Natasha Trethewey – Teorias sobre o tempo e o espaço

Pode-se chegar lá a partir daqui, embora
não haja como voltar para casa.

Todo lugar aonde for será algum lugar
onde você nunca esteve. Experimente isso:

siga para o sul pela Mississippi 49,
os marcos da estrada, um a um, assinalando

mais um minuto de sua vida. Siga por aí
até sua conclusão natural — ponto final

na costa, o píer em Gulfport onde
os cordames dos barcos de camarão são pontos soltos

em um céu que ameaça chuva. Atravesse
a praia artificial, 26 milhas de areia

despejada sobre um mangue — terreno
soterrado do passado. Traga apenas

o que precisa carregar — um tomo de memórias,
suas páginas em branco aleatórias. No cais,

onde você embarca para Ship Island,
alguém tirará sua foto:

a fotografia — quem você era —
estará lá à espera, quando voltar

Trad.: Nelson Santander

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Theories of Time and Space

You can get there from here, though
there’s no going home.

Everywhere you go will be somewhere
you’ve never been. Try this:

head south on Mississippi 49, one—
by—one mile markers ticking off

another minute of your life. Follow this
to its natural conclusion—dead end

at the coast, the pier at Gulfport where
riggings of shrimp boats are loose stitches

in a sky threatening rain. Cross over
the man-made beach, 26 miles of sand

dumped on a mangrove swamp—buried
terrain of the past. Bring only

what you must carry—tome of memory
its random blank pages. On the dock

where you board the boat for Ship Island,
someone will take your picture:

the photograph—who you were—
will be waiting when you return

Cassiano Ricardo – Gramática Visual de Cristo

1

“Cristo, terá sido
em vão teu sacri-
fício?
vê, o sangue escorre,
acre, no massacre
das ruas.”

Cristo espalmou a
mão
cobrindo os olhos
horizontalmente
pra não ver
a destruição
do ser

2

“Cristo,
vê os pequeninos
que tanto amaste
agora garotos
nos becos
como ratos dentro
de sapatos
rotos.”

Cristo escondeu,
de novo, a face,
como se chorasse
não querendo
que o vissem
chorar.

Gramática visual
a de Cristo;
“Não ver
é não ser visto.“

3

“Cristo,
ouve a imprecação
que sai da boca
dos famintos,
dos nus,
caídos na sarjeta
fria por onde
ninguém passa
mesmo por graça.”

Cristo se mantém
mudo
cotovelo ossudo
posto
em ângulo agudo
ocultando as rugas
do rosto.

Mudo, dizia tudo
cobrindo o olhar
verde
(Ver – ser cúmplice
Não ver – igual
a não ser visto.
Gramática visual
de Cristo)

4

Como se dissesse:
“Pudesse, arranca-
ria os olhos pelo
vídeo
(como Édipo)
à hora dos robôs
regougando
invadirem a furna-
urna-noturna
prá morte dupla:
(o suicídio/
deicídio)

“Que restará
do ‘amai-vos
uns aos outros’?
Só os laivos nos
lábios
dos que se beijam
hoje
de coração trocado.”

“Desço a persiana
da pálpebra
mas fica incendia-
do em mim o olho
d’alva interior
vendo tudo,”

“Deus e o Homem
comidos pelo fogo
de fulgorídeo
no mesmo ato
exato,
execrando.”

5

Nisto Cristo
parou de falar
vendando o rosto
e a barba
já hirsuta
braço em ângulo
agudo
sobre o olhar
verde.

Já fora do ar.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 22/02/2016

Linda Gregg – Uma sede contrária

Há uma ânsia por ordem,
mas uma sede contrária. E se
toda vez que uma flor nascesse na mente
algo a entregasse ao tempo?
Folha por pétala, por folha. Como se a alma
fosse um mata-borrão deste mundo —
do maior, do mais úmido, do mais
cansado, do mais dilacerado. Tudo cantando,
mas nenhuma canção. Hamlet mais sombrio que a noite.
E a pobre Ofélia menor que as flores
que trazia. Ambos perdidos. Um morto,
a outra prestes a segui-lo.
Um pesado demais, outra frágil demais.
Ambos se descobrindo entre os caídos.
Sempre penso: é aqui
que Deus vive. Bem aqui,
neste lugar terrível e arruinado,
com ruas devastadas pelo néon,
em pleno inverno, varrido por ventos gelados.
Nestas avenidas de Chicago.

