Torquato Neto – Cogito

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim

Manuel Bandeira – Versos de Natal

Espelho, amigo verdadeiro,
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!

Mas se fosses mágico,
Penetrarias até o fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta.

Carlos Rennó – Todas Juntas Num Só Ser

 

Intérprete: Lenine

Não canto mais Bebete nem Domingas
Nem Xica nem Tereza, de Ben Jor;
Nem Drão nem Flora, do baiano Gil;
Nem Ana nem Luiza, do maior;
Já não homenageio Januária,
Joana, Ana, Bárbara, de Chico;
Nem Yoko, a nipônica de Lennon;
Nem a cabocla, de Tinoco e de Tonico;

Nem a tigresa, nem a vera gata,
Nem a camaleoa, de Caetano;
Nem mesmo a linda flor de Luiz Gonzaga,
Rosinha, do sertão pernambucano;
Nem Risoflora, a flor de Chico Science –
Nenhuma continua nos meus planos.
Nem Kátia Flávia, a flor de Fausto Fawcett;
Nem Anna Júlia, de Camelo, dos Hermanos.

Só você,
Hoje eu canto só você;
Só você,
Que eu quero porque quero, por querer.

Não canto de Melô pérola negra;
De Brown e Herbert, uma brasileira;
De Ari, nem a baiana nem Maria,
Nem a Iaiá também, nem a faceira;
De Dorival, nem Dora nem Marina
Nem a morena de Itapoã;
De Vina, a garota de Ipanema;
Nem Iracema, de Adoniran.

De Jackson do Pandeiro, nem Cremilda;
De Michael Jackson, nem a Billie Jean;
De Jimi Hendrix, nem a doce Angel;
Nem Ângela nem Lígia, de Jobim;
Nem Lia, Lily Braun nem Beatriz,
Das doze deusas de Edu e Chico;
Até das trinta Leilas de Donato
E da Layla de Clapton eu abdico.

Só você,
Canto e toco só você;
Só você,
Que nem você ninguém mais pode haver.

Nem a namoradinha de um amigo
E nem a amada amante de Roberto;
E nem Michelle-ma-belle, do beatle Paul;
Nem Isabel – Bebel – de João Gilberto;
E nem B.B., la femme de Serge Gainsbourg;
Nem, de Totó, na malafemmena;
Nem a Iaiá de Zeca Pagodinho;
Nem a mulata mulatinha de Lalá;

E nem a carioca de Vinicius
E nem a tropicana de Alceu
E nem a escurinha de Geraldo
E nem a pastorinha de Noel
E nem a namorada de Carlinhos
E nem a superstar do Tremendão
E nem a burguesinha de Seu Jorge
E nem a popozuda do Tigrão

Só você,
Elejo e elogio só você,
Só você,
Que nem você não há nem quem nem quê.

De Haroldo Lobo com Wilson Batista,
De Mário Lago e Ataulfo Alves,
Não canto nem Emília nem Amélia:
Nenhuma tem meus vivas! e meus salves!
Nem Polly do nirvana Kurt Cobain
E nem Roxanne, de Sting, do Police;
E nem a mina do mamona Dinho
E nem as mina – pá! – do mano Xis!

Loira de Hervê e loira do É O Tchan,
Lôra de Gabriel, o Pensador;
Laura de Mercer, Laura de Braguinha
(L´aura de Arnaut Daniel, o trovador?);
Ana do Rei e Ana de Djavan,
Ana do outro rei, o do baião:
Nenhuma delas hoje cantarei:
Só outra reina no meu coração.

Só você,
Rainha aqui é só você,
Só você,
A musa dentre as musas de A a Z.

Se um dia me surgisse uma moça
Dessas que, com seus dotes e seus dons,
Inspiram parte dos compositores
Na arte das palavras e dos sons,
Tal como Madelleine, de Jacques Brel,
Ou como Madalena, de Martinho,
Ou como Madalena, de Ivan Lins,
E a manequim do tímido Paulinho;

Ou como, de Caymmi, a moça pRosa
E a musa inspiradora Doralice;
Se me surgisse uma moça dessas,
Confesso que eu talvez não resistisse;
Mas, veja bem, meu bem, minha querida:
Isso seria só por uma vez,
Uma vez só em toda a minha vida!
Ou talvez duas… mas não mais que três…

Só você…
Mais que tudo é só você;
Só você…
As coisas mais queridas você é:

Você pra mim é o sol da minha noite;
É como a rosa, luz de Pixinguinha;
É como a estrela pura aparecida,
A estrela a refulgir, do Poetinha;
Você, ó flor, é como a nuvem calma
No céu da alma de Luiz Vieira;
Você é como a luz do sol da vida
De Stevie Wonder, ó minha parceira.

