Cassiano Ricardo – O Hipopótamo

Não adianta o rio lhe ofertar um espelho,
se ele não sabe de quem é a imagem
que o espelho reflete. Se ele pensa que a sua
imagem n’água é a de um outro hipopótamo.

A paisagem por volta tem algo de bíblico
pois é a água da criação, ainda viva,
como no primeiro dia. As árvores folhudas
guardam segredos a ninguém, jamais, contados.

São árvores virgens fotograficamente.
Milhões de borboletas voam em redor
da estrela diurna, as flores são douradas bocas
de uma lúbrica, gigantesca primavera.

Um céu vestido de azul-rei (mal brilha a alva),
completa a inenarrável beleza das coisas.
E eis que, foto-potamo-gráfico, o hipopótamo
emerge dágua e vem, rombudo, estragar tudo.

Tudo parecia em ordem, o céu pernalta,
as aves egípcias, os troncos que simulam
primitivas colunas de algum templo, a lisa
epiderme do rio enrolado na cauda.

Sim, o rio e as demais serpentes que aí moram
dormiam tranquilos, quando a enorme figura
do hipopótamo perturbou tudo e agitou
as cores, e inda fez as borboletas voarem,

elétricas, e as garças gritarem no abismo.
Porém ele, na glória de sua inconsciência,
nem sabe que desfez a alegria das coisas.
Pensa que tudo é festa e a natureza o aplaude.

Até que volta a calma e se refaz o espelho
maravilhoso. Mas, que adianta o espelho
se o que ele quer é a lama? se ele pensa que a sua
imagem n’água é de um outro hipopótamo?

Cassiano Ricardo – O Cacto

This is cactus land.
Here the stone images
are raised…
T. S. ELIOT

Vamos, todos, brincar de cacto
na areia da nossa tristeza.
Uma folha sobre outra,
em caminho do céu intacto.

Uns nos ombros dos outros,
um braço a nascer de outro braço,
uma folha sobre outra,
formaremos um grande cacto.

De cada braço, já no espaço,
nascerá mais um braço, e deste
outros braços, qual ramalhete
de flores para um só abraço.

Filhos da pedra e do pó,
fique aqui embaixo o nosso orgulho,
pisado sobre o pedregulho.
Formaremos, num corpo só,

(uma folha sobre outra,
uma folha sobre outra,
um braço a nascer de outro braço)
a nossa escada de Jacó.

Pra que torre de Babel
ou o Empire State, compacto,
se, uns nos ombros dos outros,
chegaremos ao céu, num cacto?

Uma folha sobre outra
e já uma árvore de feridas
por entre os anjos de azulejo
e as borboletas repetidas.

Que fique aqui embaixo a terra;
lá de cima nós tiraremos
uma grande fotografia
do seu rosto de ouro e prata.

Pra provar a Deus que a terra,
numa fotografia exata,
não é redonda, mas chata;
não é redonda, mas chata.

Pra provar, por B mais H,
que o homem, animal suicida,
já sabe fabricar estrelas…
Se é que Deus disto duvida.

Que iríamos fabricar luas
(se não fora, para Seu gáudio,
o espião nos ter furtado a fórmula)
mais bonitas do que as Suas.

Vamos, todos, brincar de cacto,
uns nos ombros dos outros,
um braço a nascer de outro braço,
uma foha sobre outra.

Vamos subir, de folha em folha,
mais alto do que vai o avião.
Lá onde os anjos jogam pedras
no cão da constelação.

Que outros usem avião a jato
pra uma viagem em linha reta;
nós, filhos da planície abjeta,
subiremos ao céu num cacto.

Uns nos obros dos outros,
injustiças sobre injustiças,
formaremos um verde pacto…
Vamos, todos, brincar de cacto.

Vamos, todos, brincar de cacto.

Carlos Drummond de Andrade – Declaração em Juízo

Peço desculpas de ser
o sobrevivente.
Não por longo tempo, é claro.
Tranqüilizem-se.
Mas devo confessar, reconhecer
que sou sobrevivente.
Se é triste/cômico
ficar sentado na platéia
quando o espetáculo acabou
e fecha-se o teatro,
mais triste/grotesco é permanecer no palco,
ator único, sem papel,
quando o público já virou as costas
e somente baratas
circulam no farelo.

