Caetano Veloso – O Homem Velho

O homem velho deixa a vida e morte para trás
Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais
O grande espelho que é o mundo ousaria refletir os seus sinais
O homem velho é o rei dos animais

A solidão agora é sólida, uma pedra ao sol
As linhas do destino nas mãos a mão apagou
Ele já tem a alma saturada de poesia, soul e rock’n’roll
As coisas migram e ele serve de farol

A carne, a arte arde, a tarde cai
No abismo das esquinas
A brisa leve traz o olor fugaz
Do sexo das meninas

Luz fria, seus cabelos têm tristeza de néon
Belezas, dores e alegrias passam sem um som
Eu vejo o homem velho rindo numa curva do caminho de Hebron
E ao seu olhar tudo que é cor muda de tom

Os filhos, filmes, livros, ditos como um vendaval
Espalham-no além da ilusão do seu ser pessoal
Mas ele dói e brilha único, indivíduo, maravilha sem igual
Já tem coragem de saber que é imortal

REPUBLICAÇÃO: canção publicada no blog originalmente em 12/03/2016

Eavan Boland – Brasas

Em uma noite de inverno, quando uma geada cortante
fazia as trilhas entre os tojais estalarem sob os pés,
uma desventurada mulher, olhos arregalados, cabelos em desalinho,
chegou ao lugar onde os Fianna1 haviam montado acampamento.

Tua face é de sombra. Estás lendo.
Ainda há calor na fogueira. Estou lendo:

Ela pediu a cada um deles, por sua vez,
que a levasse para sua cama, que a abrigasse com seu corpo.
Cada um a olhou — ela era velha além dos anos.
Cada um a recusou, cada um a repeliu, exceto Diarmuid.

Quando ele acordou pela manhã, ela era jovem e bela.
E era dele, para sempre, mas com uma condição:
ele não poderia dizer que ela já fora velha e abatida.
Ele não poderia dizer que ela jamais tinha sido… aqui eu levanto o olhar.

Estás de costas. Não tens interesse nisso.

Fiz essa fogueira com a primeira turfa do inverno.
Olha-me sob a última luz polida dela.
Diz-me que ainda sentes o calor.
Diz-me que nunca falarás sobre as cinzas.

Trad.: Nelson Santander

  1. O poema faz referência a uma lenda do ciclo mitológico irlandês conhecido como Ciclo Feniano (ou Ciclo Ossiânico). Diarmuid Ua Duibhne era um guerreiro dos Fianna, um grupo de heróis liderados por Fionn mac Cumhaill na Irlanda antiga. A passagem alude ao encontro de Diarmuid com uma mulher idosa e miserável que pede abrigo aos guerreiros, sendo rejeitada por todos, exceto por ele. Em algumas interpretações, essa figura pode ser associada ao motivo mitológico da Soberania — uma personificação da terra da Irlanda, que testa os heróis aparecendo primeiro como uma velha horrenda (cailleach) antes de revelar sua verdadeira forma como uma jovem bela. Esse padrão narrativo, comum na mitologia celta, simboliza a aliança entre o herói digno e a terra/soberania. A condição imposta a Diarmuid — nunca mencionar sua aparência anterior — representa a lealdade e discrição exigidas em relações de confiança. No poema de Boland, essa história mítica serve como metáfora para relacionamentos contemporâneos, sugerindo as complexidades da memória, do envelhecimento e da intimidade. ↩︎

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Embers

One night in winter when a bitter frost
made the whin-paths crack underfoot,
a wretched woman, eyes staring, hair in disarray,
came to the place where the Fianna had pitched camp.

Your face is made of shadow. You are reading.
There is heat from the fire still. I am reading:

She asked every one of them in turn
to take her to his bed, to shelter her with his body.
Each one looked at her — she was old beyond her years.
Each one refused her, each spurned her, except Diarmuid.

When he woke in the morning she was young and beautiful.
And she was his, forever, but on one condition.
He could not say that she had once been old and haggard.
He could not say that she had ever … here I look up.

You are turned away. You have no interest in this.

I made this fire from the first peat of winter.
Look at me in the last, burnished light of it.
Tell me that you feel the warmth still.
Tell me you will never speak about the ashes.

