em mim desespero, desgosto e fraqueza. Com amargo prazer desejo ver ruir o que arquitetei e ver-me, eu também, envolto na neve do esquecimento. Mas quê? A depressão é uma boneca russa, e na última boneca estão a faca, a lâmina de barbear, o veneno, as águas profundas e o salto para um grande abismo. De todos esses instrumentos de morte me torno escravo. Perseguem-me como cães, a não ser que o cão seja apenas eu. Parece-me então ser o suicídio a única prova da liberdade humana.
Porém — não sei ainda de onde nem como — sinto que se aproxima o milagre da libertação. E a eternidade, que há bem pouco me assombrava, testemunha agora este acesso à liberdade: esta descoberta súbita e simples de que ninguém, nenhum poder, nenhum ser humano, tem o direito de me forçar ao ponto de secar em mim o desejo de viver.

Que é do mar se os rios se recusam? Estou, afinal, perto do mar e da sua ciência. Ninguém pode exigir ao mar que traga todos os barcos, ou ao vento que encha todas as velas. De igual modo, ninguém tem o direito de me exigir que viva prisioneiro de certas funções. A minha divisa não é o dever antes de tudo, mas a vida acima de tudo. Como os outros homens, tenho direito a alguns momentos em que possa sentir-me à parte, em que possa saber que para além de pertencer a essa massa anônima chamada população mundial, sou também uma unidade autônoma.

Só nesses instantes me liberto de tudo o que na minha vida foi causa de desespero. Reconheço que o mar e o vento não deixarão de me sobreviver e que a eternidade nem sequer de mim se lembra. Por que me hei-de eu lembrar dela? A vida só é curta se a coloco no patíbulo do tempo. As suas possibilidades só são limitadas se me ponho a contar o número de palavras ou livros que a morte me dará ainda tempo de acender. Mas por que me hei-de eu pôr a contar? No fundo, o tempo de nada serve, inútil instrumento de medida que só regista o que a vida já me trouxe.

Na verdade, nada do que é importante e acontece e me faz vivo, tem a ver com o tempo. O encontro com um ser amado, uma carícia na pele, a ajuda no momento crítico, a voz solta de uma criança, o frio gume da beleza – nada disso tem horas e minutos. Tudo se passa como se não houvesse tempo. Que importa se a beleza é minha durante um segundo ou por cem anos? A felicidade não só se situa à margem do tempo, como nega toda a relação deste com a vida.

Assim, num só movimento, liberto os ombros do peso de dois fardos: o tempo e as tarefas que teimam em me exigir. Nem a vida é mensurável nem viver é uma tarefa. O salto do cabrito ou o nascer do sol não são tarefas. Como há-de sê-lo a vida humana – força surda a crescer na dor da perfeição? E o que é perfeito não desempenha tarefas. O que é perfeito labora em estado de repouso. É absurdo pretender que a função do mar seja exibir armadas e golfinhos. Evidentemente que o faz – mas preservando toda a sua liberdade. Que outra tarefa a do homem senão viver? Faz máquinas? Escreve livros? Faça o que fizer poderia muito bem fazer outra coisa. Não é isso que importa. Importa é saber-se livre como qualquer outro elemento da criação. Importa é saber-se um fim autônomo, que repousa em si mesmo como uma pedra sobre a areia.

Posso até isentar-me do poder da morte. É verdade que não consigo afastar a ideia que ela se me cola constantemente aos calcanhares. Muito menos sou capaz de lhe negar realidade. Mas posso aniquilar a sua ameaça, evitando escorar a minha vida em pontos de apoio tão precários como o tempo e a glória.

Aqui é que não é lugar de permanência: eternamente voltado para o mar a comparar a sua liberdade com a minha. Chegará o momento de retomar o caminho da terra e enfrentar os responsáveis pela opressão que me faz vítima. Serei forçado a reconhecer que o homem deu vida a formas que, pelo menos na aparência, se revelam mais fortes do que ele. Mesmo a minha recente liberdade não é suficiente para as fatigar, mas somente para suspirar sob o seu peso.