Reparem: não tenho culpa.
Não fiz nada para ser
sobrevivente.
Não roguei aos altos poderes
que me conservassem tanto tempo.
Não matei nenhum dos companheiros.
Se não saí violentamente,
se me deixei ficar ficar ficar,
foi sem segunda intenção.

Largaram-me aqui, eis tudo,
e lá se foram todos, um a um,
sem prevenir, sem me acenar,
sem dizer adeus, todos se foram.
(Houve os que requintaram no silêncio).
Não me queixo. Nem os censuro.
Decerto não houve propósito
de me deixar entregue a mim mesmo,
perplexo,
desentranhado.
Não cuidaram que um sobraria.
Foi isso. Tornei, tornaram-me
sobre – vivente.

Se se admiram de eu estar vivo,
esclareço: estou sobrevivo.
Viver, propriamente, não vivi
senão em projeto. Adiamento.
Calendário do ano próximo.
Jamais percebi estar vivendo
quando em volta viviam quantos! quanto.
Alguma vez os invejei. Outras, sentia
pena de tanta vida que se exauria no viver
enquanto o não viver, o sobreviver
duravam, perdurando.
E me punha a um canto, à espera,
contraditória e simplesmente,
de chegar a hora de também
viver.

Não chegou. Digo que não. Tudo foram ensaios,
testes, ilustrações. A verdadeira vida
sorria longe, indecifrável.
Desisti. Recolhi-me
cada vez mais, concha, à concha. Agora
sou sobrevivente.

Sobrevivente incomoda
mais que fantasma. Sei, a mim mesmo
incomodo-me. O reflexo é uma prova feroz.
Por mais que me esconda, projeto-me,
devolvo-me, provoco-me.
Não adianta ameaçar-me. Volto sempre,
todas as manhãs me volto, viravolto,
com exatidão de carteiro que distribui más notícias.
O dia todo é dia
de verificar o meu fenômeno.
Estou onde não estão
minhas raízes, meu caminho
onde sobrei,
insistente, reiterado, aflitivo
sobrevivente
da vida que ainda
não vivi, juro por Deus e o Diabo, não vivi.

Tudo confessado, que pena
me será aplicada, ou perdão?
Desconfio nada pode ser feito
a meu favor ou contra.
Nem há técnica
de fazer, desfazer
o infeito infazível.
Se sou sobrevivente, sou sobrevivente.
Cumpre reconhecer-me esta qualidade
que finalmente o é. Sou o único, entendem?
de um grupo muito antigo
de que não há memória nas calçadas
e nos vídeos.
Único a permanecer, a dormir,
a jantar, a urinar,
a tropeçar, até mesmo a sorrir
em rápidas ocasiões, mas garanto que sorrio,
como neste momento estou sorrindo
de ser – delícia? – sobrevivente.

É esperar apenas, está bem?
que passe o tempo de sobrevivência
e tudo se resolve sem escândalo
ante a justiça indiferente.
Acabo de notar, e sem surpresa:
não me ouvem no sentido de entender,
nem importa que um sobrevivente
venha contar seu caso, defender-se
ou acusar-se, é tudo a mesma
nenhuma coisa, e branca.

In “As Impurezas do Branco”, publicado pela primeira vez em 1973, quando o poeta estava com 71 anos de idade. Drummond sobreviveu ainda até 17/08/1987.

Conheça outros livros de Carlos Drummond de Andrade clicando aqui

Carlos Drummond de Andrade – Morte no Avião

Acordo para a morte.
Barbeio-me, visto-me, calço-me.
É meu último dia: um dia
cortado de nenhum pressentimento.
Tudo funciona como sempre.
Saio para a rua. Vou morrer.

Não morrerei agora. Um dia
inteiro se desata à minha frente.
Um dia como é longo. Quantos passos
na rua, que atravesso. E quantas coisas
no tempo, acumuladas. Sem reparar,
sigo meu caminho. Muitas faces
comprimem-se no caderno de notas.

