Cassiano Ricardo – O Festim Terrestre

O olho de Polifemo
já depois de arrancado
ao gigante bêbado,
foi posto,
entre rosas carnosas
e lírios agudos,
sobre a alva mesa.

Tinha ainda a pupila
acesa.

E os doze convivas,
— doze fomes irmãs, —
todos ao mesmo tempo,
simultâneos como
figuras de uma orquestra,
vieram, graves, comer
o olho
de Polifemo,
em dourado molho.

Eram só matéria
exigindo a matéria.
Bocas rubras de vinho
num banquete com algo
de mágico
e de antropofágico.
Ah, era tanta a fome
que nem perceberam,
um minuto após,
pousar-lhes sobre o ombro
a mão de um anjo torto
que os fez diferentes
do que eram,
no banquete feroz.

De modo
que se olhassem pra dentro
do seu próprio ser,
não se conheceriam:
“quem são?”
de tão desfigurados
pela deformação.

E ao mesmo tempo iguais
uns aos outros,
era como se olhassem
num espelho morto.
Tão iguais de rosto
que já não poderiam
distinguir quais deles
eram eles mesmos
(se todos
tinham um só rosto).

Todos deformados
pela angústia, desnudos,
reduzidos a ângulos
agudos,
no instante decomposto
em que a fome era o fruto
do absoluto.

Fruto do chão bruto.

Fruto que tinha o gosto
do suor e da lágrima
que a língua bebe ao rosto.

Mas, o olho redondo,
comido alegremente,
entre rosas carnosas
e lírios agudos,
em campo de prata
(Pã ergue um brinde a Ulisses)
como comer se come
numa mesa de doidos,
continuou olhando
a todos.
Como se olhasse um bando
de doidos.

Não lhes matou a fome.

Então, na manhã clara,
como enormes figuras,
iguais e repetidas
de um baralho humano,
os doze convivas
repentinos e feéricos,
todos ao mesmo tempo,
automaticamente,
comeram — verdes potros —
uns os olhos dos outros.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 21/02/2016

Ada Limón – Guarda compartilhada

Por que nunca vi isso como o que realmente era:
abundância? Duas famílias, duas diferentes
mesas de cozinha, dois conjuntos de regras, dois
riachos, duas rodovias, dois pais de criação
com seus aquários de peixes ou fitas cassetes ou
fumaça de cigarro ou experiência em receitas ou
habilidades de leitura. Não posso reverter isso, o disco
arranhado e parando naquela faixa
caótica original. Mas deixe-me dizer, eu era levada
de um lado para outro aos domingos e não era fácil,
mas eu era amada em cada lugar. Por isso tenho
dois cérebros agora. Dois cérebros inteiramente diferentes.
Um que sempre sente falta do lugar onde não estou,
e outro que fica aliviado por finalmente estar em casa.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Joint Custody

Why did I never see it for what it was:
abundance? Two families, two different
kitchen tables, two sets of rules, two
creeks, two highways, two stepparents
with their fish tanks or eight-tracks or
cigarette smoke or expertise in recipes or
reading skills. I cannot reverse it, the record
scratched and stopping to that original
chaotic track. But let me say, I was taken
back and forth on Sundays and it was not easy
but I was loved each place. And so I have
two brains now. Two entirely different brains.
The one that always misses where I’m not,
and the one that is so relieved to finally be home.

Cassiano Ricardo – Evocação dos Mortos

Um dia conversarei com os meus mortos.
E todos os que morri (os muitos eus que eu fui)
reunidos inquietos sôfregos cada qual com um meu rosto na mão,
me contarão (sua) a minha história.
Não obstante a tua gélida memória.
Ah, os defuntos que ficaram atrás de mim fotograficamente,
agora juntos.
Não acredito que aquele menino fui eu…
Nem acreditarei que um dia fui menino, a não ser
[que a minha dúvida se desfaça numa lágrima de identidade.

Um dia conversarei com os meus mortos.
Com todos os que fui sucessivos.
Tão mortos que não os sinto mais, nem reconheço
senão por uma cicatriz.
Mas todos presos ao meu ainda estar vivo.
Como uma estranha multidão de mim mesmo.
Como figuras trágicas de uma comitiva obrigatória.
Como comparsas de uma mesma cena continuada
que os faz um só quando uns atrás dos outros,
cinematicamente.

Cemitério de plena e rútila perspectiva
por onde espio o outro lado das coisas.
Por onde me vejo, e vejo as coisas que conversam
atrás de mim, que estou defronte do teu horizonte.