Trad.: Nelson Santander

A Thirst Against

There is a hunger for order,
but a thirst against. What if
every time a flower forms in the mind,
something gives it away to time?
Leaf by petal, by leaf. As if the soul
were a blotter of this world —
of the greater, the wetter, the more
tired, the more torn. All singing,
but no song. Hamlet darker than night.
And poor Ophelia less than the flowers
she wore. Both lost. One dead,
the other to follow soon.
One too heavy, one too frail.
Both finding themselves among the fallen.
Each time I think, it is here
that God lives. Right around here,
in this terrible, ruined place
with streets made desolate by neon,
in midwinter and freezing winds.
In these Chicago avenues.

Louis MacNeice – Uma catarata concebida como uma procissão de cadáveres

Cai o rio e por cima do peitoril caixões de funerais frios1
Tombam fundo e repousam na tumba selada da piscina,
E a água amarela limpa a campa e o calhau tampa o necrotério
E o rio-corcel salta e mergulha e borbulha em fúria e frenesi,
E os caixões se espalham, tambores se esbarram, águas escorrem.
E os corcéis-pantera erguem cascos e patas que puxam o caixão,
E os corpos cintilam na fluência fluvial, e da água seus queixos se inclinam
E sorvem o jato e lambem o trago e torcem as cabeças e grasnam,
Afogados e embriagados pela catarata que os arrasta e os enterra
E os soterra e os encerra e solfeja e zomba sobre seus ossos;
Os sons de órgãos que o vento desrepresa jamais penetrarão o fio da correnteza,
E tudo o que ouvirão será o cair dos cascos e o distante tilintar dos arreios,
O soar dos sinos nas cabeças dos cavalos e o riso do coveiro,
E o rumor que perderá seu vigor até se mesclar ao silêncio,
E então o minuto ouvido caindo, sem cessar de ser ouvido,
E depois o minuto seguinte e o minuto seguinte ao minuto seguinte.

Trad.: Nelson Santander

  1. Esse poema sinistro de MacNeice me lembrou o “Noturno Oprimido”, de Carlos Drummond de Andrade. Ambos os poemas exploram a força sombria e incontrolável da água como uma metáfora de morte e esquecimento. Em ambos, a água assume um papel ameaçador e inexorável, carregando consigo o peso de algo irreparável e macabro, com uma carga de sofrimento subjacente. No entanto, enquanto MacNeice enxerga a catarata como uma marcha fúnebre grandiosa e ritualística, Drummond descreve a água de maneira íntima, quase opressora, ligada ao espaço doméstico, onde ela simboliza uma presença sinistra e destrutiva que invade o cotidiano com uma “queixa feroz”. Assim, a água em Drummond torna-se um lamento daquilo que se aproxima e devasta, refletindo uma angústia mais introspectiva, enquanto em MacNeice, ela é a própria procissão da morte, carregada de força coletiva e inevitável. ↩︎

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A Cataract Conceived as the March of Corpses

The river falls and over the walls the coffins of cold funerals
Slide deep and sleep there in the close tomb of the pool,
And yellow waters lave the grave and pebbles pave its mortuary
And the river horses vault and plunge with their assault and battery,
And helter-skelter the coffins come and the drums beat and the waters flow.
And the panther horses lift their hooves and paw and shift and draw the bier,
The corpses blink in the rush of the river, and out of the water their chins they tip
And quaff the gush and lip the draught and crook their heads and crow,
Drowned and drunk with the cataract that carries them and buries them
And silts them over and covers them and lilts and chuckles over their bones;
The organ-tones that the winds raise will never pierce the water ways,
So all they will hear is the fall of hooves and the distant shake of harness,
And the beat of the bells on the horses’ heads and the undertaker’s laughter,
And the murmur that will lose its strength and blur at length to quietness,
And afterwards the minute heard descending, never ending heard,
And then the minute after and the minute after the minute after.

Cassiano Ricardo – Etc.

Para que o mundo exista, existimos.
Pois seja.

Sem os nossos olhos, sem o que somos,
que adiantaria haver mundo?
Seria a árvore dos dourados pomos, etc.

O que é ignorado não existe.
O que é eterno também não existe.
A eternidade é uma forma de não existência.