Visito o banco. Para que
esse dinheiro azul se algumas horas
mais, vem a polícia retirá-lo
do que foi meu peito e está aberto?
Mas não me vejo cortado e ensanguentado.
Estou limpo, claro, nítido, estival.
Não obstante caminho para a morte.

Passo nos escritórios. Nos espelhos,
nas mãos que apertam, nos olhos míopes, nas bocas
que sorriem ou simplesmente falam eu desfilo.
Não me despeço, de nada sei, não temo:
a morte dissimula
seu bafo e sua tática.

Almoço. Para quê? Almoço um peixe em ouro e creme.
É meu último peixe em meu último
garfo. A boca distingue, escolhe, julga,
absorve. Passa música no doce, um arrepio
de violino ou vento, não sei. Não é a morte.
É o sol. Os bondes cheios. O trabalho.
Estou na cidade grande e sou um homem
na engrenagem. Tenho pressa. Vou morrer.

Peço passagem aos lentos. Não olho os cafés
que retinem xícaras e anedotas,
como não olho o muro do velho hospital em sombra.
Nem os cartazes. Tenho pressa. Compro um jornal. É pressa,
embora vá morrer.

O dia na sua metade já rota não me avisa
que começo também a acabar. Estou cansado.
Queria dormir, mas os preparativos. O telefone.
A fatura. A carta. Faço mil coisas
que criarão outras mil, aqui, além, nos Estados Unidos.
Comprometo-me ao extremo, combino encontros
a que nunca irei, pronuncio palavras vãs,
minto dizendo: até amanhã. Pois não haverá.

Declino com a tarde, minha cabeça dói, defendo-me,
a mão estende um comprimido: a água
afoga a menos que dor, a mosca,
o zumbido… Disso não morrerei: a morte engana,
como um jogador de futebol a morte engana,
como os caixeiros escolhe
meticulosa, entre doenças e desastres.

Ainda não é a morte, é a sombra
sobre edifícios fatigados, pausa
entre duas corridas. Desfalece o comércio de atacado,
vão repousar os engenheiros, os funcionários, os pedreiros.
Mas continuam vigilantes os motoristas, os garçons,
mil outras profissões noturnas. A cidade
muda de mão, num golpe.

Volto à casa. De novo me limpo.
Que os cabelos se apresentem ordenados
e as unhas não lembrem a antiga criança rebelde.
A roupa sem pó. A mala sintética.
Fecho meu quarto. Fecho minha vida.
O elevador me fecha. Estou sereno.

Pela última vez miro a cidade.
Ainda posso desistir, adiar a morte,
não tomar esse carro. Não seguir para.
Posso voltar, dizer: amigos,
esqueci um papel, não há viagem,
ir ao cassino, ler um livro.

Mas tomo o carro. Indico o lugar
onde algo espera. O campo. Refletores.
Passo entre mármores, vidro, aço cromado.
Subo uma escada. Curvo-me. Penetro
no interior da morte.

A morte dispôs poltronas para o conforto
da espera. Aqui se encontram
os que vão morrer e não sabem.
Jornais, café, chicletes, algodão para o ouvido,
pequenos serviços cercam de delicadeza
nossos corpos amarrados.
Vamos morrer, já não é apenas
meu fim particular e limitado,
somos vinte a ser destruídos,
morreremos vinte,
vinte nos espatifaremos, é agora.

Ou quase. Primeiro a morte particular,
restrita, silenciosa, do indivíduo.
Morro secretamente e sem dor,
para viver apenas como pedaço de vinte,
e me incorporo todos os pedaços
dos que igualmente vão perecendo calados.
Somos um em vinte, ramalhete
de sopros robustos prestes a desfazer-se.

E pairamos,
frigidamente pairamos sobre os negócios
e os amores da região.
Ruas de brinquedo se desmancham,
luzes se abafam; apenas
colchão de nuvens, morros se dissolvem,
apenas
um tubo de frio roça meus ouvidos,
um tubo que se obtura: e dentro
da caixa iluminada e tépida vivemos
em conforto e solidão e calma e nada.