Há uma hora em que o teu refúgio é o meu subterfúgio.
O meu desesperado subterfúgio.
Não só a certeza límpida que me dás de que ninguém me agredirá pelas costas.

A dor que sinto é de hoje
não as que senti ontem e morreram comigo.
O meu lamento de ontem é histórico e desbotado.
Um pássaro empalhado, ou um couro curtido.
Uma dor que passou cristaliza-se, por arte
da natureza, passou a ser um simples material para espelho.
Uma fotografia não sente a mais mínima dor.
Mesmo que doa em nós quando mais dói…
Os meus mortos já se esqueceram destas coisas.
Prova de que estão mortos e pra sempre enterrados
No teu cemitério que só é mais frio do que os outros
por ser de cristal.

(De cristal como é o copo onde a água é mais pura
porque adquire uma cintilação de estrela)

Abismo de onde vim, deixando atrás de mim
os outros que virão conversar comigo, mas de frente,
na tua inversão prodigiosa.

Não me será preciso o ritual que Ulisses observou
quando para invocar as cabeças dos mortos
degolou suas rezes e fez o sangue rubro escorrer numa cova
desembainhando a espada para conter tantas sombras
que lhe queriam falar a um só tempo.

(O primeiro foi Elpenor que ainda não tinha sido sepultado)
Antes, diante do teu cemitério,
não sou mais que Elpenor – um corpo por chorar e insepulto.

Dia virá em que a ciência cristalizará certo pranto para
[a fabricação de um espelho.
Então o parentesco lágrima com espelho
terá sua explicação.

Os mortos me trazem, cada um (sua) a cabeça,
que foi minha, na mão.
A multidão está reunida agora, como peixes
no fundo de uma primavera sub-marinha.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 21/02/2016

Ida Vitale – Peixe na água

                        PEIXE NA ÁGUA

Como peixe na água,
como peixe, porém, pensado por Leibniz1:

peixe pleno de lago,
de lago pleno de peixes,
peixe infinito pleno de lagos infinitos
à margem de um eu infinito.
Então sim,
como um peixe na água
de um lago
de outro mundo onde
as
la(c)gunas
não nos
dilacerem.

Trad.: Nelson Santander

  1. A menção a Leibniz (1646-1716) evoca seu conceito de monadologia, segundo o qual o universo é composto por ‘mônadas’ — unidades indivisíveis que contêm em si uma representação do todo. No poema, essa ideia se manifesta no peixe que contém lagos infinitos, espelhando a noção leibniziana de que cada ser carrega em si reflexos do universo inteiro. A referência também sugere a ‘harmonia preestabelecida’ pensada pelo filósofo, que se relaciona com o ‘outro mundo’ evocado nos versos finais, onde as fragmentações deixam de existir – embora, ironicamente, seja nos versos finais que o poema mais se fragmenta visualmente, ao mimetizar o movimento das águas e o pervagar dos peixes. O que sugere que a completude está apenas no conceito – enquanto o fluxo da realidade e da linguagem é, por natureza, dinâmico e fragmentado. ↩︎

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

                        PEZ EN EL AGUA

Como pez en el agua,
como pez, empero, pensado por Leibniz:

pez lleno de lago,
de lago lleno de peces,
pez infinito lleno de lagos infinitos,
a la orilla de un sí mismo infinito.
Entonces sí,
como pez en el agua
de un lago
de otro mundo donde
no
nos
laceren
lagunas.

Waly Salomão – A Fábrica do Poema

do livro: Algaravias:

FÁBRICA DO POEMA

in memoriam Donna Lina Bo Bardi

sonho o poema de arquitetura ideal
cuja própria nata de cimento encaixa palavra por
palavra,
tornei-me perito em extrair faíscas das britas
e leite das pedras.
acordo.
e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.
acordo.
o prédio, pedra e cal, esvoaça
como um leve papel solto à mercê do vento
e evola-se, cinza de um corpo esvaído
de qualquer sentido.
acordo,
e o poema-miragem se desfaz
desconstruído como se nunca houvera sido.
acordo!
os olhos chumbados
pelo mingau das almas e os ouvidos moucos,
assim é que saio dos sucessivos sonos:
vão-se os anéis de fumo de ópio
e ficam-se os dedos estarrecidos.

sinédoques, catacreses,
metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros
sumidos no sorvedouro.
não deve adiantar grande coisa
permanecer à espreita no topo fantasma
da torre de vigia.
nem a simulação de se afundar no sono.
nem dormir deveras.
pois a questão-chave é:
sob que máscara retornará o recalcado?