Entretanto, entre as exigências que pesam sobre o homem, sei distinguir as exigências absurdas das inelutáveis. E absurdo é termos perdido para sempre uma forma de liberdade: a que advém de se possuir um elemento próprio. O peixe, tal como o pássaro e o animal terrestre, têm o seu. Thoreau ainda podia contar com a floresta de Walden – mas onde está hoje a floresta na qual o ser humano prove que pode viver livre, e não limitado pelos rígidos moldes da sociedade?

Sou obrigado a responder: em parte alguma. Se desejo viver livre, é por enquanto necessário que o faça no interior desses moldes. Sei que o mundo é mais forte do que eu. E para resistir ao seu poder só me tenho a mim. O que já não é pouco. Se o número não me esmagar, sou, também eu, um poder. E enquanto me for possível empurrar as palavras contra a força do mundo, esse poder será tremendo, pois quem constrói prisões expressa-se pior do que quem se bate pela liberdade. E no dia em que só o silêncio me restar como defesa, então será limitado, pois gume algum pode fender o silêncio vivo.

É este o meu único consolo. Sei que as recaídas no desespero serão profundas e numerosas, mas a lembrança do milagre da libertação leva-me como uma asa a um fim que me inebria: um consolo que seja mais do que apenas isso, e mais vasto que uma filosofia: que seja, enfim, uma razão de viver.

Pedro Salinas – de “Presságios”

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Estas frases de amor que se repetem tanto
não são nunca as mesmas.
Todas tem idêntico som,
mas uma vida anima cada uma,
virgem e só, se é que a percebes.
E não te canses nunca
de repetir as palavras iguais:
sentirás a emoção que sente a alma
ao ver nascer a estrela primeira
e ao ver que ela se multiplica, conforme a noite avança,
em outras estrelinhas
de brilho diverso e de alma única.
E assim, ao repetires esta
simples frase de amor, vão-se fixando
infinitas estrelas em teu peito:
um mesmo sol empresta luz a todas,
o sol distante que virá amanhã
quando cessarem as estrelas e as palavras.

Trad.: Nelson Santander

Pedro Salinas – “Presagios”

41

Estas frases de amor que se repiten tanto
no son nunca las mismas.
idéntico sonido tienen todas,
pero una vida anima a cada una,
virgen y sola, si es que la percibes.
Y no te canses nunca
de repetir las palabras iguales:
sentirás la emoción que siente el alma
al ver nacer a la estrella primera
y al mirar que se copia, según la noche avanza,
en otras estrellitas
de distinto brillar y de alma única.
Y así al repetir esta
simple frase de amor se van prendiendo
infinitas estrellas en el pecho:
un mismo sol les presta luz a todas,
el sol lejano que vendrá mañana
cuando cesen estrellas y palabras.

Pedro Salinas – Não Quero que te Vás

Não quero que te vás
dor, última maneira
de amar. Sinto-me vivo
quando me martirizas
não em ti, nem aqui,
além: no chão, no ano
de onde tu vieste,
naquele amor por ela
e tudo o que foi.
Nessa realidade
submersa que nega
a si mesma e se empenha
em nunca ter havido,
que só foi um pretexto
que achei para viver.
Se tu não fosses minha,
ó dor, irrefutável,
até creria nisso;
porém, és o que eu tenho.
Tua lei me assegura
que nada foi mentira.
E enquanto eu te sentir,
Tu serás pra mim, dor,
a prova de outra vida
em que não me doías.
A prova indiscutível
De que ela me amou,
Sim, de que ainda a amo.

Trad.: Nelson Santander

 

Pedro Salinas – No quiero que te vayas

No quiero que te vayas
dolor, última forma
de amar. Me estoy sintiendo
vivir cuando me dueles
no en ti, ni aquí, más lejos:
en la tierra, en el año
de donde vienes tú,
en el amor con ella
y todo lo que fue.
En esa realidad
hundida que se niega
a sí misma y se empeña
en que nunca ha existido,
que sólo fue un pretexto
mío para vivir.
Si tú no me quedaras,
dolor, irrefutable,
yo me lo creería;
pero me quedas tú.
Tu verdad me asegura
que nada fue mentira.
Y mientras yo te sienta,
tú me serás, dolor,
la prueba de otra vida
en que no me dolías.
La gran prueba, a lo lejos,
de que existió, que existe,
de que me quiso, sí,
de que aún la estoy queriendo.