Vivo
meu instante final e é como
se vivesse há muitos anos
antes e depois de hoje,
uma contínua vida irrefreável,
onde não houvesse pausas, síncopes, sonos,
tão macia na noite é esta máquina e tão facilmente ela corta
blocos cada vez maiores de ar.

Sou vinte na máquina
que suavemente respira,
entre placas estelares e remotos sopros de terra,
sinto-me natural a milhares de metros de altura,
nem ave nem mito,
guardo consciência de meus poderes,
e sem mistificação eu voo,
sou um corpo voante e conservo bolsos, relógios, unhas,
ligado à terra pela memória e pelo costume dos músculos,
carne em breve explodindo.

Ó brancura, serenidade sob a violência
da morte sem aviso prévio,
cautelosa, não obstante irreprimível aproximação de um perigo atmosférico,
golpe vibrado no ar, lâmina de vento
no pescoço, raio
choque estrondo fulguração
rolamos pulverizados
caio verticalmente e me transformo em notícia.

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Carlos Drummond de Andrade – Uma Hora e mais Outra

Há uma hora triste
que tu não conheces.
Não é a da tarde
quando se diria
baixar meio grama
na dura balança;
não é a da noite
em que já sem luz
a cabeça cobres
com frio lençol
antecipando outro
mais gelado pano;
e também não é a
do nascer do sol
enquanto enfastiado
assistes ao dia
perseverar no câncer,
no pó, no costume,
no mal dividido
trabalho de muitos;
não a da comida
hora mais grotesca
em que dente de ouro
mastiga pedaços
de besta caçada;
nem a da conversa
com indiferentes
ou com burros de óculos,
gelatina humana,
vontades corruptas,
palavras sem fogo,
lixo tão burguês,
lesmas de blackout
fugindo à verdade
como de um incêndio;
não a do cinema
hora vagabunda
onde se compensa,
rosa em tecnicólor,
a falta de amor,
a falta de amor,
A FALTA DE AMOR;
nem essa hora flácida
após o desgaste
do corpo entrançado
em outro, tristeza
de ser exaurido
e peito deserto,
nem a pobre hora
da evacuação:
um pouco de ti
desce pelos canos,
oh! adulterado,
assim decomposto,
tanto te repugna,
recusas olhá-lo:
é o pior de ti?
Torna-se a matéria
nobre ou vil conforme
se retém ou passa?
Pois hora mais triste
ainda se afigura;
ei-la, a hora pequena
que desprevenido
te colhe sozinho
na rua ou no catre
em qualquer república;
já não te revoltas
e nem te lamentas,
tampouco procuras
solução benigna
de cristo ou arsênico,
sem nenhum apoio
no chão ou no espaço,
roídos os livros,
cortadas as pontes,
furados os olhos,
a língua enrolada,
os dedos sem tato,
a mente sem ordem,
sem qualquer motivo
de qualquer ação,
tu vives: apenas,
sem saber por que,
como, para que,
tu vives: cadáver,
malogro, tu vives,
rotina, tu vives
tu vives, mas triste
duma tal tristeza
tão sem água ou carme,
tão ausente, vago,
que pegar quisera
na mão e dizer-te:
Amigo, não sabes
que existe amanhã?
Então um sorriso
nascera no fundo
de tua miséria
e te destinara
a melhor sentido.
Exato, amanhã
será outro dia.
Para ele viajas.
Vamos para ele.
Venceste o desgosto,
calcaste o indivíduo,
já teu passo avança
em terra diversa.
Teu passo: outros passos
ao lado do teu.
O pisar de botas,
outros nem calçados,
mas todos pisando,
pés no barro, pés
n’água, na folhagem,
pés que marcham muitos,
alguns se desviam,
mas tudo é caminho.
Tantos: grossos, brancos,
negros, rubros pés,
tortos ou lanhados,
fracos, retumbantes,
gravam no chão mole
marcas para sempre:
pois a hora mais bela
surge da mais triste.

Carlos Drummond de Andrade – Coisa Miserável

Coisa miserável,
suspiro de angústia
enchendo o espaço,
vontade de chorar,
coisa miserável,
miserável.

