Joan Margarit – Metrô Fontana

Começava a noite nas estreitas
ruas de Gràcia, todas com as luzes
de natal mesclando-se à multidão.
Dos bares repletos nos chegavam
as vozes altas e alegres dos rapazes e das moças.
Cercavam-nos sorridentes os casacos,
os faróis e flashes de luz do comércio,
os casais fugazes em suas motos
com os rostos ocultos pelo capacete.
Via Joana por toda parte:
surgia por toda parte o olhar
do corpo deformado
no qual aprendi o que era a beleza.
Espelhos da noite refletiam
o seu sorriso, o mesmo que se espalhou
por trinta anos em torno de nós.
E perguntei: O que fazes aqui, Joana?
E seu eco respondeu: afasto-me
para romper-vos outra vez a vida.

Trad.: Nelson Santander

METRO FONTANA

Comenzaba la noche en las estrechas
calles de Gracia, todas con las luces
de Navidad mezclándose al gentío.
De los bares repletos nos llegaban
altas y alegres voces de los chicos y chicas.
Nos cercaban sonrientes los abrigos,
farolas y destellos de luz de los comercios,
las fugaces parejas en las motos
con los rostros ocultos por el casco.
Veía en todas partes a Joana:
surgía en todas partes la mirada
del cuerpo contrahecho
donde aprendí qué era la belleza.
Espejos de la noche reflejaban
su sonrisa, la misma que extendió
treinta años en torno de nosotros.
Y pregunté: ¿Qué haces aquí, Joana?
Y su eco contestó: Me alejo
para romperos otra vez la vida.

Joan Margarit – Manhã de domingo com a música de Lluís Claret

Na hospitalidade do sol de inverno
de domingos passados,
estávamos muito tristes com o que desconhecias.
Já os aplausos — como gostavas,
tão séria, dos aplausos — cediam
à peça solene de Berlioz.
A viola — nunca o saberás — já era
a voz acolhedora da Morte.

Lluís subiu ao palco com
seu violoncelo. Não tarda o ouviremos
tocar a «Aria pastoral» de Bach
para dizer-te adeus no Montjuïc.
Para saber para onde vais,
seguiremos o rastro da música.

Trad.: Nelson Santander

MAÑANA DE DOMINGO CON MÚSICA DE LLUÍS CLARET

En la hospitalidad del sol de invierno
de domingos pasados,
estábamos muy tristes por lo que no sabías.
Ya los aplausos —cómo te gustaban,
tan seria, los aplausos— daban paso
a la solemne pieza de Berlioz.
La viola —nunca lo sabrás— ya era
la voz de bienvenida de la Muerte.

Ha salido Lluís al escenario
con el violoncelo. Le oiremos pronto
tocar el «Aria pastoral» de Bach
para decirte adiós en Montjuïc.
Para saber a dónde vas,
seguiremos el rastro de la música.

Joan Margarit – Às quatro da madrugada

Uiva o primeiro cão, e imediatamente
há um eco em um pátio, outros ressoam
ao mesmo tempo em um único latido,
acerbo, sem ritmo nenhum.
Ladram com seus focinhos levantados.
Oh, cães, de onde viestes?
Que manhã me evoca vossa noturna queixa?
Ouço como acossais o sonho de minha filha
de vosso catre, em meio aos excrementos
com os quais demarcastes um território
de becos, pátios, descampados.
Tal como venho fazendo
com meus poemas, de onde uivo
e demarco o território da morte.

Trad.: Nelson Santander

LAS CUATRO DE LA MADRUGADA

Aúlla el primer perro, y enseguida
hay un eco en un patio, otros resuenan
a la vez en un único ladrido,
bronco, sin ritmo alguno.
Ladran con sus hocicos levantados.
Oh, perros, ¿desde dónde habéis venido?
¿Qué mañana me evoca vuestra nocturna queja?
Oigo cómo acosáis al sueño de mi hija
desde vuestro jergón, entre excrementos
con los que habéis marcado un territorio
de callejones, patios, descampados.
Tal como vengo haciendo
con mis poemas, desde donde aúllo
y marco el territorio de la muerte.