Adriana Calcanhotto e Antonio Cicero – Inverno

No dia em que fui mais feliz
Eu vi um avião
Se espelhar no seu olhar até sumir
De lá pra cá não sei
Caminho ao longo do canal
Faço longas cartas pra ninguém
E o inverno no Leblon é quase glacial
Há algo que jamais se esclareceu:
Onde foi exatamente que larguei
Naquele dia mesmo
O leão que sempre cavalguei?
Lá mesmo esqueci
Que o destino
Sempre me quis só
No deserto sem saudade, sem remorso só
Sem amarras, barco embriagado ao mar
Não sei o que em mim
Só quer me lembrar
Que um dia o céu
Reuniu-se a terra um instante por nós dois
Pouco antes do Ocidente se assombrar

Letra de Antonio Cícero

REPUBLICAÇÃO: canção originalmente publicado na página em 12/03/2016

Lee Stockdale – O armazém geral do meu falecido pai no meio do deserto

Tem bombas de gasolina com o Pégaso vermelho1,
mas não é apenas um posto de gasolina, seu pai não é meu pai,
de pé sobre mim, com uma prancheta, conferindo as coisas feitas e por fazer.

Ele parece feliz nesta última parada antes da morte para os que vivem,
antes da vida para os que ainda não nasceram,
onde seu armazém geral negocia farinha, açúcar, cortes de carnes,
ou fígado, roxo-avermelhado, um coração que ele embrulha em papel pardo.

Ele corta meu cabelo sob a cobertura de zinco. Devo ter chegado aqui
de uma direção ou outra pela estrada que se estende de horizonte a horizonte,
o calor do deserto fazendo meus olhos tremular como poças.

Cheguei engatinhando,
e ele me entregou uma Nehi de laranja gelada.
É pura coincidência que esta loja seja do meu pai.
Pergunto-lhe de onde vem toda essa mercadoria, já que nenhum caminhão passa por essa estrada
para repor produtos que ninguém compra.
Ele não gosta de perguntas que desafiam sua existência.
Fico quieto, pois ele está cortando meu cabelo
e pode, consciente ou inconscientemente, me deixar com uma aparência ridícula.

Você está fazendo um ótimo trabalho aqui, digo, o que ele sabe que é besteira –
quantos pais, mesmo mortos, montam um armazém geral no deserto?
Insisto: Você mantém as prateleiras abastecidas, o chão varrido, o banheiro limpo.
Quanto mais falo, mais me encorajo a amá-lo pelo trabalho que teve
para fazer tudo isso parecer real, com latas de pregos de todos os tamanhos, feijão, arroz,
prateleiras de bebidas, balcão de frios com picles gigantes.

Começo a perceber que homem querido e doce ele é. Será porque está morto?
Queria que estivesse vivo outra vez.
Não acho que ele tenha se matado só para me magoar pessoalmente.
À noite, ele diz, coiotes uivantes descem das montanhas
e deixam recados, versículos bíblicos, ameaças, cartas de amor.
Tudo que um coiote precisa tirar do peito.
Pergunto se eles vêm todas as noites.
Sem falta, ele diz

Trad.: Nelson Santander

  1. Lee Stockdale venceu o National Poetry Competition com o poema My Dead Father’s General Store in the Middle of a Desert, escolhido entre mais de 17 mil inscrições de 103 países. O poema, elogiado por sua “beleza, inteligência e graça”, retrata um encontro entre pai e filho, refletindo sobre perda e reconciliação. A obra foi inspirada na trágica morte do pai do poeta, que tirou a própria vida dias após o assassinato de John F. Kennedy. (Fonte: The Guardian, 29/03/2023) ↩︎

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My Dead Father’s General Store in the Middle of a Desert

It has gas pumps with red horses and wings,
but is not merely a gas station, your father is not my father,
standing over me with a clipboard, checking off things done and left undone.

He seems happy at this last stop before death for those living,
before life for those not yet born,
where his general store deals in flour, sugar, pieces of hacked meat,
or liver, reddish purple, a heart he wraps in brown paper.

He cuts my hair beneath the tin awning. I must have gotten here
from one direction or other on the road that stretches horizon to horizon,
the desert heat shimmering my eyes into pools.

I crawled in on my hands and knees,
he handed me an ice-cold orange Nehi drink.
It’s pure coincidence that this store is my father’s.
I ask him where all this stuff comes from, as no trucks travel this road
to replenish merchandise no one buys.
He doesn’t like questions that challenge his existence.
I become quiet, he’s cutting my hair
and might consciously or unconsciously make me look bad.

