Jorge Luis Borges – Everness

Só uma coisa há. É o esquecimento.
Deus, que salva o metal, salva a escória
E cifra na sua profética memória
as luas que serão e que hão sido.

Já tudo está. Os mil reflexos,
Que entre os dois crepúsculos do dia
Teu rosto foi deixando nos espelhos
e os que irá deixando ainda.

E tudo é uma parte do diverso
Cristal dessa memória, o universo;
Não têm fim seus árduos corredores

E as portas se fecham a teu passo,
Só do outro lado do ocaso
Verás os Arquétipos e Esplendores.

Trad.: Héctor Zanetti

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 26/03/2016

Everness

Sólo una cosa no hay. Es el olvido.
Dios, que salva el metal, salva la escoria
Y cifra en su profética memoria
Las lunas que serán y que han sido.

Ya todo está. Los miles de reflejos,
Que entre los dos crepúsculos del día
Tu rostro fue dejando en los espejos
Y los que irá dejando todavía.

Y todo es una parte del diverso
Cristal de esa memoria, el universo;
No tienen fin sus arduos corredores

Y las puertas se cierran a tu paso,
Sólo del otro lado del ocaso
Verás los Arquetipos y Esplendores.

Jorge Luis Borges – Cosmogonia

Nem treva nem caos. A treva
Requer olhos que vêem, como o som.
E o silêncio requer o ouvido,
O espelho, a forma que o povoa.
Nem o espaço nem o tempo. Nem sequer
Uma divindade que premedita
O silêncio anterior à primeira
Noite do tempo, que será infinita.
O grande rio de Heráclito o Escuro
Seu irrevogável curso não há empreendido,
Que do passado flui para o futuro,
Que do esquecimento flui para o esquecimento.
Algo que já padece. Algo que implora.
Depois a história universal. Agora.

Trad.: Héctor Zanetti

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 26/03/2016

Cosmogonia

Ni tiniebla ni caos. La tiniebla
Requiere ojos que ven, como el sonido
Y el silencio requieren el oído,
Y el espejo, la forma que lo puebla.
Ni el espacio ni el tiempo. Ni siquiera
Una divinidad que premedita
El silencio anterior a la primera
Noche del tiempo, que será infinita.
El gran río de Heráclito el Oscuro
Su irrevocable curso no ha emprendido,
Que del pasado fluye hacia el futuro,
Que del olvido fluye hacia el olvido.
Algo que ya padece. Algo que implora.
Después la historia universal. Ahora.

Jorge Luis Borges – O Suicida

Não ficará na noite uma estrela.
Não ficará a noite.
Morrerei e comigo a suma
Do intolerável universo.
Apagarei as pirâmides, as medalhas,
Os continentes e as caras.
Apagarei a acumulação do passado. 
Farei pó a história, pó o pó.
Estou olhando o último poente.
Ouço o último pássaro.
Lego o nada a ninguém.

Trad.: Antonio Cícero

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 24/02/2016

Marisa Martinez Pérsico – Curriculum Vitae Resumido

Mal se conhecem
mas já se fazem
as perguntas habituais:

qual teu prato preferido?
onde moras?
que país gostarias de visitar?

Provavelmente já deram
centenas de vezes a resposta

E a repetem
por hábito e constância
embora a tenham mudado
ao longo da jornada até hoje.

Para compreender a alma dos outros
bastaria tão somente uma pergunta:
o que te fez chorar?

Trad. Nelson Santander

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Curriculum Vitae Resumido

Apenas se conocen
pero ya se preguntan
unos típicos datos de ocasión:

qué comida prefieres
dónde vives
qué país querrías visitar.

Seguro pronunciaron
cien veces la respuesta
y la repiten
por hábito y constancia
aunque la hayan cambiado
en el camino hasta hoy.

Para entender el alma de los otros
bastaría, tan solo, una pregunta:
qué te hizo llorar.

José Infante – Esquecimento ou desmemoria?

Nunca se apagarão de tua memoria os olhos de tua mãe
perdidos na ausência do presente, buscando
com angústia no passado a menina que foi,
desamparada e órfã, aos cuidados de uma tia
desnaturada e cruel que jamais ocupou o lugar
da mãe morta na juventude por um tumor
inominável.
Mas os olhos de mamãe
não encontravam ninguém em sua busca incessante.
Algum nome perdido, o pânico refletido
da solidão nas pupilas cegas.
Foi o Alzheimer que te levou ao esquecimento
ou preferias anular uma vida tão dura
e generosa, sempre dedicada aos outros
sem nunca pensar na tua felicidade ou no teu descanso?