Senhor, piedade de mim,
olhos misericordiosos
pousando nos meus,
braços divinos
cingindo meu peito,
coisa miserável
no pó sem consolo,
consolai-me.

Mas de nada vele
gemer ou chorar,
de nada vale
erguer as mãos e olhos
para um céu tão longe,
para um Deus tão longe
ou, quem sabe? para um céu vazio.

É melhor sorrir
(sorrir gravemente)
e ficar calado
e ficar fechado
entre duas paredes,
sem a mais leve cólera
ou humilhação.

Conheça outros livros de Carlos Drummond de Andrade clicando aqui

Machado de Assis – Uma Criatura

image

Machado de Assis – Uma Criatura

Sei de uma criatura antiga e formidável,
que a si mesma devora os membros e as entranhas,
com a sofreguidão da fome insaciável.

Habita juntamente os vales e as montanhas;
e no mar, que se rasga, à maneira de abismo,
espreguiça-se toda em convulsões estranhas.

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo.
cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
parece uma expansão de amor e de egoísmo.

Friamente contempla o desespero e o gozo,
gosta do colibri, como gosta do verme,
e cinge ao coração o belo e o monstruoso.

Para ela o chacal é, como a rola, inerme;
e caminha na terra imperturbável, como
pelo vasto areal um vasto paquiderme.

Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo
vem a folha, que lento e lento se desdobra,
depois a flor, depois o suspirado pomo.

Pois esta criatura está em toda a obra;
cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;
e é nesse destruir que as forças dobra.

Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
começa e recomeça uma perpétua lida,
e sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.

Carlos Drummond de Andrade – Versos à Boca da Noite

Sinto que o tempo sobre mim abate
sua mão pesada. Rugas, dentes, calva.
Uma aceitação maior de tudo,
e o medo de novas descobertas.

Escreverei sonetos de madureza?
Darei aos outros a ilusão de calma?
Serei sempre louco? Sempre mentiroso?
Acreditarei em mitos? Zombarei do mundo?

Há muito suspeitei o velho em mim.
Ainda criança, já me atormentava.
Hoje estou só. Nenhum menino salta
de minha vida, para restaurá-la.

Mas se eu pudesse recomeçar o dia!
Usar de novo minha adoração,
meu grito, minha fome. Vejo tudo
impossível e nítido, no espaço.

Lá onde não chegou minha ironia,
entre ídolos de rosto carregado,
ficaste, explicação de minha vida,
como os objetos perdidos na rua.

As experiências se multiplicaram:
viagens, furtos, altas solidões,
o desespero, agora cristal frio,
a melancolia, amada e repelida,

E tanta indecisão entre dois mares,
entre duas mulheres, duas roupas.
Toda essa mão para fazer um gesto
que de tão frágil nunca se modela,

E fica inerte, zona de desejo
selada por arbustos agressivos.
(Um homem se contempla sem amor,
se despe sem qualquer curiosidade.)

Mas vêm o tempo e a ideia de passado
visitar-te na curva de um jardim.
Vem a recordação, e te penetra
dentro de um cinema, subitamente.

E as memórias escorrem do pescoço,
do paletó, da guerra, do arco-íris;
enroscam-se no sonho e te perseguem,
à busca de pupila que as reflita.

E depois das memórias vem o tempo
trazer novo sortimento de memórias,
até que, fatigado, te recuses
e não saibas se a vida é ou foi.

Esta casa, que miras de passagem,
estará no Acre? na Argentina? Em ti?
Que palavra escutaste, e onde, quando?
Seria indiferente ou solidária?

Um pedaço de ti rompe a neblina,
voa talvez para a Bahia e deixa
outros pedaços, dissolvidos no atlas,
em País-do-Riso e em tua ama preta.

Que confusão de coisas ao crepúsculo!
Que riqueza! Sem préstimo, é verdade.
Bom seria captá-las e compô-las
num todo sábio, posto que sensível:

uma ordem, uma luz, uma alegria
baixando sobre o peito despojado.
E já não era o furor dos vinte anos
nem a renúncia às coisas que elegeu,

Mas a penetração no lenho dócil,
um mergulho em piscina, sem esforço,
um achado sem dor, uma fusão,
tal uma inteligência do universo

comprada em sal, em rugas e cabelo.