Joan Margarit – Amanhecer em Cádiz

Em frente ao hotel, o mar enevoado.
As longas linhas da espuma cinza
desenham uma barreira de recife
diante da balaustrada da praia.
Ouvi teu nome pronunciado na língua
do mar. E ele diz que estás partindo.

Repetem-no as negras, solitárias cegonhas
que em silêncio planam sobre a água.
Nunca saberei o que sabes tu de mim,
ou em que verdade estivemos juntos,
ou se nela estaremos para sempre.
Não pode ser uma dor ruim
se é uma dor que vem de ti
por este mar turvo. Dezembro:
o último dezembro juntos.
Depois, buscar em mim tua voz perdida.

Trad.: Nelson Santander

EL ALBA EN CÁDIZ

Delante del hotel, el mar brumoso.
Las largas líneas de la espuma gris
dibujan una barra de arrecife
ante la balaustrada de la playa.
He oído tu nombre pronunciado
en la lengua del mar. Y dice que te vas.

Lo repiten las negras, solitarias cigüeñas
que en silencio planean sobre el agua.
Nunca sabré qué sabes tú de mí,
ni en qué verdad hemos estado juntos,
ni si en ella estaremos para siempre.
No puede ser un mal dolor
si es un dolor que viene desde ti
por este turbio mar. Diciembre:
el último diciembre juntos.
Después, buscar en mí tu voz perdida.

Joan Margarit – Riera Pahissa

RIERA PAHISSA

[…] why abandon a belief merely because it ceases to be true?
ROBERT FROST

Deixava-te na entrada da escola,
em frente ao estreito portão daquele muro
que, encerrando a horta de um convento,
seguia o leito seco de um riacho.
Por uma pequena ponte de ferro com tábuas
cruzava-se a ravina sobre o brilho
de algumas poucas poças como lágrimas.
Na rua de terra em frente à ponte
um marmorista tinha sua oficina:
recebia-nos, debaixo do pó cinza,
uma fileira de peças encostadas
na parede, como se fosse um pedestal.
Atravessavas, as muletas soando nas tábuas
e, já na porta, antes de cruzar o muro,
detinhas-te para sorrir para mim.

Amava aquele lugar desmitificado:
sua solidez fora, um dia, espiritual
e, talvez, aquela fosse a evangélica
porta estreita de um mundo
mais duro, mas mais esperançoso.
Sobre o chão de cimento, na grade
da rua de terra, alguém coberto
pelo pó de mármore da oficina
deixava pão molhado para os pardais.
Costumávamos parar para vê-los:
não se assustavam, sempre buliçosos
entre as migalhas na grade,
enquanto o primeiro sol estruturava o dia.
A palavra feliz vem à minha mente
por aquelas manhãs em que, no carro,
ficava esperando até que tu
me dizias adeus com uma mão,
enquanto a outra, com dificuldade,
agarrava as muletas.

Tua despedida, agora, é para sempre,
já não poderás nunca mais entrar nem sair.
Essa fé, hoje devo abandoná-la
só porque deixou de ser verdade?
Não posso estar contigo só porque não estás?
É inverno outra vez, começa o dia.
Por cima do muro do convento,
o sol coloriu de vermelho os mais altos
ramos desfolhados das bananeiras.

Lembro-me de um conto de fadas
no qual uma donzela era enclausurada
atrás de um muro sem portas, contra a qual
se chocou o desespero do cavaleiro.
Isso deve ser o que eu nunca consegui
encarar de frente, e só me salva
a suave inclinação de uma luz do passado.

Vi-te nascer: depois, viver radiante.
Talvez seja porque estou vendo-te morrer.
Ou talvez seja mais do que isso: o ar claro e frio
das manhãs à medida que envelheço
levanta um muro sem nenhuma porta.
Um muro que ilumina
o sol de teu sorriso já sem rosto.