Mais de cinco anos já se passaram, mas teus olhos
vazios de expressão, viajando ao passado
que quiseste apagar, seguem diante
de mim, como uma imagem congelada, que nunca
chegará a tornar-se sépia.
O tempo não passa
por essa imagem aterradora e final, quando
o ar te abandonou definitivamente e o coração
cansado deixou de bater, depois de uma interminável
agonia, que nenhum de nós
conseguimos deter e que lembro
com espanto e, às vezes, como o temido
presságio de minha própria morte.
Tentarei,
como tu, me perder na desmemoria
que é o esquecimento desejado? Ou será essa forma
deliberada de estar ausente da vida
que virá logo habitar comigo?

Trad.: Nelson Santander

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¿Olvido o desmemoria?

Nunca se borrarán de tu memoria los ojos de tu madre
perdidos en la ausencia del presente, buscando
con angustia en el pasado a la niña que fue,
desamparada y huérfana, a cargo de una tía
desnaturalizada y cruel que jamás ocupó el lugar
de la madre muerta en la juventud de un tumor
innombrable.
Pero los ojos de mamá
no encontraban a nadie en su incesante búsqueda.
Algún nombre perdido, el pánico reflejado
de la soledad en las pupilas ciegas.
¿Fue el Alzheimer lo que te llevó al olvido
o preferías anular una vida tan dura
y generosa, siempre entregada a los otros
sin pensar jamás en tu felicidad o en tu descanso?

Ha pasado ya más de un lustro, pero tus ojos
vacíos de expresión, viajando al pasado
que habías querido borrar; siguen delante
en mí, como una foto fija, que nunca
se llegará a poner sepia.
No pasa el tiempo
por esa imagen aterradora y final, cuando
el aire te faltó definitivamente y eI corazón
cansado dejó de latir, después de una agonía
interminable, que ninguno de nosotros
logramos detener y que recuerdo
con espanto y a veces como el temido
presagio de mi propia muerte.
¿Intentaré
perderme, igual que tu, en Ia desmemoria
que es el olvido deseado? ¿O será esa forma
deliberada de estar ausente de la vida
la que vendrá pronto a habitar conmigo?

Mariana Spada – Bratislava

A primeira lufada de sol
se derramou preguiçosamente
sobre estátuas de heroísmo alheio
e ruas desertas após uma geada
que deve ter coberto de gelo a margem
do outro lado do Danúbio.

Bratislava ficou para trás.
O grande livro do mundo
se abre inteiramente esta manhã
e o balanço suave do vagão-restaurante
é como uma mãe que passa
cem vezes a escova em nosso cabelo
enquanto sussurra ao ouvido:
não há futuro que seja nosso
é pura ventura o presente
e o passado um cacho
curto e embaraçado.

Trad.: Nelson Santander

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Bratislava

La primera bocanada de sol
fue derramándose lacia
sobre estatuas de heroísmo ajeno
y calles desiertas al cabo de una helada
que habrá escarchado la orilla
al otro lado del Danubio.

Atrás quedó Bratislava.
El gran libro del mundo
se abre por completo esta mañana
y el meneo suave del vagón comedor
es como una madre que nos pasa
cien veces el cepillo por el pelo
mientras susurra al oído:
no hay futuro que sea nuestro
es todo dicha el presente
y el pasado un rizo
corto y enredado.

Jorge Luis Borges – Remorso por qualquer morte

Livre da memória e da esperança,
Ilimitado, abstrato, quase futuro,
O morto não é um morto: é a morte.
Como o Deus dos místicos,
A quem se devem negar todos os predicados,
O morto, onipresentemente alheio,
Não é senão a perdição e a ausência do mundo.
Tudo lhe roubamos,
Não lhe deixamos nem uma cor, nem uma sílaba:
Aqui está o pátio que seus olhos já não compartilham,
Ali a calçada onde espreitava suas esperanças.
Até o que pensamos talvez o pensasse ele também;
Repartimos, como ladrões,
O tesouro das noites e dos dias.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 22/02/2016

Remordimiento por cualquier muerte

Libre de la memoria y de la esperanza,
Ilimitado, abstracto, casi futuro,
El muerto no es un muerto: es la muerte.
Como el Dios de los místicos,
De quien deben negarse todos los predicados,
El muerto ubicuamente ajeno
No es sino la perdición y ausencia del mundo.
Todo se lo robamos,
No le dejamos ni un color ni una sílaba:
Aquí está el patio que ya no comparten sus ojos,
Allí la acera donde acechó sus esperanzas.
Hasta lo que pensamos podría estarlo pensando él también;
Nos hemos repartido como ladrones
El caudal de las noches y de los días.