Conheça outros livros de Carlos Drummond de Andrade clicando aqui

Affonso Romano de Sant’Anna – Que País é Este?

Para Raymundo Faoro

“¿Puedo decir que nos han traicionado? No.
¿Que todos fueram buenos? Tampoco. Pero
alli está una buena voluntad, sin duda y
sobretodo, el ser así.”
CÉSAR VALLEJO

           
              1

        Uma coisa é um país,
        outra coisa um ajuntamento.

        Uma coisa é um país
        outra um regimento.

        Uma coisa é um país,
        outra o confinamento.

Mas já soube datas, guerras, estátuas
usei caderno “Avante”
    – e desfilei de tênis para o ditador.
Vinha de um “berço esplêndido” para um “futuro radioso”
e éramos maiores em tudo
    – discursando rios e pretensão.

           
    Uma coisa é um país,
    outra um fingimento.

    Uma coisa é um país,
    outra um monumento.

    Uma coisa é um país,
    outra o aviltamento.

Deveria derribar aflitos mapas sobre a praça
em busca da especiosa raiz? ou deveria
parar de ler jornais
            e ler anais
como anal
    animal
       hiena patética
        na merda nacional?
Ou deveria, enfim, jejuar na Torre do Tombo
comendo o que as traças descomem
            procurando
o Quinto Império, o primeiro portulano, a viciosa
            [visão do
paraíso
que nos impeliu a errar aqui?

           
    Subo, de joelhos, as escadas dos arquivos
    nacionais, como qualquer santo barroco
           a rebuscar
  no mofo dos papiros, no bolor
  das pias batismais, no bodum das vestes reais
  a ver o que se salvou com o tempo
  e ao mesmo tempo
     – nos trai.

              2

   Há 500 anos caçamos índios e operários,
   há 500 anos queimamos árvores e hereges,
   há 500 anos estupramos livros e mulheres,
   há 500 anos sugamos negras e aluguéis.

  Há 500 anos dizemos:
        que o futuro a Deus pertence,
        que Deus nasceu na Bahia,
        que São Jorge é que é guerreiro,
        que do amanhã ninguém sabe,
        que conosco ninguém pode,
        que quem não pode se sacode.

Há 500 anos somos pretos de alma branca,
   não somos nada violentos,
   quem espera sempre alcança
   e quem não chora não mama
   ou quem tem padrinho vivo
   não morre nunca pagão.

Há 500 anos propalamos:
   este é o país do futuro,
   antes tarde do que nunca,
   mais vale quem Deus ajuda
   e a Europa ainda se curva.

Há 500 anos
   somos raposas verdes
   colhendo uvas com os olhos,
   semeamos promessa e vento
   com tempestades na boca,
   sonhamos a paz da Suécia
   com suíças militares,

   vendemos siris na estrada
   e papagaios em Haia,

   senzalamos casas-grandes
   e soçobramos mocambos,

   bebemos cachaça e brahma
   joaquim silvério e derrama,

   a polícia nos dispersa
   e o futebol nos conclama,

   cantamos salve-rainhas,
   e salve-se quem puder,

   pois Jesus Cristo nos mata
   num carnaval de mulatas.

Este é um país de síndicos em geral,
este é um país de cínicos em geral,
este é um país de civis e generais.

   Este é o país do descontínuo
   onde nada congemina,

   e somos índios perdidos
   na eletrônica oficina.

Nada nada congemina:
        a mão leve do político
        com nossa dura rotina,

        o salário que nos come
        e nossa sede canina,

        a esperança que emparedam
        e a nossa fé em ruína,

        nada nada congemina:
        a placidez desses santos
        e nossa dor peregrina,

        e nesse mundo às avessas
        – a cor da noite é obsclara
        e a claridez vespertina.

              3

Sei que há outras pátrias. Mas
mato o touro nesta Espanha,
planto o lodo neste Nilo,
caço o almoço nesta Zâmbia,
me batizo neste Ganges,
vivo eterno em meu Nepal.

   Esta é a rua em que brinquei,
   a bola de meia que chutei,
   a cabra-cega que encontrei,
   o passa-anel que repassei,
   a carniça que pulei.