Trad.: Nelson Santander

RIERA PAHISSA

[…] why abandon a belief merely because it ceases to be true?
ROBERT FROST

Te dejaba a la entrada de la escuela,
ante la estrecha puerta de aquel muro
que, encerrando la huerta de un convento,
seguía el cauce seco de la riera.
Por un pequeño puente de hierro con tablones
se cruzaba el barranco sobre el brillo
de algunos pocos charcos como lágrimas.
En la calle de tierra frente al puente
tenía su taller un marmolista:
nos recibía, bajo el polvo gris,
una hilera de piezas reclinadas
en la pared, como si fuese un zócalo.
Cruzabas, las muletas sonaban en las tablas
y, ya en la puerta, sin cruzar el muro,
te detenías para sonreírme.

Amaba aquel lugar desangelado:
su solidez fue, un día, espiritual
y, quizá, aquella era la evangélica
puerta estrecha de un mundo
más duro, pero más esperanzado.
Encima del cemento, en la baranda
de la calle de tierra, alguien cubierto
por el polvo de mármol del taller
dejaba pan mojado a los gorriones.
Nosotros nos parábamos a verlos:
no se asustaban, siempre bulliciosos
entre las migas sobre la baranda,
mientras el primer sol estructuraba el día.
La palabra feliz viene a mi mente
desde aquellas mañanas que, en el coche,
me quedaba aguardando hasta que tú
me decías adiós con una mano,
mientras la otra, con dificultad,
asía las muletas.

Tu despedida, ahora, es para siempre,
ya no podrás entrar ni salir nunca.
Aquella fe, ¿hoy debo abandonarla
sólo porque dejó de ser verdad?
¿No podré estar contigo sólo porque no estés?
Es invierno otra vez, comienza el día.
Por encima del muro del convento,
el sol ha enrojecido las más altas
de las ramas sin hojas de los plátanos.

Tengo presente un cuento de la infancia
en el que a una doncella la encerraban
tras un muro sin puertas, contra el que se estrelló
la desesperación del caballero.
Esto debe de ser lo que nunca he podido
mirar de frente, y me salva sólo
el suave sesgo de una luz pasada.

Te vi nacer: después, vivir radiante.
Quizá es porque te estoy viendo morir.
O quizá son más cosas: el aire claro y frío
de las mañanas mientras me hago viejo
levanta un muro sin ninguna puerta.
Un muro que ilumina
el sol de tu sonrisa ya sin rostro.

Joan Margarit – Enquanto tu dormes

Na praça tomada pela chuva
observo a alta janela iluminada
que não quero perder: não hei de render-me
à condenação da vida.
Este lugar não mais pertence à cidade:
uma praça vazia com a luz
do hospital refletindo nas poças.
As portas automáticas
se abrem de vez em quando e dão lugar
a uma obscura figura corriqueira.
Muletas cruzam, invisíveis, a rua
e se aproximam de um carro, o nosso,
o que nos levará sob a chuva
até o silêncio da dor futura.
Teu calor efêmero.
Triste felicidade a desta paz
enquanto me lembro que tu e eu tivemos
manhãs que retinham nossos olhos.
Apavorava-me tanto
deixar-te sozinha um dia.
Por mais fraca e pequena que seja
a janela iluminada na noite,
esta é a minha consolação:
não haverá maior desamparo do que o meu.

Trad.: Nelson Santander

MIENTRAS TÚ DUERMES

En la plaza tomada por la lluvia
miro la alta ventana iluminada
que no quiero perder: no he de rendirme
a la condena de la vida.
Este lugar ya no es de la ciudad:
una plaza sin nadie con la luz
de hospital reflejándose en los charcos.
Las puertas automáticas
se abren de vez en cuando y dejan paso
a una oscura figura rutinaria.
Unas muletas cruzan, invisibles, la calle
y se acercan a uno de los coches, el nuestro,
el que nos llevará bajo la lluvia
hacia el silencio del dolor futuro.
Tu calidez efímera.
Triste felicidad la de esta paz
mientras recuerdo que tú y yo teníamos
mañanas que guardaban nuestros ojos.
Me daba tanto miedo
dejarte sola un día.
Por débil y pequeña que en la noche
llegue a ser la ventana iluminada,
éste es mi consuelo:
no habrá más desamparo ya que el mío.