You’re doing a great job out here, I say, which he knows is bullshit –
how many fathers, even if they’re dead, set up a general store in a desert.
I persist, You keep the shelves stocked, floor broomed, bathroom clean.
The more I talk, the more I encourage myself to love him for the trouble he went to
making all this seem real, with cans of various sized nails, beans, rice,
shelves of liquor, deli section with giant pickles.

I begin to see what a dear, sweet man he is. Is this because he is dead?
I wish he were alive again.
I don’t think he killed himself to be mean to me personally.
At night, he says, howling coyotes come down from the mountains
and leave notes, Bible verses, threatening messages, love letters.
Everything a coyote wants to get off its chest.
I ask if they come every night.
He says, Without fail.

Carlos Drummond de Andrade – Versos à Boca da Noite

Sinto que o tempo sobre mim abate
sua mão pesada. Rugas, dentes, calva.
Uma aceitação maior de tudo,
e o medo de novas descobertas.

Escreverei sonetos de madureza?
Darei aos outros a ilusão de calma?
Serei sempre louco? Sempre mentiroso?
Acreditarei em mitos? Zombarei do mundo?

Há muito suspeitei o velho em mim.
Ainda criança, já me atormentava.
Hoje estou só. Nenhum menino salta
de minha vida, para restaurá-la.

Mas se eu pudesse recomeçar o dia!
Usar de novo minha adoração,
meu grito, minha fome. Vejo tudo
impossível e nítido, no espaço.

Lá onde não chegou minha ironia,
entre ídolos de rosto carregado,
ficaste, explicação de minha vida,
como os objetos perdidos na rua.

As experiências se multiplicaram:
viagens, furtos, altas solidões,
o desespero, agora cristal frio,
a melancolia, amada e repelida,

E tanta indecisão entre dois mares,
entre duas mulheres, duas roupas.
Toda essa mão para fazer um gesto
que de tão frágil nunca se modela,

E fica inerte, zona de desejo
selada por arbustos agressivos.
(Um homem se contempla sem amor,
se despe sem qualquer curiosidade.)

Mas vêm o tempo e a ideia de passado
visitar-te na curva de um jardim.
Vem a recordação, e te penetra
dentro de um cinema, subitamente.

E as memórias escorrem do pescoço,
do paletó, da guerra, do arco-íris;
enroscam-se no sonho e te perseguem,
à busca de pupila que as reflita.

E depois das memórias vem o tempo
trazer novo sortimento de memórias,
até que, fatigado, te recuses
e não saibas se a vida é ou foi.

Esta casa, que miras de passagem,
estará no Acre? na Argentina? Em ti?
Que palavra escutaste, e onde, quando?
Seria indiferente ou solidária?

Um pedaço de ti rompe a neblina,
voa talvez para a Bahia e deixa
outros pedaços, dissolvidos no atlas,
em País-do-Riso e em tua ama preta.

Que confusão de coisas ao crepúsculo!
Que riqueza! Sem préstimo, é verdade.
Bom seria captá-las e compô-las
num todo sábio, posto que sensível:

uma ordem, uma luz, uma alegria
baixando sobre o peito despojado.
E já não era o furor dos vinte anos
nem a renúncia às coisas que elegeu,

Mas a penetração no lenho dócil,
um mergulho em piscina, sem esforço,
um achado sem dor, uma fusão,
tal uma inteligência do universo

comprada em sal, em rugas e cabelo.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 11/03/2016

Charles Simic — Shelley

Poeta das folhas mortas, varridas como fantasmas,
Arrebanhadas como multidões ceifadas pela peste1,
Eu o li pela primeira vez
Em uma noite chuvosa em Nova York,

Com meu atroz sotaque eslavo,
Recitando os versos melífluos
De um volume surrado e manchado
Que havia comprado mais cedo naquele dia
Em um sebo na Quarta Avenida,
Gerido por um iniciado nas artes ocultas.