Nicanor Parra – Perguntas e Respostas

então, tu achas que vale
a pena assassinar deus
se o mundo puder ser salvo?

– é claro que vale a pena

e vale a pena arriscar
a vida por uma ideia
que pode resultar falsa?

– é claro que vale a pena

pergunto se valerá
a pena comer siri
se vale a pena criar
filhos que se voltarão
contra os seus progenitores?

– é evidente que sim
que não

e que vale a pena

– pergunto se valerá
a pena tocar um disco
a pena ler uma árvore
a pena plantar um livro
se tudo desaparece
se nada perdurará

– talvez não valha a pena
– não chores

– estou sorrindo

– não nasça

– estou morrendo

Trad.: Nelson Santander

 

 

Nicanor Parra – Preguntas y Respuestas

¿qué te parece valdrá
la pena matar a dios
a ver si se arregla el mundo?

-claro que vale la pena

-¿valdrá la pena jugarse
la vida por una idea
que puede resultar falsa?

-claro que vale la pena

-¿pregunto yo si valdrá
la pena comer centolla
valdrá la pena criar
hijos que se volverán
en contra de sus mayores?

-es evidente que sí
que nó

que vale la pena

-Pregunto yo si valdrá
la pena poner un disco
la pena leer un árbol
la pena plantar un libro
si todo se desvanece
si nada perdurará

-tal vez no valga la pena

-no llores

-estoy riendo

-no nazcas

-estoy muriendo

Derek Walcott – O Amor Depois do Amor

Um dia virá
em que, eufórico,
você cumprimentará a si próprio chegando
à sua porta, em seu espelho
e cada um dará ao outro um sorriso de boas-vindas,

e você dirá, sente-se aqui. Coma.
Você amará outra vez o estranho que foi.
Sirva vinho. Reparta o pão. Restitua
o seu coração
para ele mesmo, para o estranho que um dia você amou

por toda sua vida, a quem você ignorou
por outro, que o conhece de cor.
Derrube da estante as cartas de amor,

as fotografias, os bilhetes desesperados,
arranque sua imagem do espelho.
Sente-se. Saboreie a sua vida.

Trad.: Nelson Santander

 

Derek Walcott – Love After Love

The time will come
when, with elation
you will greet yourself arriving
at your own door, in your own mirror
and each will smile at the other’s welcome,

and say, sit here. Eat.
You will love again the stranger who was your self.
Give wine. Give bread. Give back your heart
to itself, to the stranger who has loved you

all your life, whom you ignored
for another, who knows you by heart.
Take down the love letters from the bookshelf,

the photographs, the desperate notes,
peel your own image from the mirror.
Sit. Feast on your life.

Rainer Maria Rilke – A nós nos cabe andar

I.22

A nós, nos cabe andar.
Mas o tempo, os seus passos,
são mínimos pedaços
do que há de ficar.

É perda pura
tudo o que é pressa;
só nos interessa
o que sempre dura.

Jovem, não há virtude
na velocidade
e no voo aonde for.

Tudo é quietude:
escuro e claridade,
livro e flor.

Trad.: Augusto de Campos

Roger Wolfe – Pálpebra

Pedro Salinas
disse num poema
que não quer deixar de sentir
a dor da ausência
da mulher que ama
porque isso é tudo
o que dela fica:
a dor.
Não me recordo das suas palavras exactas.
Ele di-lo melhor do que eu.
Eram outros tempos.
Salinas está morto.
A mulher que ele amava também.
Em breve o estaremos todos.
A vida é uma simples pálpebra.
Abre os olhos
e fecha-os.

Trad.: Pedro Gomes Sena