Ivan Junqueira – A Sagração dos Ossos

Considerai estes ossos
– tíbios, inúteis, apócrifos –
que sob a lápide dormem
sem prédica que os conforte.

Considerai: é o que sobra
de quem lhes serviu de invólucro
e agora já não se move
entre as tábuas do sarcófago.

Dormem sem túnica ou toga
e, quando muito, um lençol
lhes cobre as partes mais nobres
(as outras quedam-se à mostra,

não dos que estão aqui fora,
mas dos ácidos que o roem
ou do lodo que lhes molha
até a polpa esponjosa).

De quem foram tais despojos
tão nulos e sem memória,
tão sinistros quanto inglórios
em seu mutismo hiperbólico?

Onde andaram? Em que solo
deitaram sêmen e prole?
Foram químicos, astrólogos,
remendões, físicos, biólogos?

Ou nada foram? Que importa
não haja um só microscópio
lhes cevado a magra forma
ou a mais ínfima nódoa?

Existiram. Esse é o tópico
que aqui, afinal, se aborda.
E eis que o faço porque, ao toque
de meus dedos em seus bordos,

tais ossos como que imploram
a mim que os chore e os recorde,
que jamais os deixe à corda
da solidão que os enforca,

nem à sanha do antropólogo
que os vê, não como o espólio
do que foi amor ou ódio,
lascívia, miséria e glória,

mas como a lívida prova
de que o sonho foi-se embora
e dele só resta a escória
numa urna museológica.

E então me pergunto, a sós:
por que desdenhar o outrora
se nele é que ecoa a voz
do que, no futuro, aflora?

Não bastaria uma rótula
para atestar esse cogito,
ergo sum, aqui e agora,
alheio a qualquer prosódia

ou língua em que se desdobre
essa falácia que aposta
no fundo abismo sem orlas
entre o que vive e o que morre?

Baixa uma névoa viscosa
sobre as pálpebras da aurora.
E ali, de pé, sob a estola
de um macabro sacerdote,

sagro estes ossos que, póstumos,
recusam-se à própria sorte,
como a dizer-me nos olhos:
a vida é maior que a morte.

Ivo Barroso – Poema a meu Pai

Meu pai morreu longe de mim
(eu é que estava longe dele).
Tantos anos se passaram
e ainda não lhe vi a sepultura.
Continuo longe.
Mas sua presença me sacode
como um choque elétrico,
uma bebida forte que me arde
por dentro.
Está vivo nos meus dedos,
nos cabelos ralos
– a nuca dá arrepios de se ver.
Está cada vez mais perto de mim
(eu é que estou mais perto dele).

Sophia de Mello Breyner Andresen – Homenagem a Ricardo Reis

Não creias, Lídia , que nenhum estio
Por nós perdido possa regressar
Oferecemos a flor
Que adiámos colher.

Cada dia te é dado uma só vez
E no redondo círculo da noite
Não existe piedade
Para aquele que hesita

Mais tarde será tarde e já é tarde
O tempo apaga tudo menos esse
Longo indelével rasto
Que o não – vivido deixa.

Não creias na demora em que te medes.
Jamais se detém Kronos cujo passo
Vai sempre mais à frente
Do que o teu próprio passo

II
Escuta, Lídia, como os dias correm
Fingidamente imóveis,
E à sombra de folhagens e palavras
Os deuses transparecem
Como para beber o sangue oculto
Que nos tornou atentos

III
Ausentes são os deuses mas presidem.
Nós habitamos nessa
Transparência ambígua,

Seu pensamento emerge quando tudo
De súbito se torna
Solenemente exacto.

O seu olhar ensina o nosso olhar:
Nossa atenção ao mundo
É o culto que pedem.

IV
Falamos junto à luz. Lá fora a noite
Imóvel brilha sobre o mar parado.
À sombra das palavras o teu rosto
Em mim se inscreve como se durasse.

V
Faz tua vida em frente à luz
Um lúcido terraço exacto e branco,
Docemente cortado
Pelo rio das noites.

Alheio o passo em tão perdida estrada
Vive, sem seres ele, o teu destino.
Inflexível assiste
À tua própria ausência.

VI
Irmão do que escrevi
Distante me desejo
Como quem ante o quadro
P’ra melhor ver recua.
Mas tu, Neera, impões
Leis que não são as minhas.
Teus pés batem a dansa
De sombra e desmesura
Em frente da varanda
Fugidia cintilas
Longas mãos brancos pulsos
Torcem os teus cabelos
Quando irrompe da noite
Tua face te toira
E acordas as imagens
Mais antigas que os deuses.

VII
Eros, Neera, sacudiu os seus
Cabelos sobre a testa larga e baixa
Eros – Neera – Antinoos
Irrompe no terraço.

Palmeiras nas ruínas de Palmira
Eros poisou o seu rosto no teu ombro
Eros soltou as feras
Do halali, Neera.

Bruno Tolentino – Via Crucis

A Via Crucis foi uma selvageria,
a Crucifixão uma brutalidade;
mas em três, quatro horas, acabou a agonia,
baixou a eternidade.

Eu vivo aqui, crucificada noite e dia,
carrego da manhã à tarde
o meu lenho de opróbrio e a noite me excrucia,
lenta, fria, covarde.

Ah, como eu preferia
que me crucificassem de uma vez, sem o alarde
de algum terceiro dia!

Mas toca-me seguir nessa monotonia,
a agonia de alçar-me do catre
e abrir de novo os braços, vazia.

Percy Bysshe Shelley – Ozymandias

Disse o viajante de uma antiga terra:
“Duas pernas de pedra, no deserto,
Despontam gigantescas, e bem perto
Há um rosto destroçado que descerra
Os lábios num sorriso de comando
Que atesta: o escultor leu com mestria
Paixões que na matéria inerte e fria
A mão que as entalhou vão perdurando.
‘Meu nome é Ozymândias, rei dos reis:
Desesperai perante as minhas obras!’
Alerta uma inscrição no pedestal.
Mas são ruínas tudo o que ali sobra,
E um mar de areia, em árida nudez,
Circunda a decadência colossal”

Trad.: André Vallias

Olavo Bilac – Nel Mezzo Del Camin…

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha…

E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje, segues de novo… Na partida
Nem o pranto teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.

Machado de Assis – A Carolina

Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs um mundo inteiro.

Trago-te flores, – restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.

Carlos Drummond de Andrade – Destruição

Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir mas o existido
continua a doer eternamente.

Antonio Cicero – Huis Clos

Da vida não se sai pela porta:
só pela janela. Não se sai
bem da vida como não se sai
bem de paixões jogatinas drogas.
E é porque sabemos disso e não
por temer viver depois da morte
em plagas de Dante Goya ou Bosh
(essas, doce príncipe, cá estão)
que tão raramente nos matamos
a tempo: por não considerarmos
as saídas disponíveis dignas
de nós, que em meio a fazes e urina,
sangue e dor nascemos para lendas,
mares, amores, mortes serenas.

Antonio Cicero – História

A história, que vem a ser?
mera lembrança esgarçada
algo entre ser e não-ser:
noite névoa nuvem nada.
Entre as palavras que a gravam
e os desacertos dos homens
tudo o que há no mundo some:
Babilônia Tebas Acra.
Que o mais impecável verso
breve afunda feito o resto
(embora mais lentamente
que o bronze, porque mais leve)
sabe o poeta e não o ignora
ao querê-lo eterno agora.