Ida Vitale – Peixe na água

                        PEIXE NA ÁGUA

Como peixe na água,
como peixe, porém, pensado por Leibniz1:

peixe pleno de lago,
de lago pleno de peixes,
peixe infinito pleno de lagos infinitos
à margem de um eu infinito.
Então sim,
como um peixe na água
de um lago
de outro mundo onde
as
la(c)gunas
não nos
dilacerem.

Trad.: Nelson Santander

  1. A menção a Leibniz (1646-1716) evoca seu conceito de monadologia, segundo o qual o universo é composto por ‘mônadas’ — unidades indivisíveis que contêm em si uma representação do todo. No poema, essa ideia se manifesta no peixe que contém lagos infinitos, espelhando a noção leibniziana de que cada ser carrega em si reflexos do universo inteiro. A referência também sugere a ‘harmonia preestabelecida’ pensada pelo filósofo, que se relaciona com o ‘outro mundo’ evocado nos versos finais, onde as fragmentações deixam de existir – embora, ironicamente, seja nos versos finais que o poema mais se fragmenta visualmente, ao mimetizar o movimento das águas e o pervagar dos peixes. O que sugere que a completude está apenas no conceito – enquanto o fluxo da realidade e da linguagem é, por natureza, dinâmico e fragmentado. ↩︎

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                        PEZ EN EL AGUA

Como pez en el agua,
como pez, empero, pensado por Leibniz:

pez lleno de lago,
de lago lleno de peces,
pez infinito lleno de lagos infinitos,
a la orilla de un sí mismo infinito.
Entonces sí,
como pez en el agua
de un lago
de otro mundo donde
no
nos
laceren
lagunas.

Javier Salvago – Quinta-feira Santa

A mesma lua, o mesmo
aroma de laranjeiras
perfumando as ruas,
onde a vida explode

em uma multidão de corpos
que se atraem e se buscam.
Calor de primavera
na pele e no ar.

Jovens incansáveis,
como nós naquela época,
percorrem a cidade
bêbados de desejo

— jovens com invernos
de abstinência, que sentem,
como Ele, que também
seu reino não é deste mundo —.

Os tambores lembram
que estão indo para o patíbulo.
Diante de virgens chorosas,
com despudor, os deuses

que vão morrer se beijam
— como os deuses que ontem fomos —,
sem remédio nem culpa,
na cruz dos anos.

Trad.: Nelson Santander

Jueves Santo

La misma luna, el mismo
perfume del naranjo
aromando las calles,
donde la vida estalla

en multitud de cuerpos
que se atraen y se buscan.
Calor de primavera
en la piel y en el aire.

Jóvenes incansables,
como entonces nosotros,
recorren la ciudad
borrachos de deseo

— jóvenes con inviernos
de abstinencia, que sienten,
como Aquél, que tampoco
su reino es de este mundo —.

Los tambores recuerdan
que se marcha al patíbulo.
Ante llorosas vírgenes,
con descaro, se besan

dioses que morirán
— como el dios que ayer fuimos —,
sin remedio ni culpa,
en la cruz de los años.

Javier Salvago – Retrato

Fala pouco, e a bem poucos
se permite chamar de amigos,
segue adiante se há tumulto,
não visita os vizinhos,

cruza a rua fumando,
sempre voltado para dentro,
vendo o mundo de fora
como quem lê um livro,

enredado – sem saída –
no próprio labirinto,
mas nem surdo nem cego
nem indiferente nem frio:

um solitário que vive
com uma mulher e um filho.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 13/08/2020

Retrato

Habla poco, y a muy pocos
se atreve a llamar amigos,
pasa de largo si hay bulla,
no visita a sus vecinos,

cruza la calle fumando,
siempre dentro de sí mismo,
viendo el mundo desde fuera
igual que quien lee un libro,

atrapado — sin salida —
en su propio laberinto,
pero ni sordo ni ciego
ni indiferente ni frío:

un solitario que vive
con una mujer y un niño.