(mas eu figuro meu vulto
caminhando até a escrivaninha
e abrindo o caderno de rascunho
onde já se encontra escrito
que a palavra “recalcado” é uma expressão
por demais definida, de sintomatologia cerrada:
assim numa operação de supressão mágica
vou restaurá-la daqui do poema.)

pois a questão-chave é:
sob que máscara retornará?

***

A letra do cd A Fábrica do poema:

sonho o poema de arquitetura ideal
cuja própria nata de cimento encaixa palavra por
palavra,
tornei-me perito em extrair faíscas das britas
e leite das pedras.
acordo.
e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.
acordo.
o prédio, pedra e cal, esvoaça
como um leve papel solto à mercê do vento
e evola-se, cinza de um corpo esvaído
de qualquer sentido.
acordo,
e o poema-miragem se desfaz
desconstruído como se nunca houvera sido.
acordo!
os olhos chumbados
pelo mingau das almas e os ouvidos moucos,
assim é que saio dos sucessivos sonos:
vão-se os anéis de fumo de ópio
e ficam-me os dedos estarrecidos.

metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros
sumidos no sorvedouro.
não deve adiantar grande coisa
permanecer à espreita no topo fantasma
da torre de vigia.
nem a simulação de se afundar no sono.
nem dormir deveras.
pois a questão-chave é:
sob que máscara retornará o recalcado?

sob que máscara retornará?
sob que máscara?

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 19/02/2016

Adriana Calcanhotto – A Fábrica do Poema

Ansel Elkins – Autobiografia de Eva

Calçando apenas botas de pele de
serpente, abri uma trilha, a primeira
estrada radical para fora daquele velho reino
em direção a um novo desconhecido.
Quando cheguei àqueles grandes portões flamejantes
de ouro incandescente,
encontrei-me sozinha e aterrorizada no limiar
entre o Paraíso e a Terra.
Ali ouvi um eco misterioso:
minha própria voz
cantando para mim do lado
proibido. Despertei sobressaltada —
subitamente viva em um clarão de fogo verde.

Que fique registrado: não caí em desgraça.

Saltei
para a liberdade.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Autobiography of Eve

Wearing nothing but snakeskin
boots, I blazed a footpath, the first
radical road out of that old kingdom
toward a new unknown.
When I came to those great flaming gates
of burning gold,
I stood alone in terror at the threshold
between Paradise and Earth.
There I heard a mysterious echo:
my own voice
singing to me from across the forbidden
side. I shook awake—
at once alive in a blaze of green fire.

Let it be known: I did not fall from grace.

I leapt
to freedom.

Ferreira Gullar – Galo Galo

O galo
no saguão quieto.

Galo galo
de alarmante crista, guerreiro,
medieval.

De córneo bico e
esporões, armado
contra a morte,
passeia.

Mede os passos. Pára.
Inclina a cabeça coroada
dentro do silêncio:
— que faço entre coisas ?
— de que me defendo ?

Anda

No saguão.
O cimento esquece
o seu último passo.

Galo: as penas que
florescem da carne silenciosa
e o duro bico e as unhas e o olho
sem amor. Grave
solidez.
Em que se apóia
tal arquitetura ?

Saberá que, no centro
de seu corpo, um grito
se elabora ?

Como, porém, conter,
uma vez concluído,
o canto obrigatório ?

Eis que bate as asas, vai
morrer, encurva o vertiginoso pescoço
donde o canto rubro escoa

Mas a pedra, a tarde,
o próprio feroz galo
subsistem ao grito.

Vê-se: o canto é inútil.

O galo permanece — apesar
de todo o seu porte marcial —
só, desamparado,
num saguão do mundo.
Pobre ave guerreira!

Outro grito cresce
agora no sigilo
de seu corpo; grito
que, sem essas penas
e esporões e crista
e sobretudo sem esse olhar
de ódio,

não seria tão rouco

e sangrento

Grito, fruto obscuro

e extremo dessa árvore: galo.
Mas que, fora dele,
é mero complemento de auroras.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 19/02/2016