Você é para mim e o meu amor,
Crescendo como mato em campos vastos,
Mais que a gatinha para Erasmo Carlos;
Mais que a cigana pra Ronaldo Bastos;
Mais que a divina dama pra Cartola;
Que a domna pra De Ventadorn, Bernart;
Que a honey baby para Waly Salomão
E a funny valentine pra Lorenz Hart.

Só você,
Mais que tudo e todas, só você;
Só você,
Que é todas elas juntas num só ser.

Nelson Santander – Sonho Sertanejo

Não gosto de música sertaneja. Quem me conhece sabe que é um estilo musical que não me atrai nem um pouco. Segundo penso, 99% das composições musicais sertanejas não passam de canções simplórias, de melodias pobres enfeitadas com letras mais pobres ainda. E não estou falando só do estilo sertanejo da moda – o tal “sertanejo universitário”, com suas melodias monocórdias, suas letras de rimas pobres, metáforas de mau gosto (“meteoro da paixão”) e temáticas insípidas. Meu desgosto se estende também ao sertanejo que explodiu nos anos 80 – uma vertente mais romântica, cujos expoentes são a dupla Zezé de Camargo e Luciano – e alcança a tal “música sertaneja de raiz” (seja lá o que isso signifique).

Não posso deixar de reconhecer, todavia, que mesmo esse gênero musical legou, em quase todas as suas fases, algumas canções que se não podem ser equiparadas aos melhores trabalhos de Chico, Caetano ou Tom Jobim, não fazem feio em relação ao grosso da MPB. De memória posso citar “Mágoa de Boiadeiro”, de Índio Vago e Nonô Basílio; “Tristeza do Jeca”, de Angelino de Oliveira; “Vida Vida Marvada”, do Rolando Boldrin; “Fogão de Lenha”, de Carlos Colla, Maurício Duboc e Xororó; e “Evidências”, de José Augusto e Paulo S Valle.
Mas o fato é que, pra mim, a maior parte do que já foi composto nesse estilo não presta. Por isso não sou daqueles que gritam “Aêêêê!!!” quando o cantor de barzinho dedilha a introdução daquela canção que começa com o verso “Doente de amor procurei remédio na vida noturna…” Minha reação, nessas horas, está mais pra chamar o garçom e pedir a conta…
Por isso estranhei quando acordei hoje cedo com o refrão de uma música sertaneja que eu não conhecia na cabeça. Ainda na cama fiquei vasculhando na memória para ver se me lembrava de alguma música com a melodia sonhada. Nada. Peguei então o fiapo da letra de que me lembrava no sonho (algo parecido com “vi você com uma toalha embrulhada no corpo”) e joguei no nosso oráculo futurista, que não me decepcionou. Na tela de resultados do google lá estava a canção do meu sonho: “24 Horas de Amor”, de Carlos Cezar e José Fortuna, gravada por Mato Grosso e Mathias nos anos 90, e, mais recentemente, por Bruno e Marrone.
Vocês sabem como são os sonhos: eles brotam do e dialogam diretamente com o nosso subconsciente e por isso quando são bonitos, são absurdamente bonitos, pois revolvem nossos desejos e anseios mais profundos. Portanto, a canção que soava em minha cabeça quando acordei era absolutamente maravilhosa. Arrebatadora. Será que a canção do mundo real também o seria? Teria ela como competir com um sonho?
Foi com essas questões na cabeça que coloquei o fone de ouvidos do smartphone e toquei o play.
Ouvi primeiro a versão de Mato Grosso e Mathias e, na sequência, a de Bruno e Marrone, ambas ao vivo. A versão de Bruno e Marrone é bem melhor do que a da outra dupla, seja pelo registro vocal dos goianos, que é superior tecnicamente, seja pela banda de apoio que acompanha a dupla – muito competente e profissional. Diante disso, ouvi uma vez mais a mesma música nessa versão. E outra. E outra.
Ok, se formos analisar a composição com olhos críticos implacáveis chegaremos à conclusão de que estamos diante de uma simples canção romântica, com uma melodia razoável e uma letra singela. Mas, no meu caso, a memória afetiva falou mais alto. A música real não rivalizou com a do sonho. Mas também não perdeu de goleada.
Eu devo ter escutado esta música em algumas oportunidades em bares ou restaurantes com música ao vivo, sem nunca ter reparado na melodia e na letra. Não conscientemente. Mas meu subconsciente tem vida própria e ficou trabalhando na surdina, como um ladrão que arma uma tocaia.
Na letra – simples – o eu-lírico dos compositores descreve uma cena prosaica: ele desperta de manhã sentindo o cheiro do perfume da mulher amada – que está ausente há muito tempo – mas, ao procurá-la olhando ao redor e apalpando o lugar na cama onde ela dormia, só encontra o vazio. O eu-lírico então chora ao lembrar que tudo está acabado. Em seguida constata que o cheiro do perfume é real, o que o faz acreditar que o objeto de seu desejo está ali. Até este ponto da canção, a melodia é suave e cadenciada. O refrão – que acompanha a surpresa revelada neste trecho da letra – é forte e reproduz musicalmente a emoção experimentada pelo eu-lírico ao fazer a grande revelação da música: a mulher amada aparece de repente no quarto, como que por encanto.