Com o pouco dinheiro que me restava,
Caminhei pelas ruas com o nariz enfiado no livro.
Sentei-me em uma cafeteria suja,
Com as moscas mortas do verão passado sobre a mesa.
O dono era um ex-marinheiro
Que desenvolvera uma enorme corcunda
De tanto observar a chuva e a rua vazia.
Ficou feliz em me ver ali, absorto na leitura.
Reabastecia minha xícara com um líquido escuro como as
[águas do Estige.

Shelley falava de um rei louco, cego e moribundo;
De governantes que não veem, não sentem, não sabem;
De túmulos dos quais um Fantasma glorioso pode
Irromper para iluminar nosso dia tempestuoso.2

Eu também me sentia como um fantasma glorioso
A caminho do jantar
Em um restaurante chinês que conhecia tão bem.
Havia um garçom de três dedos
Que trazia minha sopa e arroz todas as noites
Sem jamais dizer uma palavra.

Nunca vi mais ninguém lá.
A cozinha era separada por uma cortina
De contas de vidro que tilintavam suavemente
Sempre que a porta da frente se abria.
Naquela noite, a porta da frente se abriu
Para deixar entrar uma menina pálida de óculos.

O poeta falava do imperecível universo
Das coisas… de vislumbres de um mundo remoto
Que visitam a alma durante o sono…
De um deserto povoado apenas por tormentas…3

As ruas estavam repletas de guarda-chuvas quebrados,
Pareciam pipas fúnebres
Que aquela pequena menina chinesa poderia ter feito.
Os bares da MacDougal Street esvaziavam.
Tinha havido uma briga.
Um homem se apoiava em um poste, braços estendidos como um crucificado,
A chuva lavando o sangue de sua face.

Em uma viela mal iluminada,
Onde a calçada brilhava como um espelho de salão de baile
Na hora de fechar —
Um homem bem vestido e descalço
Me pediu dinheiro.
Seus olhos brilhavam, ele parecia triunfante
Como um mestre de esgrima
Que acabara de desferir um golpe mortal.

Que estranho era tudo aquilo… A loteria do mundo
Naquela noite escura de outubro…
O volume amarelado de poesia
Com seus Esplendores e Sombras
Que eu estudava à luz das vitrines:
Farmácias e barbearias,
Temendo meu pequeno quarto sem janelas,
Frio como o túmulo de um imperador infante.

Trad.: Nelson Santander

  1. Ao longo do poema, Simic faz várias referências a poemas de Shelley. Nesses versos, p.e., temos uma referência direta à “Ode to the West Wind” , onde Shelley descreve as folhas mortas sendo carregadas pelo vento do outono. ↩︎
  2. Referência ao famoso soneto “England in 1819“, em que Shelley critica o rei George III e a monarquia britânica. ↩︎
  3. Aqui, o poeta se refere ao poema “Mont Blanc: Lines Written in the Vale of Chamouni“, que começa com os versos “The everlasting universe of things / Flows through the mind”. ↩︎

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Shelley

Poet of the dead leaves driven like ghosts,
Driven like pestilence-stricken multitudes,
I read you first
One rainy evening in New York City,

In my atrocious Slavic accent,
Saying the mellifluous verses
From a battered, much-stained volume
I had bought earlier that day
In a second-hand bookstore on Fourth Avenue
Run by an initiate of the occult masters.

The little money I had being almost spent,
I walked the streets my nose in the book.
I sat in a dingy coffee shop
With last summer’s dead flies on the table.
The owner was an ex-sailor
Who had grown a huge hump on his back
While watching the rain, the empty street.
He was glad to have me sit and read.
He’d refill my cup with a liquid dark as river Styx.

Shelley spoke of a mad, blind, dying king;
Of rulers who neither see, nor feel, nor know;
Of graves from which a glorious Phantom may
Burst to illumine our tempestuous day.

I too felt like a glorious phantom
Going to have my dinner
In a Chinese restaurant I knew so well.
It had a three-fingered waiter
Who’d bring my soup and rice each night
Without ever saying a word.

I never saw anyone else there.
The kitchen was separated by a curtain
Of glass beads which clicked faintly
Whenever the front door opened.
The front door opened that evening
To admit a pale little girl with glasses.

The poet spoke of the everlasting universe
Of things … of gleams of a remoter world
Which visit the soul in sleep …
Of a desert peopled by storms alone …

The streets were strewn with broken umbrellas
Which looked like funereal kites
This little Chinese girl might have made.
The bars on MacDougal Street were emptying.
There had been a fist fight.
A man leaned against a lamp post arms extended as if crucified,
The rain washing the blood off his face.

