Jack Gilbert – De pouco em pouco: da meia-noite às quatro da manhã

Por onze anos tenho lamentado,
lamentado por não ter feito o que
queria fazer enquanto fiquei ali sentado
aquelas quatro horas, vendo-a morrer. Eu queria
rastejar entre as máquinas
e segurá-la em meus braços, sabendo
que a elementar e remanescente porção de sua
mente vagamente reconheceria que era eu
carregando-a para onde ela estava indo.

Trad.: Nelson Santander

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By Small and Small: Midnight to Four A.M.

For eleven years I have regretted it,
regretted that I did not do what
I wanted to do as I sat there those
four hours watching her die. I wanted
to crawl in among the machinery
and hold her in my arms, knowing
the elementary, leftover bit of her
mind would dimly recognize it was me
carrying her to where she was going.

Carlos Drummond de Andrade – Carta

Bem quisera escrevê-la
com palavras sabidas,
as mesmas, triviais,
embora estremecessem
a um toque de paixão.
Perfurando os obscuros
canais de argila e sombra,
ela iria contando
que vou bem, e amo sempre
e amo cada vez mais
a essa minha maneira
torcida e reticente,
e espero uma resposta,
mas que não tarde; e peço
um objeto minúsculo
só para dar prazer
a quem pode ofertá-lo;
diria ela do tempo
que faz do nosso lado
as chuvas já secaram,
as crianças estudam,
uma última invenção
(inda não é perfeita)
faz ler nos corações,
mas todos esperamos
rever-nos bem depressa.
Muito depressa, não.
Vai-se tornando tempo
estranhamente longo
à medida que encurta.
O que ontem disparava,
desbordado alazão,
hoje se paralisa
em esfinge de mármore,
e até o sono, o sono
que era grato e era absurdo
é um dormir acordado
numa planície grave.
Rápido é o sonho, apenas,
que se vai, de mandar
notícias amorosas
quando não há amor
a dar ou receber;
quando só há lembrança
ainda menos, pó,
menos ainda, nada,
nada de nada em tudo,
em mim mais do que em tudo,
e não vale acordar
quem acaso repousa
na colina sem árvores.
Contudo, esta é uma carta.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 22/02/2016

Saskia Hamilton – 1944

Ela fez circular, por toda sala, um frasco
de suco de groselha, que passou ‘de mão em mão
por todas as macas,’ escreveu,
vinte e cinco ou mais, e voltou
‘ainda meio cheio’. Alguém ajudou o vizinho
a beber, pois ele ‘não tinha mãos’
A batalha de Arnhem — e, espremidos em sua casa
junto ao rio, jaziam trezentos
ou mais, um médico e um enfermeiro.
As crianças se abrigavam no porão. Ela
assistia aos homens, lia os salmos em inglês
para eles, ‘Pois ele te livrará
do laço do caçador’, lia ela,
‘Ele te cobrirá com suas penas,
e sob suas asas estarás seguro’.
Ela voltou ao porão.
‘Você demorou tanto’,
disse sua filha, e pediu o linho branco
da boneca. Ela subiu novamente as escadas
e no topo encontrou ‘uma parte inteira
da parede sob a janela…
explodida’, os feridos com ela.

Trad.: Nelson Santander

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1944

She passed all along a room a bottle
of currant juice, it went ‘from hand to hand
along all the stretchers,’ she wrote,
some twenty-five or more, and came back
‘still half-full.’ Someone helped his neighbor
to drink, since he had ‘no hands.’
The battle of Arnhem—and pressed in her house
by the river there lay three hundred
or more, one doctor, one orderly.
The children sheltered in the cellar. She
attended the men, read the English psalms
to them, ‘Surely he shall deliver thee
from the snare of the fowler,’ she read,
‘He shall cover thee with his feathers,
and under his wings shalt thou trust.’
She returned to the cellar.
‘What a long time you have been away,’
her daughter said, and asked for her doll’s
white linen. Again she climbed the stairs
and at the top she found ‘a whole piece
of the wall under the window…
blown away,’ the wounded with it.

Nelson Santander – Pontuação

Peter Davidson – Castelos de Setembro

Os primeiros sinais de nossa condição se manifestam1:
Pesar no vento, véu de névoa sobre a lua,
Frio ligeiro, teias de aranha, grama embranquecida,
E dois dias quentes como no sul em nada alteram essa situação.
Uma manhã chega, e você sabe que isso não pode acabar bem.
Logo não será mais tempo de reuniões nos jardins;
Muito em breve, meus queridos, será a estação
Dos quintetos de Brahms, das folhas que vagam tristes além das janelas
Dos que estão sozinhos em seus quartos, isolados pela duração,
Para quem não é tempo de construir. Os que agora estão sós
Permanecerão assim durante essa estranha estação
De leitura, de escrever e-mails detalhados como cartas,
De observar as folhas secas se encharcarem nas calçadas vazias.
Rilke disse algo assim em versos que li pela última vez em Edimburgo,
Com minha tia mais bela em sua idade tardia,
Que, depois de tantas perdas, ainda se lembrava daqueles versos em alemão.