“E de repente eu vi
Você sair com a toalha no seu corpo
E se agarrar em mim
Como nos velhos tempos de amor tão louco.

Nada mais sei de nós
Porque morremos abraçados no desejo
Na doação total
Perdidos na loucura destes beijos”

A segunda parte da canção descreve então o encontro amoroso do casal, que vivencia sua paixão por “24 horas sem sair de nossa alcova”, e previsivelmente termina com o casal vivendo feliz para sempre.
Como eu disse, prosaica. Brega, até. Mas por que me comoveu tanto? Tenho alguns palpites.
O primeiro é que a letra narra aquilo que é uma espécie de fantasia adolescente que quase todo mundo tem: a de reencontrar um grande amor perdido de forma semelhante à da canção.
A melodia também, embora simples, é bem bonita, principalmente o refrão, que tem uma força insuspeita e uma mudança de sol para si bemol que empresta um efeito bem interessante à música.
Provavelmente é isso. Não sei.
Mas sei de duas coisas: primeiro, não devemos negligenciar o poder do nosso subconsciente. Ele filtra o mundo de uma maneira cuja lógica só ele entende. Às vezes ele resolve apresentar as conclusões a que chegou ao seu eu consciente. Mas quando isso ocorre, nem sempre o resultado é algo esperado. No caso do meu sonho sertanejo, por exemplo, eu terminei gostando de uma música que faz parte de um estilo musical que eu francamente desprezo.
A segunda coisa de que tenho certeza é a seguinte: vou ficar com a desgraça dessa música na cabeça por um bom tempo…

Philip Larkin – Aubade

De dia, trabalho; à noite, eu meio que encho a cara.
Olho o negror sem som, me levantando às quatro.
Em tempo, a borda da cortina vai estar clara.
Até lá, vejo aquilo que está ali, de fato:
A morte infatigável, um dia mais perto,
Tornando inviável todo pensamento, exceto
O de onde, como e quando a minha vai chegar.
Uma pergunta estéril: mas o horror que eu sinto
Quanto a morrer e ser extinto
Luz outra vez, para se impor e apavorar.

A mente apaga-se ao clarão. Não é o remorso
O bem que não se faz, o amor que não se vive,
O tempo arrancado sem uso — , ou a dor de nossa
Única vida custar tanto a se erguer, livre
De origens torpes, ou jamais se erguer. É vermos
Esse vazio absoluto e sem um termo,
Aquela inevitável extinção final
Aonde vamos nos perder pra sempre. Não estar
Aqui, não estar noutro lugar,
E em breve: nada mais terrível e real.