In a dimly lit side street,
Where the sidewalk shone like a ballroom mirror
At closing time—
A well-dressed man without any shoes
Asked me for money.
His eyes shone, he looked triumphant
Like a fencing master
Who had just struck a mortal blow.

How strange it all was … The world’s raffle
That dark October night …
The yellowed volume of poetry
With its Splendors and Glooms
Which I studied by the light of storefronts:
Drugstores and barbershops,
Afraid of my small windowless room
Cold as a tomb of an infant emperor.

Giacomo Leopardi – O Infinito

Sempre me foi cara esta colina erma
E esta sebe, que de muitos lados
Exclui a visão do último horizonte.
Mas sentado, contemplando, infindáveis
Espaços além dela, e sobre-humanos
Silêncios, e a mais profunda calma
Eu no pensar imagino; e por pouco
Não se amedronta o coração. E o Vento
Ouvindo sussurrar entre essas plantas,
Aquele infinito silêncio a esta voz
Vou comparando: e lembra-me o eterno,
E as estações mortas, e a presente
Viva, e o seu som. Assim na imensidão
Se afoga o meu pensar:
E o naufragar me é doce neste mar

Trad.: Paulo Cesar Souza

REPUBLICAÇÃO. Poema publicado originalmente no blog em 03/03/2016.

L’infinito

Sempre caro mi fu quest’ermo colle,
e questa siepe, che da tanta parte
dell’ultimo orizzonte il guardo esclude.
Ma sedendo e mirando, interminati
spazi di là da quella, e sovrumani
silenzi, e profondissima quïete
io nel pensier mi fingo, ove per poco
il cor non si spaura. E come il vento
odo stormir tra queste piante, io quello
infinito silenzio a questa voce
vo comparando: e mi sovvien l’eterno,
e le morte stagioni, e la presente
e viva, e il suon di lei. Così tra questa
immensità s’annega il pensier mio:
e il naufragar m’è dolce in questo mare.

Ben Rhys Palmer – Eden, o robô jardineiro

Ele foi programado para seguir instruções:
espalhar cobertura morta, despontar as begônias,
manter os querubins da fonte livres dos dejetos dos pássaros.
Mas desde que, certa manhã, encontrou seus senhores
frios e rígidos na cozinha, surpreendeu-se
saindo da própria programação,
dedicando uma hora a contar girinos, outra a erguer
as pedras ao redor do lago para admirar os estranhos seres
por baixo: o tatuzinho-de-jardim em sua armadura coberta de terra,
o piolho-de-cobra, segmentado em mais partes
que os quadros do programa matinal que sua senhora assistia
enquanto bebia seu chá oolong. As ligações que Eden
fez para os serviços de emergência ficaram sem resposta,
então ele usou seu braço-pá destacável para sepultar os humanos
sob a cerejeira que tanto amavam. Sua senhora
havia ordenado que exterminasse as lagartas
que estavam dizimando as buganvílias, mas
ele decidiu deixá-las empupar. Observou-as
tecer almofadas de seda, pender delas como minúsculos morcegos,
e, pouco a pouco, mudarem de pele, revelando as crisálidas por baixo.
Com a hiperprecisão de sua visão microscópica,
a superfície sépia enrugada de cada crisálida parecia a Eden
o estranho terreno de algum mundo inexplorado.
Ontem, uma borboleta eclodiu antes do tempo.
Apenas farrapos no lugar das asas. Caiu no gramado,
e debulhou-se em círculos frenéticos até que uma pega
se aproximou sorrateira e a pegou. Tanta engenhosidade,
pensou Eden, tanta complexidade na concepção,
apenas para emergir tão desastrosamente errada.
À noite, em sua câmara de recarga, ele pensa
nelas em suas crisálidas, corpos se dissolvendo,
células se rearranjando, e nenhuma maneira de saber
o que restará de sua metamorfose.