Este é o país que pude
      que me deram
            e ao que me dei,
e é possível que por ele, imerecido,
             – ainda
me morrerei.

              4

Minha geração se fez de terços e rosários:

        – um teço se exilou
        – um terço se fuzilou
        – um terço desesperou

e nessa missa enganosa
          – houve sangue e
desamor.
              [Por
isto,
canto-o-chão mais áspero e cato-me
        ao nível da emoção.

Caí de quatro
     animal
       sem compaixão.

        Uma coisa é um país,
        outra uma cicatriz.

        Uma coisa é um país,
        outra a abatida cerviz.

        Uma coisa é um país,
        outra esses duros perfis.

Deveria eu catar os que sobraram,
    os que se arrependeram,
    os que sobreviveram em suas tocas
e num seminário de erradios ratos
         suplicar:
        – expliquem-me
            [a mim
         e ao meu país?

Vivo no século vinte, sigo para o vinte e um
ainda preso ao dezenove
         como um tonto guarani
         e aldeado vacum. Sei que
            [daqui a pouco
         não haverá mais país.

País:
   loucura de quantos generais a cavalo
   escalpelando índios nos murais,
   queimando caravelas e livros
          – nas fogueiras e cais,
   homens gordos melosos sorrisos comensais
   politicando subúrbios e arando votos
   e benesses nos palanques oficiais.

Leio, releio os exagetas.
Quanto mais leio, descreio. Insisto?
Deve ser um mal do século
– se não for um mal de vista.

   Já pensei: é erro meu. Não nasci no tempo certo.
       Em vez de um poeta crente
       sou um profeta ateu.
       Em vez da epopeia nobre,
       os de meu tempo me legam
       como tema
        – a farsa
       e o amargo riso plebeu.

           
              5

Mas sigo o meu trilho. Falo o que sinto
e sinto muito o que falo

     – pois morro sempre que calo.
Minha geração se fez de lições mal-aprendidas.
     – e classes despreparadas.
Olhávamos ávidos o calendário. Éramos jovens.
Tínhamos a “história” ao nosso lado. Muitos
maduravam um rubro outubro
        outros iam ardendo um torpe
         [agosto.
Mas nem sempre ao verde abril
       se segue a flor de maio.
Às vezes se segue o fosso
            – e o roer do
magro osso.
E o que era revolução outrora
        agora passa à convulsão
inglória.
E enquanto ardíamos a derrota como escória
e os vendedores nos palácios espocavam suas
        [champanhes
          sobre a aurora
o reprovado aluno aprendia
        com quantos paus se faz a
derrisória
          [estória.
Convertidos e presa da real caçada
abriu-se embandeirado
       um festival de caça aos pombos
       – enquanto raiava sanguínea e fresca a
             
[madrugada.
Os mais afoitos e desesperados
em vez de regressarem como eu
        sobre os covardes passos,
e em vez de abrirem suas tendas para a fome dos desertos,
seguiram no horizonte uma miragem
               e
logo da luta
            
    passaram
              
ao luto.

Vi-os lubrificando suas armas
   e os vi tombados pelas ruas e grutas.
Vi-os arrebatando louros e mulheres
   e serem sepultados às ocultas.
Vi-os pisando o palco da tropical tragédia
   e por mais que os advertisse do inevitável final
   não pude lhes poupar o sangue e o ritual.

   Hoje
     os que sobraram vivem em escuras
     e europeias alamedas, e subterrâneos
     de saudade,aspirando um chão-de-estrelas,
     plangendo um violão com seu violado desejo
     a colher flores em suecos cemitérios.

Talvez
  todo o país seja apenas um ajuntamento
  e o consequente aviltamento
      – e uma insolvente cicatriz.
  Mas este é o que me deram,
  e este é o que eu lamento,
  e é neste que espero
       – livrar-me do meu tormento.

Meu problema, parece, é mesmo de princípio:
– do prazer e da realidade
        – que eu pensava
com o tempo resolver
       – mas só agrava com a idade.

     Há quem se ajuste
     engolindo seu fel com mel.
     Eu escrevo o desajuste
     vomitando no papel.