Nelson Santander – Apresentação de “Joana”, de Joan Margarit

Em 16 de fevereiro deste ano, falecia, aos 82 anos de idade, vítima de um câncer, Juan Margarit I Consarnau, o grande poeta, arquiteto e catedrático catalão (foi professor da disciplina Cálculos Estruturais da Escola Superior de Arquitetura de Barcelona, de 1964 até sua aposentadoria, em 1998), vencedor do Prêmio Miguel de Cervantes (2019), dentre inúmeras outras distinções literárias. Foi, sem dúvida, um dos maiores poetas catalães de todos os tempos.

Pouco conhecido no Brasil (e mesmo em Portugal), sua morte mereceu escassas resenhas da imprensa brasileira, que não fez justiça à importância do poeta para as letras catalã e espanhola (ele escreveu simultaneamente e publicou toda a sua obra nas duas línguas) e para a literatura mundial. Joana Emídio Marques, do sítio eletrônico Observador, de Portugal, em coluna escrita quando da publicação, naquele país, da coletânea Misteriosamente Feliz (tradução de Miguel Filipe Mochila. Edição/reimpressão: novembro de 2020. Editora: Flâneur / Língua Morta) vai ao ponto:

Abrimos a antologia ‘Misteriosamente Feliz’, lemos uns quantos poemas e ficamos estarrecidos: como é que este poeta nos anda a passar despercebido há mais de 40 anos?

Uma das grandes utopias da modernidade tecnológica, cientifica, digital é prometer-nos de que nada nos escapará. Que estamos no mundo todo sem sair de casa, que tudo o que há a saber e a descobrir está ao nosso alcance num clic. No entanto, muitos de nós não conhecemos Joan Margarit, o enorme poeta que se tornou um dos símbolos da cultura catalã e da Catalunha independente. Seguramente um dos grandes poetas do século XXI.

Margarit não é apenas um dos mais amados e premiados poetas da Catalunha, é também um dos mais lidos poetas contemporâneos espanhóis. Até porque, apesar de escrever em catalão, o poeta encarrega-se ele próprio de traduzir tudo para castelhano, pelo que a sua obra é amplamente conhecida e aumenta a nossa estranheza de não haver editores interessados em divulgá-la.

Joana Emídio Marques (https://observador.pt/especiais/joan-margarit-pode-um-homem-salvar-uma-lingua/ Consulta em 20/08/2021)

Quando me deparei pela primeira vez com a poesia de Joan Margarit, em 2018, soube que ali estava um poeta pouquíssimo conhecido em língua portuguesa que merecia ser lido por essas bandas. Passei então a traduzir poemas colhidos na internet e escolhidos ao sabor de minhas predileções pessoais. O primeiro deles foi Discurso do método, publicado no blog em 07/06/2018. Desde então, já traduzi e publiquei mais de 50 poemas Joan Margarit (há outros no forno, a serem publicados oportunamente). Caso alguém queira conhecer esses poemas, clique na tag com o nome do poeta ou aqui: https://singularidadepoetica.art/category/joan-margarit/

Eventualmente, acabei me deparando, de forma esparsa, com alguns poemas que se destacavam aos meus olhos não só pela qualidade, excepcional, mas acima de tudo pelo tema que eles abordavam: a experiência do poeta diante da morte de uma de suas filhas. Esses poemas, publicados no livro que leva o mesmo nome da filha falecida – Joana – me impressionaram profundamente, não só pela sua temática, mas também por sua beleza dolorosa e cristalina. O primeiro desses poemas que traduzi e publiquei (em julho de 2018) foi Um pobre instante, cujos primeiros versos foram assim traduzidos por mim:

A morte não é mais do que isto: um quarto,
a luminosa tarde na janela,
e este toca-fitas na mesinha
tão desligado como o teu coração
com todas as tuas canções cantadas para sempre.
[…]

Joan Margarit, “Um pobre instante”, in Joana (2002)

Esses versos iniciais são a pura essência do realismo lírico da poesia de Joan Margarit: o verso claro, simples, coeso, o diálogo com os clássicos na técnica de se valer de uma questão de alta indagação (a morte) que vai sendo refinada e resumida a objetos da realidade cotidiana (o quarto, a tarde que brilha do outro lado da janela, o toca-fitas da filha que partiu) para poder ser abarcada em toda sua dimensão e tornar-se suportável. Os outros poemas de Joana que traduzi com o passar do tempo – todos retirados de publicações na internet – eram de igual qualidade.