Trad.: Nelson Santander

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Eden the Robot Gardener

He’s programmed to follow instructions:
lay down the mulch, deadhead the begonias,
keep the cherubs around the fountain birdshit free.
But since he discovered his master and mistress
cold and stiff in their kitchen one morning
he’s surprised himself by venturing off-piste,
devoting an hour to counting tadpoles, another to lifting
the stones around the pond to admire the oddballs
beneath: the woodlouse in its dusty suit of armour,
the millipede, divided into more segments
than the breakfast television his mistress would watch
as she sipped her oolong tea. Eden’s calls
to the emergency services had, gone unanswered,
so he used his detachable spade-arm to bury the humans
beneath their beloved weeping cherry. His mistress
had ordered him to get rid of the caterpillars
that were decimating the bougainvillae, but
he decided to let them pupate. He watched them
as they spun silk pads, hung from them like miniature bats,
and slowly shed their skins to reveal the chrysalids beneath.
With the hyper precision of his microscopic vision,
the crinkled sepia surface of each chrysalis seemed to Eden
like the strange terrain of some unexplored world.
Yesterday a butterfly hatched before it was ready.
Just ragged scraps for wings. It fell to the lawn,
scrabbled in frantic circles before a magpie
stalked over and snatched it up. All that industry,
thought Eden, that intricacy of conception,
only to emerge so calamitously wrong.
In his recharging chamber at night he thinks
of them in their chrysalids, bodies breaking down,
cells rearranging, no way of knowing
what will survive of their changing.

Manuel Bandeira – O Rio

Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranquilas.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 01/03/2016

Andrew Marvell – To His Coy Mistress, em 5 traduções

PARA SUA DAMA RECATADA
trad. Matheus “Mavericco”

Houvesse tempo e espaço e então de fato
Não seria um delito este recato.
Sentados, nós iríamos pensar
Em só pensar no outro, e assim passar.
Você, do lado indígena do Ganges,
Achando rubis, e eu, pois me confrange
A dor, junto ao Humber. Décadas antes
Do Dilúvio eu te juro amor, e, instantes
Depois, se quiser, negue os votos meus
Até que se convertam os judeus.
Meu amor vegetal cresce mais vasto,
Embora mais lento, que impérios; gasto
Séculos em louvor de tua face
E mais dois longos séculos em face
De teus seios e trinta mil se quero
O corpo inteiro. Uma era de esmero
Pra cada parte, até que a derradeira
Sirva pra revelar tua alma inteira.
Pois você, ó Senhora, é digna disto ―
E eu não sei amar por menos que isto.

Contudo, escuto sempre atrás de mim
O Tempo alado a toda pressa: e, assim,
Nós só podemos ver, mais adiante,
A vastidão deserta do incessante
E a graça que você tem hoje, extinta.
No teu fosso marmóreo é indistinta
Minha canção que ecoa; o verme tenta
Romper teu corpo virgem e fragmenta
Em pó a tua honra imensa, enquanto
Meu ardor queima em cinzas. Se o recanto
Da sepultura é íntimo, então, acho,
Ninguém lá deve dar algum abraço.

Mas agora, o vigor juvenil posto
Tal como o orvalho fresco no teu rosto,
Tua alma desejosa de que sue
Em cada poro o fogo que a imiscui,
Devoremos nós dois juntos, e agora,
Como um casal de abutres que se adora,
O tempo antes que o tempo venha a ser
O nosso algoz, voraz o seu poder.
Enovelemos rapidez e força
Num globo, para que depois se torça
E abata o nosso anseio em árdua lida
Diante dos portões de aço da vida:
Assim, se o sol não puder ser parado,
Ele será ao menos apressado.

**********************************

À SUA AMIGA ESQUIVA
trad. Nelson Ascher

Sobrassem mundo e tempo, não seria
tanta esquivez, senhora, uma heresia.
Sentar-nos-íamos pensando, a cada
longo dia de amor, uma jornada.
Enquanto junto ao Ganges encontrasses
rubis, eu molharia minhas faces
chorando ao Humber. Fosse minha parte
dez anos antes do Dilúvio amar-te,
seria a tua opor desinteresse
até que o povo hebreu se convertesse.
Meu amor vegetal, mais devagar
que impérios, cresceria sem parar.
Dedicaria cem anos, perante
teus olhos, a louvar o teu semblante;
A te adorar os seios, pelo menos
O dobro; ao resto, mais trinta milênios;
E, a tudo em ti, mil eras, de maneira
A abrir teu coração na derradeira.
Porque, senhora, vales tal quantia
E, para amar-te, eu não regatearia.