Ao menos para nós o mundo não existiria
se não fosse existirmos.
Para mim, por exemplo, o mundo existe
porque ora estou alegre, ora sou triste.
Mas no fim vem a morte e… nos leva.
O seu poder é bem maior que o nosso;
porque é o da treva, e o nosso, esse não passa
de só dar existência ao que claramente já existe,
ao que só existe em razão dos nossos frágeis sentidos.
Que podemos ouvir, olhar, tocar, etc.

Agora mesmo, não faz senão um minuto,
no banco do jardim… que foi? Um homem suicidou-se.
O dedo lhe está preso, ainda, no gatilho,
rígido como uma hora certa. Sem nenhum
arrependimento.

Muita gente reunida em redor do seu corpo.
Muitos rostos examinando o seu rosto.

Mas ele suicidou-se, apenas? Não é, isso, bem menos
do que ele fez?

Ele desceu violentamente a cortina da noite
sobre nossos rostos, que só continuam vivos
para nós.

O seu corpo ali está, presente a todos,
mas nós — que somos todos — já estamos ausentes.

Ele nos suprimiu.
Ele nos destruiu também, simbolicamente.
Que destruir a si mesmo importou, para ele,
em destruir o mundo físico,
que só existia em razão dos seus frágeis sentidos
principalmente em razão dos seus olhos, etc.
Como dizer-se apenas: suicidou-se?

Ele desceu violentamente a cortina da noite.
Jogou ao chão a sua própria estátua.
Não aceitou a explicação da vida.
Fez qualquer coisa de mais belo e mais monstruoso.
Pois nem Deus (e Deus é Deus)
conseguirá, jamais, fazer o que ele fez: suicidar-se.

Ah, ele conserva ainda
na mão a arma com que apagou o sol e as estrelas.

Como dizer-se apenas: suicidou-se?

Agora virá a mulher e essa mulher o abraçará loucamente.
A esposa, e um anjo, a filha, lhe dirão palavras estranguladas.

Virá a ambulância. Alguém já chamou a polícia,
e haverá autópsia, etc.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 22/02/2016

 

 

Carl Sandburg – O crepúsculo dos búfalos

Os búfalos se foram.
E os que viram os búfalos se foram.
Os que viram os búfalos aos milhares e como eles pisoteavam a relva da pradaria
     com seus cascos até reduzi-la a pó, suas grandes cabeças baixas, avançando
     em um grandioso cortejo ao crepúsculo,
Os que viram os búfalos se foram.
E os búfalos se foram.

Trad.: Nelson Santander Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Buffalo Dusk

The buffaloes are gone.
And those who saw the buffaloes are gone.
Those who saw the buffaloes by thousands and how they pawed the
prairie sod into dust with their hoofs, their great heads down pawing
on in a great pageant of dusk,
Those who saw the buffaloes are gone.
And the buffaloes are gone.

Jorge Luis Borges – Remorso por qualquer morte

Livre da memória e da esperança,
Ilimitado, abstrato, quase futuro,
O morto não é um morto: é a morte.
Como o Deus dos místicos,
A quem se devem negar todos os predicados,
O morto, onipresentemente alheio,
Não é senão a perdição e a ausência do mundo.
Tudo lhe roubamos,
Não lhe deixamos nem uma cor, nem uma sílaba:
Aqui está o pátio que seus olhos já não compartilham,
Ali a calçada onde espreitava suas esperanças.
Até o que pensamos talvez o pensasse ele também;
Repartimos, como ladrões,
O tesouro das noites e dos dias.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 22/02/2016

Remordimiento por cualquier muerte

Libre de la memoria y de la esperanza,
Ilimitado, abstracto, casi futuro,
El muerto no es un muerto: es la muerte.
Como el Dios de los místicos,
De quien deben negarse todos los predicados,
El muerto ubicuamente ajeno
No es sino la perdición y ausencia del mundo.
Todo se lo robamos,
No le dejamos ni un color ni una sílaba:
Aquí está el patio que ya no comparten sus ojos,
Allí la acera donde acechó sus esperanzas.
Hasta lo que pensamos podría estarlo pensando él también;
Nos hemos repartido como ladrones
El caudal de las noches y de los días.