           
              6

Mas este é um povo bom
          me pedem que repita
          como um monge cenobita
          enquanto me dão porrada
          e me vigiam a escrita.

Sim. Este é um povo bom. Mas isto também diziam
os faraós
   enquanto amassavam o barro da carne escrava.
Isso digo toda noite
     enquanto me assaltam a casa,
isso digo
   aos montes em desalento
enquanto recolho meu sermão ao vento.
Povo. Como cicatrizar nas faces sua imagem perversa
          [e una?
Desconfio muito do povo. O povo, com razão,
        – desconfia muito de
        [mim.

Estivemos juntos na praça, na trapaça e na desgraça,
mas ele não me entende
         – nem eu posso convertê-lo.
A menos que suba estádios, antenas, montanhas
e com três mentiras eternas
       o seduza para além da ordem
             [moral.

Quando cruzamos pelas ruas
não vejo nenhum carinho ou especial predileção nos
        [seus olhos.

Há antes incômoda surpresa. Agarro documentos,
        [embrulhos, família
a prevenir mal-entendidos sangrentos.

Daí, já vejo as manchetes:

    – o poeta que matou o povo
    – o povo que só/çobrou ao poeta
    – (ou o poeta apesar do povo?)

– Eles não vão te perdoar
         – me adverte o exageta.
Mas como um país não é a soma de rios, leis, nomes
       [de ruas, questionários e
geladeiras,

e a cidade do interior não é apenas gás neon, quermesse
    [e fonte luminosa,
uma mulher também não é só capa de revista, bundas
    [e peitos fingindo que é coisa nossa.

Povo
   também são os falsários
    e não apenas os operários,

povo
   também são os sifilíticos
    não só atletas e políticos,

povo
   são as bichas, putas e artistas
    e não só escoteiros
    e heróis de falsas lutas
   são as costureiras e dondocas
    e os carcereiros
   e os que estão nos eitos e docas.

Assim como uma religião não se faz só de missas na
        [matriz,
mas de mártires e esmolas, muito sangue e cicatriz,
a escravidão
     para resgatar os ferros de seus ombros
          requer
poetas negros que refaçam seus palmares e quilombos.

Um país não pode ser só a soma
de censuras redondas e quilômetros
quadrados de aventura, e o povo
não é nada novo
        – é um ovo
            que ora gera e degenera
            que pode ser coisa viva
                – ou
ave torta
depende de quem o põe
        – ou quem o gala.

           
              7

Percebo
   
    que não sou um poeta brasileiro. Sequer
    um poeta mineiro. Não há fazendas, morros,
    casas velhas, barroquismos nos meus versos.

Embora meu pai viesse de Ouro Preto com bandas de
    [música polícia militar casos de assombração e
     [uma calma milenar,
    [embora minha mãe fosse imigrando hortaliças
     [e a fé e o pão,
olho Minas com um amor distante,
como se eu, e não minha mulher
        – fosse um poeta etíope.

Fácil não era apenas os tempos das arcádias
entre cupidos e sanfoninhas,
fácil também era o tempo dos partidos:
      – poeta sabia “história”,
      vivia em sua “célula”
      o povo era seu hobby e profissão,
      o povo era seu cristo e salvação.
O povo, no entanto, não é o cão
e o patrão
        – o lobo. Ambos são povo.
        E o povo senso ambíguo
        é o seu próprio cão e lobo

Uma coisa é o povo, outra a fome.
Se chamais povo à malta de famintos,
se chamais povo à marcha regular das armas,
se chamais povo aos urros e silvos no esporte popular,
então mais amo uma manada de búfalos em Marajó
e diferença já não há
entre as formigas que devastam minha horta
e as hordas de gafanhoto de 1948
que em carnaval de fome
o próprio povo celebrou.

Povo
  não pode ser sempre o coletivo de fome.
Povo
  não pode ser um séquito sem nome.
Povo
  não pode ser o diminutivo de homem.
O povo, aliás,
  deve estar cansado desse nome,
embora seu instinto o leve à agressão
        e embora
o aumentativo de fome
   possa ser
     revolução.