Mas ouço atrás de mim, correndo insanos
num carro alado, os dias, meses, anos.
E, frente a nós, se estende sem mais nada
A vasta eternidade desolada.
Tua beleza há de perder-se ao léu;
tampouco, em teu marmóreo mausoléu,
hão de ecoar meus versos quando, inerme,
entregues o hímen obstinado ao verme,
que em pó transformará tua honra vã
E em cinzas todo o ardor do meu afã.
O túmulo é discreto e acolhedor
mas lá ninguém que eu saiba faz amor.

Agora, então, que em tua pele pousa,
feito orvalho na folha, a cor viçosa,
E em cada poro de tua alma aflora
um fogo urgente ― amemos sem demora:
mais vale devorarmos, com o brio
das aves de rapina em pleno cio,
O tempo de uma vez do que, em poder
das lentas presas dele, enlanguescer.
Unindo numa esfera dois extremos
― nossa ternura e força ― arrebatemos
prazeres com porfia desabrida
através dos portões férreos da vida.
Não há como parar o sol, mas nós
podemos ― sim ― torná-lo mais veloz.

**********************************

PARA SUA AMADA ESQUIVA
trad. Alípio Correia Neto

Com um mundo nosso, dama, e vez,
Não fora um crime tua esquivez.
Íamos sentar, pra ver qual via
Trilhar, e amar por longo dia.
Acharias, com o Ganges aos pés,
Rubis; eu, o pranto, ante as marés
Do Humber. Te daria dez anos
De amor antediluvianos!
Dirias não, por caprichos teus,
Até à conversão dos judeus;
Meu amor vegetal, mais lento
Que impérios, vasto em crescimento,
Um século pra louvações
Aos olhos, pra admirar feições,
Teria; o dobro pra adorar-te
Os seios; trinta mil às mais partes;
A cada qual, uma era, e então
Uma última, a teu coração.
Pois, dama, vales os meus reinos;
E eu não iria te amar por menos.

Mas ouço, sempre, atrás de nós,
O Carro do Tempo, veloz,
E adiante jazem vastos ermos
Da eternidade. Não havemos
De achar tua beleza afora.
Nem, na tua cripta marmórea,
Soará meu canto. E um verme há de
Testar-te a longa virgindade,
Mudando em pó tua honra altiva
E em cinzas a minha lascívia.
A cova é bom e íntimo espaço,
Mas não, penso eu, para um abraço.

Enquanto há em ti cor juvenil
Na tez, como na flor, rocio,
E a alma que anseia deita fora um
Fogo urgente em cada poro,
Vamos folgar, e semelhantes
A amáveis aves rapinantes,
Tragar o nosso tempo, isentos
De enlanguescer num bico lento,
Então enrolar nosso desvelo
E forças em um só novelo,
Rasgar prazeres na investida
Contra os portões férreos da vida.
Assim, sem termos o que impeça
O sol, o instamos a ir depressa.

**********************************

PARA SUA TÍMIDA SENHORA
trad. Rodrigo Garcia Lopes

Com mundo e tempo de sobra, acredite-me,
Senhora, essa tua timidez não seria crime.
Sentados, pensaríamos no modo melhor
De gozar nosso longo dia de amor.
Tu pelas margens do Ganges
Acharia rubis, eu, no estuário langue
Do Humber, reclamaria de tudo.
Te amaria dez anos antes do Dilúvio,
E tu, se quisesses, recusarias meu eu
Até a conversão dos Judeus.
Meu amor vegetal iria assim crescendo
Mais vasto que impérios, e mais lento;
Cem anos gastos para elogiar
Teus olhos, e tua testa contemplar;
Duzentos para adorar cada seio,
Mas trinta mil para seu recheio;
Uma era ao menos para cada seção,
E a última exibiria enfim seu coração.
Senhora, bem mereces tal status.
Recusaria te amar por mais barato.

Mas ouço às nossas costas de repente
O carro alado do tempo, rente;
E além de nós ardem na tarde
Desertos de vasta eternidade.
Tua beleza, hoje, amanhã não será,
Nem na lápide marmórea há de soar
O eco dessa canção; só vermes sem piedade
A devorar tão protegida virgindade,
E tua honra antiquada virando pó,
E cinzas todo meu desejo, a sós:
A cova é discreta e confortável alcova,
Mas que amantes ali se abracem, não há prova.