Wendell Berry – A Meta

Mesmo enquanto sonhava, eu rezava para que o que via fosse apenas medo, e não um presságio,
pois o que vi foi a última paisagem conhecida ser destruída em nome
da meta – o solo devastado, a rocha explodida.
Aqueles que queriam voltar para casa jamais chegariam lá agora.
Visitei os escritórios onde, em nome da meta,
os planejadores planejavam em mesas vazias enfileiradas.
Visitei as fábricas barulhentas onde se faziam as máquinas
que avançariam sempre em direção à meta.
Vi a floresta reduzida a tocos e ravinas;
vi o rio envenenado – a montanha lançada no vale;
cheguei à cidade que ninguém reconhecia porque se parecia com todas as outras cidades.
Vi os caminhos gastos pelos incontáveis passos daqueles
cujos olhos estavam fixos na meta.
Sua passagem obliterou as sepulturas e os monumentos
dos que morreram na busca da meta
e que há muito foram esquecidos para sempre,
segundo a regra inevitável de que aqueles que esquecem,
esquecem que esqueceram.
Homens, mulheres e crianças agora perseguiam a meta como se ninguém jamais a tivesse perseguido antes.
As raças e os sexos agora se misturavam perfeitamente na busca da meta.
Os outrora escravizados, os outrora oprimidos,
eram livres agora para se vender ao maior lance
e entrar nas prisões mais bem pagas em busca da meta,
que era a destruição de todos os inimigos,
que era a destruição de todos os obstáculos,
que era abrir caminho para a vitória,
que era abrir caminho para a promoção,
para a salvação,
para o progresso,
para a venda concluída,
para a assinatura no contrato,
que era abrir caminho rumo à autorrealização, à autocriação,
caminho do qual quem quisesse voltar para casa jamais conseguiria,
pois cada lugar recordado havia sido deslocado;
cada amor, desfeito,
cada promessa, descumprida,
cada palavra, desdita,
para dar passagem à multidão dos individualizados,
dos autônomos, dos automotivados, dos sem-teto com seus muitos olhos
abertos em direção à meta que ainda não percebiam na distância,
sem jamais saber para onde estavam indo,
sem jamais saber de onde vieram.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

The Objective

Even while I dreamed I prayed that what I saw was only fear and no foretelling,
for I saw the last known landscape destroyed for the sake
of the objective–the soil bulldozed, the rock blasted.
Those who had wanted to go home would never get there now.
I visited the offices where for the sake of the objective,
the planners planned at blank desks set in rows.
I visited the loud factories where the machines were made
that would drive ever forward toward the objective.
I saw the forest reduced to stumps and gullies;
I saw the poisoned river–the mountain cast into the valley;
I came to the city that nobody recognized because it looked like every other city.
I saw the passages worn by the unnumbered footfalls of those
whose eyes were fixed upon the objective.
Their passing had obliterated the graves and the monuments
of those who had died in pursuit of the objective
and who had long ago forever been forgotten,
according to the inevitable rule that those who have forgotten
forget that they have forgotten.
Men and women, and children now pursued the objective as if nobody ever had pursued it before.
The races and the sexes now intermingled perfectly in pursuit of the objective.
The once-enslaved, the once-oppressed,
were now free to sell themselves to the highest bidder
and to enter the best paying prisons in pursuit of the objective,
which was the destruction of all enemies,
which was the destruction of all obstacles,
which was to clear the way to victory,
which was to clear the way to promotion,
to salvation,
to progress,
to the completed sale,
to the signature on the contract,
which was to clear the way to self-realization, to self-creation,
from which nobody who ever wanted to go home would ever get there now,
for every remembered place had been displaced;
every love unloved,
every vow unsworn,
every word unmeant
to make way for the passage of the crowd of the individuated,
the autonomous, the self-actuated, the homeless with their many eyes
opened toward the objective which they did not yet perceive in the far distance,
having never known where they were going,
having never known where they came from.

Carlos Drummond de Andrade – A Máquina do Mundo

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste… vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 19/02/2016

Alex Dimitrov – Solstício de inverno

Mais uma vez é a noite mais longa do ano.
A cidade lembra um set de filmagem.
Suas ruas berrantes a anunciar
o que não pode ser medido: silêncio,
quem passou pelos espelhos, neon no cinza.
Três pombos se amontoam sob a luz do bar.
Um casal discute em uma lanchonete enquanto um garçom
traz a conta. Não está claro o que a história,
ou mesmo os últimos cinco minutos, fizeram a eles.
Além disso, quem sabe o que fazer com o amor?
Talvez ele se apague antes de um cigarro.
O que bastaria para nos consumir, essa escuridão,
quão frios parecemos mesmo em nossa própria miséria,
mesmo sabendo que sentiremos falta disso.
Sentiremos falta disso quando acabar.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Winter Solstice

Again it’s the longest night of the year.
The city closer to a replica of movie sets.
Its garish streets announcing
what can not be measured: silence,
who were in mirrors, neon in the gray.
Three pigeons huddle under bar light.
A couple argues in a diner while a server
brings their checks. It’s unclear what history
has done to them, or even the last five minutes.
Besides, who knows what to do with love?
It may not make it through one cigarette.
And it’s enough to kill you, how dark it is
how cold we seem even in our own misery
all while knowing we will miss this.
We will miss this when it ends.