Esse é um tipo especial de medo, a que trapaça
Nenhuma anula. A religião se empenhou nisto,
Vasto brocado musical roído de traça,
Criado pra fingir que não se morre, e ditos
Especiosos, como “nenhum ser consciente
Pode ter medo daquilo que não se sente”,
Sem ver que este é o medo: não ver, ouvir, tocar,
Cheirar, ter gosto, nada com que refletir,
Ou com que amar, ou a que se unir,
A anestesia da qual ninguém pode voltar.

E permanece assim, na fímbria da visão,
A mancha desfocada, o calafrio que só retrai,
Contínuo, cada impulso, e o torna indecisão.
Coisas talvez não vão se dar — mas esta vai,
E a nossa consciência entra em agonia, entregue a
Horror-fornalha, toda vez que ela nos pega
Sem bebida ou companhia. Coragem não conta:
Visa não assustar os outros. A bravura
Não vai poupar da sepultura.
A morte é a mesma, se você a teme ou afronta.

A luz aumenta aos poucos, toma forma o quarto.
Lá está, tão claro quanto o armário, o que se sabe
E soube sempre, aquilo a que ninguém é apto
A fugir, e não se aceita. A um dos lados cabe
Ceder. Em salas por abrir, nesse entremeio,
Vai soar, de cócoras, o telefone, e o alheio,
Complexo mundo de aluguel vai despertar.
Sem sol e branco como argila é o firmamento.
Há trabalho para ser feito.
Carteiros e médicos vão de lar em lar.

Trad.: Alípio Correia de Franca Neto

Philip Larkin – Eu Comecei a Dizer

Eu comecei a dizer
“Um quarto de século”
Ou “trinta anos atrás”
Sobre minha própria vida.

Isso me deixa sem fôlego
É como despencar e arremeter
Acenando em largos giros
Através do céu vazio.

Tudo o que resta acontecer
São algumas mortes (incluindo a minha).
Em que ordem, e de que maneira,
É o que resta saber.

Trad.: Luiz Roberto Guedes

Philip Larkin – As Árvores

As árvores se põem a enfolhar
Como algo quase expresso. Seus brotos,
Tenros, estão se estendendo, soltos;
Seu verde é uma espécie de pesar.

Renascem, ou é a gente que vem a
Envelhecer? Não, morrem, por certo.
O truque anual de um novo aspecto
Está inscrito nos anéis da lenha.

E cada castelo móvel, no mês
De maio, em fronde espessa, parece
Dizer: esse ano morreu. Comece
Outra vez, outra vez, outra vez.

Trad.: Alípio Correia de Franca Neto

Miguel Torga – Agenda

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Miguel Torga – Agenda

Folheio a vida
Num calendário velho.
Dias riscados, como contas pagas.
Domingos de repouso,
Segundas de trabalho
Sábados de cansaço,
Sem nenhum sentido.
No abismo do nada,
O nada, apenas.
Quem sofreu nestas páginas vazias,
Tão frias,
Tão serenas?

William Carlos Williams – Estas

ESTAS

são as semanas desoladas, sombrias
em que na sua aridez a natureza
rivaliza com a estupidez humana.

O ano despenha-se na noite
e o coração é um abismo
mais fundo que a noite

nesse vazio varrido pelo vento
sem sol, sem lua nem estrelas
apenas uma estranha luz do pensamento

que lança um tenebroso fogo –
rodando sobre si mesma até
no frio incendiar-se

e revelar ao homem algo que ele
desconhece, não a solidão
em si – não um espectro

ainda que o pudesse abraçar – vazio,
desespero – (gemendo
soluçando) entre

as chamas e os estrondos da guerra;
casas em cujos aposentos
o frio ultrapassa o imaginável,

aqueles que se foram e que amávamos
vazias as camas, úmidos os
sofás, as cadeiras sem uso –

Oculta-os algures
longe do pensamento, deixa-os criar
raízes e crescer, salvo de olhos e ouvidos

ciosos – por si somente.
A esta mina chegam para escavar – todos.
Será isto o contraponto da música mais

suave? A fonte da poesia que
ao ver o relógio parado, diz:
Parou o relógio

que ontem trabalhava tão bem?
e ouve o som das águas do lago
salpicando – agora petrificadas.

Trad.: José Agostinho Baptista