Agora, enquanto a cor em suas maçãs
Pousa em tua pele como rocio da manhã,
E enquanto tua alma transpire de desejo
E em seus poros fogos sutis revejo,
Vamos nos acabar enquanto é de matina,
E já, como amorosas aves de rapina,
De uma vez devorar o nosso tempo
Em vez de enlanguescer em seu relento.
Enrolemos nossa força, sem espera,
Nossa ternura toda numa só esfera,
E rasguemos prazeres com luta ríspida,
Ao passar pelos portões de ferro da vida;
Pois, se não podemos o sol deter
Podemos ao menos fazê-lo correr.

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À SUA TÍMIDA AMANTE
trad. Renato Suttana

Houvesse, dama, tempo e mundo à farta,
E tal reserva não seria crime.
Sentados, a escolher nosso caminho,
Do amor o longo dia passaríamos.
Buscarias rubis junto das margens
Do indiano Ganges: e eu entoaria
Junto às ondas do Humber que te amara
Por mais dez anos, até a inundação.
Eis que o recusarias, caprichosa,
Do judeu a esperar a conversão.
Meu amor, como planta, medraria
Mais vasto que os impérios e mais lento:
E cem anos passara eu a louvar
Os teus olhos, mirando a tua fronte,
E a adorar cada seio mais duzentos,
Mais trinta mil para o restante – uma era
Enfim inteira para cada parte:
E o coração revelarias na última.
Pois que és digna, senhora, de tal corte –
E a menor preço eu não quisera amar.

Mas ouço às minhas costas, sempre, a alada
Carruagem do tempo se apressando;
E à minha frente em tudo vejo abrir-se
Só desertos de vasta eternidade.
Tua graça não mais existirá,
Nem meu canto soará sob a marmórea
Abóbada; só os vermes provarão
Essa há tanto guardada virgindade:
E a tua inútil honra será pó,
E todo o meu desejo apenas cinza:
Que a sepultura é cômodo e privado
Lugar, mas às carícias – creio – impróprio.

Por isso, enquanto a cor da juventude
Como o orvalho da aurora em tua pele
Repousa e cada poro da anelante
Alma um fogo incessante ainda transpira:
Vamos gozar, enquanto nos é dado,
E devorar como aves de rapina
De uma só vez nosso tempo, sem sermos
Em suas lentas garras abatidos.
Rolemos nossa força e toda a nossa
Doçura para dentro de um só globo –
E o gozo em luta rude laceremos
Contra os portões de ferro da existência:
Pois, se este sol não podemos parar,
Que o façamos então acelerar.

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TO HIS COY MISTRESS

Had we but world enough and time,
This coyness, lady, were no crime.
We would sit down, and think which way
To walk, and pass our long love’s day.
Thou by the Indian Ganges’ side
Shouldst rubies find; I by the tide
Of Humber would complain. I would
Love you ten years before the flood,
And you should, if you please, refuse
Till the conversion of the Jews.
My vegetable love should grow
Vaster than empires and more slow;
An hundred years should go to praise
Thine eyes, and on thy forehead gaze;
Two hundred to adore each breast,
But thirty thousand to the rest;
An age at least to every part,
And the last age should show your heart.
For, lady, you deserve this state,
Nor would I love at lower rate.

But at my back I always hear
Time’s wingèd chariot hurrying near;
And yonder all before us lie
Deserts of vast eternity.
Thy beauty shall no more be found;
Nor, in thy marble vault, shall sound
My echoing song; then worms shall try
That long-preserved virginity,
And your quaint honour turn to dust,
And into ashes all my lust;
The grave’s a fine and private place,
But none, I think, do there embrace.

Now therefore, while the youthful hue
Sits on thy skin like morning dew,
And while thy willing soul transpires
At every pore with instant fires,
Now let us sport us while we may,
And now, like amorous birds of prey,
Rather at once our time devour
Than languish in his slow-chapped power.
Let us roll all our strength and all
Our sweetness up into one ball,
And tear our pleasures with rough strife
Thorough the iron gates of life:
Thus, though we cannot make our sun
Stand still, yet we will make him run.

in https://escamandro.wordpress.com/2015/01/07/to-his-coy-mistress-de-andrew-marvell-pt-2-por-matheus-mavericco/

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 01/03/2016