W.S. Merwin – Rio

Li Po1, já se foi o pequeno bote
que o levou dez mil li2 rio abaixo
passando pelos gibões que chamavam
das duas margens e eles também se foram
e as florestas de onde chamavam
também se foram e você se foi e cada
som que você ouviu se foi
agora resta apenas o rio
que sempre seguiu seu próprio curso

Trad.: Nelson Santander

  1. Li Po (ou Li Bai) foi um dos maiores poetas da dinastia Tang, conhecido por suas composições líricas sobre a natureza, o vinho e a transitoriedade da vida. Sua poesia é frequentemente associada à estética taoísta, marcada por uma visão de mundo que enfatiza o fluxo e a impermanência. No poema “River”, W. S. Merwin faz uma referência direta a um famoso poema de Li Po (abaixo, em inglês), que descreve uma viagem de barco pelo rio Yangtzé, capturando a sensação de movimento e efemeridade. Merwin dialoga com essa obra ao evocar o poeta chinês e sua travessia, explorando o tema do desaparecimento e da memória, num tributo à própria transitoriedade da vida e da natureza.

    White King City I left at dawn in the morning
    glow of the clouds,

    The thousand-mile journey to Jiang Ling,
    completed in a single day,

    On either shore the gibbons’ chatter sounds
    without pause,

    While my light boat skims past thousands of crags.

    Em tradução livre:

    Cidade do Rei Branco, deixei ao amanhecer
    no brilho das nuvens matinais,
    A viagem de mil milhas até Jiang Ling,
    concluída em um só dia,
    Nas margens, o tagarelar incessante dos gibões,
    Enquanto meu leve bote desliza por mil rochedos.
    ↩︎
  2. Uma antiga unidade de medida chinesa de distância, ainda utilizada na China hoje em dia, embora seu valor tenha variado ao longo da história. Na época de Li Po, um “li” correspondia aproximadamente a 500 metros. Portanto, “dez mil li” representaria uma extensão significativa, cerca de 5.000 quilômetros, sendo usado poeticamente para sugerir uma longa jornada, muitas vezes exagerada para enfatizar a grandiosidade da travessia. ↩︎

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River

Li Po the little boat is gone
that carried you ten thousand li
downstream past the gibbons calling
all the way from both banks and they
too are gone and the forests they
were calling from and you are gone
and every sound you heard is gone
now there is only the river
that was always on its own way

Cassiano Ricardo – Missa de Corpo Presente

O seu corpo tão alvo, o seu corpo presente
é a coisa mais ausente, é uma ilusão
pensar que a rosa ou o fruto já colhidos
ainda soluçam desprendidos da haste.

O seu corpo é já um fruto neutro e frio.
Não obstante jovem, tem a mesma idade
de todos os que morreram antes, ou mesmo
na mais remota origem babilônica.

Todos os mortos tem a mesma idade.
Que me adiante chorar sobre a argila ainda tenra,
que esfriou não faz, senão, apenas um minuto?
Todo cadáver é uma coisa já longínqua.

Embora tenha esfriado apenas há um minuto
é algo que regressou súbita e automaticamente
à noite que existiu antes de Deus.
Todo cadáver é anterior ao sol e a Deus.

Mas por que sofro tanto? Não será justamente
por estar sendo vista, ser um corpo presente
aquela que voltou ao nunca ter nascido
e me deixou ausente, eternamente?

Aquela que voltou à fonte, ao horizonte
de quando antes de tudo e me deixou ausente
para que eu vá matando em mim sua presença
até morrê-la quanto o dia morre a estrela?

Se eu fosse Júpiter me converteria
em chuva de ouro sobre sua imagem.
Se eu fosse Glauco me transformaria
num peixe azul no índico da imemória.

De “João Torto e a Fábula”, nova edição, 1963, Livraria José Olympio Editora

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 21/02/2016

Mary Oliver – Prece

Não precisa ser
a íris azul, pode ser
a erva daninha em um terreno baldio, ou algumas
pedras pequenas; apenas
preste atenção, então junte

algumas palavras e não tente
torná-las rebuscadas, isso não é
uma competição mas uma porta

que leva à gratidão, e a um silêncio onde
outra voz pode falar.

Trad.: Nelson Santander

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Praying

It doesn’t have to be
the blue iris, it could be
weeds in a vacant lot, or a few
small stones; just
pay attention, then patch

a few words together and don’t try
to make them elaborate, this isn’t
a contest but the doorway

into thanks, and a silence in which
another voice may speak.