Trad.: Nelson Santander

  1. O poema September Castles de Peter Davidson é descrito pelo autor como “uma variação do Herbsttag de Rilke”. Enquanto o poema de Rilke celebra as últimas conquistas do verão antes de mergulhar na melancolia do outono, Davidson ajusta o tom, inserindo elementos de uma era digital e, possivelmente, do isolamento pandêmico. O trecho “e-mails detalhados como cartas” moderniza o sentimento de solidão e reflete um tempo de conexões frágeis, intensificando a sensação de perda iminente. Ambos os poemas compartilham o motivo da transitoriedade do outono e a solidão daqueles que não possuem uma “casa”, mas Davidson entrelaça memórias autobiográficas e referências locais (como Edimburgo) em uma expansão das paisagens emocionais de Rilke, com um toque mais urgente e sombrio. O poema de Rilke, na brilhante tradução de Nelson Ascher, já foi publicado no blog, e pode ser lido aqui. ↩︎

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September Castles

First hints of our condition manifest:
Spite in the wind, mist-gauze across the moon,
Light chill, the spider’s filaments, blanched grass,
And two days as warm as the south change nothing at all.
A morning comes when you know this cannot end well.
Soon it will be no time for gathering in gardens
All too soon, my dears, it will be the weather
For Brahms quintets, for leaves drifting triste past the windows
Of those in their rooms alone for the duration,
For whom this is no time to build. Those now alone
Are going to remain so through this estranging season
Of reading, of writing emails as detailed as letters,
Of watching dry leaves grow sodden on empty pavements.
Rilke said this in lines that I last read in Edinburgh
With my most beautiful aunt in hert later age
When, many things gone, she remembered those verse in German.

Mário Quintana – Pequeno Poema Didático

O tempo é indivisível. Dize,
Qual o sentido do calendário?
Tombam as folhas e fica a árvore,
Contra o vento incerto e vário.

A vida é indivisível. Mesmo
A que se julga mais dispersa
E pertence a um eterno diálogo
A mais inconseqüente conversa.

Todos os poemas são um mesmo poema,
Todos os porres são o mesmo porre,
Não é de uma vez que se morre…
Todas as horas são horas extremas!

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 22/02/2016

Louis MacNeice – Déjà Vu

Não volta em centenas de milhares de anos,
Volta num piscar de olhos, você estará sentada exatamente
Onde está agora, e coçando o cotovelo, o trem
Passará exatamente como agora e dirá não volta,
não volta, não volta, e, em cadência precisa,
As rodas marcarão o tempo nos trilhos e a ave no ar
Aguardará em sua caixa e será moído aquele mesmo
Grão de café que agora está no moinho, e sei o que você vai dizer
Pois tudo isso já aconteceu antes, ambos já passamos pelo moinho,
Pelo nosso Magnus Annus, e agora poderíamos quase dar por encerrado
Não fosse o fato de que, coçando o cotovelo, você é adorável demais
Assim, quaisquer que sejam as regras que deveríamos obedecer,
Nosso amor deve se estender além do tempo, pois o próprio tempo está em mora
Então essa visão dupla deve passar e passado e futuro unir-se
E onde nos mandaram nos curvar podemos estalar os dedos e rir
E agora, enquanto você observa, vou pegar esse mesmo lápis e escrever:
Não volta em centenas de milhares de anos.

Trad.: Nelson Santander

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Déja Vu

It does not come round in hundreds of thousands of years,
It comes round in the split of a wink, you will be sitting exactly
Where you are now and scratching your elbow, the train
Will be passing exactly as now and saying It does not come round,
It does not come round, It does not come round, and compactly
The wheels will mark time on the rails and the bird in the air
Sit tight in its box and the same bean of coffee be ground
That is now in the mill and I know what you’re going to say
For all this has happened before, we both have been through the mill,
Through our Magnus Annus, and now could all but call it a day
Were it not that scratching your elbow you are too lovely by half
So that, whatever the rules we might be supposed to obey,
Our love must extend beyond time because time is itself in arrears
So this double vision must pass and past and future unite
And where we were told to kowtow we can snap our fingers and laugh
And now, as you watch, I will take this selfsame pencil and write:
It does not come round in hundreds of thousands of years.

Nelson Santander – Beijo

beijo

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 22/02/2016

Tadeusz Różewicz – Epístola Apócrifa

Mas Jesus se inclinou
e com o dedo escreveu na terra
depois se inclinou novamente
e escreveu na areia

Mãe, eles são tão obtusos
e simples que preciso lhes mostrar
maravilhas faço tantas coisas
tolas e vãs
mas você compreende
e perdoa seu filho
mudo água em vinho
ressuscito os mortos
caminho sobre as águas

eles são como crianças
é preciso sempre
mostrar-lhes algo novo
imagine só

E quando se aproximaram
ele cobriu e apagou
as palavras
para sempre

Trad.: Nelson Santander

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Unrecorded Epistle

But Jesus stooped
and with his finger wrote on the ground
then he stooped again
and wrote on the sand

Mother they are so dim
and simple I have to show them
marvels I do such silly
and futile things
but you understand
and forgive your son
I change water into wine
raise the dead
walk the seas

they are like children
one has always
to show them something new
just imagine

And when they approached
he covered and effaced
the letters
for ever

Nelson Santander – Chuva

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Escrito em 1993(?)

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 22/02/2016