Mas eu só pude compreender o que Joana realmente representava quando recentemente adquiri este livro e pude ler todos os poemas que o compõem de uma sentada. Não vou sequer tentar descrever o impacto que uma obra dessas causa no apreciador de poesia. Qualquer adjetivação soaria artificial. Peço aos pouco mais de 10 seguidores que eventualmente acessam esta página que o façam por eles mesmos e, se quiserem, deixem seus comentários.

Sim, porque a partir de amanhã começarei a publicar no blog os poemas que compõem Joana, em sua íntegra, na ordem em que foram dispostos no livro.

Antes, porém, a despeito do próprio Joan Margarit esclarecer sucintamente o como, o quando e o porquê de ter escrito este livro, na introdução da obra que será publicada amanhã, cumpre fazer uma breve introdução para quem não conhece o contexto geral em que a obra foi gestada.

Joan Margarit era casado com Mariona Ribalta com quem teve quatro filhos: Mònica, Anna, Joana e Carles. Dos quatro filhos, Joan e Mariona sepultaram dois: Anna, que morreu pouco depois de nascer, em 67. E Joana, falecida em 2001, com 30 anos de idade, de câncer.

Joana nascera com uma síndrome rara (síndrome de Rubinstein-Taybe) que lhe causou uma série de deficiências físicas e mentais – o que não a impediu de ter uma vida afetiva riquíssima no seio da família. Nas palavras de Joan Margarit:

(Joana) Foi, desde muito cedo, uma pessoa muito especial: de um lado — por causa de suas deficiências, que lhe deixaram o amor como única ferramenta para sobreviver — era incapaz de rancor, de orgulho, de quaisquer dos mais ínfimos sinais de maldade. Por outro lado, a paixão pela vida e sua sensibilidade lhe permitiam compreender e utilizar todas as conexões sentimentais com as pessoas. Ter sido seu pai significou estar sempre ao lado do que a vida pode oferecer de mais delicado e bondoso. Isto não quer dizer que tenha sido uma época sem dificuldades, sofrimentos e crises de desespero, especialmente até que a saúde encontrasse o ponto de equilíbrio necessário dentro de suas limitações. Nada se compara a poder cuidar de alguém a quem se ama, mas é difícil encontrar alguém como Joana com quem estabelecer uma relação de uma alegria e ternura tão profundas que, com o passar dos anos, já não se sabe quem cuida de quem.

Joan Margarit, prólogo, in Joana (2002)

Joana já era uma presença importante em outras obras anteriores de Joan Margarit, mas a sua morte marca um antes e um depois na vida e na obra do poeta. Impactado com o sofrimento da última etapa da vida da amada cria, ele começa, oito meses antes da morte dela, a escrever os poemas que comporiam o livro. Joana, com efeito, foi escrito entre outubro de 2000 e setembro de 2001 e publicado em 2002.

Na introdução feita para a republicação da obra em 2020, o também poeta e catedrático Luis García Montero explica:

“Joana (2002) é o livro em que Joan Margarit deixou o testemunho dos últimos dias de vida e morte da sua filha Joana, no ano de 2001 […]. A grave deficiência com que nasceu e a dependência durante anos da mãe e do pai foi uma experiência decisiva, capaz de transformar os sentimentos e as razões do existir. Essa experiência aos poucos foi marcando os passos de um amor, de uma convivência, de uma realização e de uma obra poética. Uma realidade tão contundente e enraizada, vivida com honestidade, não pode ser abordada com retórica, nem com estratégias adoçantes, ou com lisonjas falaciosas, ou com excessos ostensivos. Só pode verbalizar-se ou formalizar-se através de um compromisso íntimo com a verdade. Não faltam experiências e vozes vazias. A poesia é o lugar sagrado onde este poeta secular decidiu não aceitar a mentira, não se enganar, não se camuflar entre enganos ao olhar para o presente, relembrar o passado ou ter ilusões sobre o futuro. E não se trata de levantar em posse de uma Verdade escrita em maiúsculas, mas de comprometer-se a não mentir. Não há dogmatismo sem lealdade ética com as vigas da própria identidade.”

in Joana, Joan Margarit, Editora Fondo de Cultura Económica de España, 1ª edição (23 março de 2020)

É impossível mergulhar na leitura dos poemas de Joana e sair indiferente da experiência. Tentando mitigar a tristeza que permeou todo o período no qual o livro foi escrito, Margarit não nos poupa de nada. Em um verdadeiro striptease da alma, a via crucis emocional que ele é obrigado a percorrer no período nos é apresentada sem censura. Está tudo lá: o sofrimento por um futuro inevitável, sua descrença nos aspectos espirituais da morte, as dolorosas intervenções cirúrgicas às quais a filha foi submetida, o sofrimento e a dor experimentados por ela, a deterioração progressiva da saúde no final, os reflexos familiares, a morte, o funeral, o pós-morte, os remorsos etc.. Comove a coragem com que o poeta enfrenta essa realidade dilacerante, optando conscientemente por não se iludir sobre o futuro, enquanto agarra-se desesperadamente a fiapos de construções intelectuais para tentar seguir em frente, com resignação:

[…]
Mas, se estás morrendo, ainda vives,
e faço irromper a última alegria
em teu rosto cansado enquanto tomo
entre as minhas tuas pequenas mãos.
E repito para mim mesmo:
morrer ainda é viver.
[…]

Joan Margarit, “Súplica”, in Joana (2002)

Por isso, ele não se poupa nem nos poupa de nada: talvez imbuído do objetivo – mencionado no prólogo – de fechar este ciclo para reencontrar, se é que é possível, a Joana de antes, Margarit é assustadoramente sincero:

[…].
Com a testa apoiada na vidraça
peço perdão às minhas filhas mortas,
porque já quase nunca penso nelas.
[…]

Joan Margarit, “No final da noite”, in Joana (2002)

Mas o leitor se decepcionará se julgar que Joana é um recanto apenas de dor e expiação. Embora escrito por um pai devastado pela perda da filha amada, a obra é também o produto final de um artesão da palavra, que, por princípio e técnica compositiva, busca, sempre que possível, fugir ao subjetivismo:

“Tenho a tendência, mesmo nos poemas mais subjetivos, de tirar o máximo possível do sentimento – o sujeito – para que prevaleça um certo senso de objetividade naqueles que leem o poema”

Joan Margarit, em entrevista a José Luis Morante [https://www.joanmargarit.com/category/noticies/page/4/], consultado em 30/08/2021

E, embora profundamente triste, o livro não chega a ser pessimista. Algo que perpassa todo o livro é a percepção da passagem do tempo e da marca que ela deixa em cada um de nós. Assim, os poemas de Joana são sobretudo uma forma de não esquecer, apesar da marcha implacável do tempo. Não esquecer a ternura, o amor, os escassos momentos de deleite.

Sobre Joana já se disse:

[…] Talvez o melhor que se possa dizer sobre um livro seja que ele é necessário. Além da vida e além da literatura, é isso. Poucas vezes esses versos comoventes produziram tamanha sensação de conforto.

Javier Rodríguez Marcos, Conforto e desolação, El País, 17/05/2002 [https://elpais.com/diario/2002/05/18/babelia/1021679426_850215.html], consultado em 21/08/2021

Joana é um livro sofrido, pungente. Mas é também, ao seu modo triste, um livro de esperança e de amor. E, por todas estas razões, imprescindível.

Espero que os que me leem compartilhem comigo do mesmo entusiasmo.

Nelson Santander