Eugenio Montale – A enguia

A enguia, a sereia
dos mares frios que deixa o Báltico
para alcançar os nossos mares,
nossos estuários, os rios
que sobe pelas profundezas, contra a enxurrada,
de braço em braço e depois
de veio em veio, cada vez mais delgados,
sempre mais dentro, sempre mais perto do coração
da rocha, filtrando-se
por regos de lama até que um dia
uma luz desfechada dos castanheiros
acende sua chispa num poço d`água parada,
nas valas que se despejam
dos flancos do Apenino, na Romagna;
a enguia, tocha, açoite,
flecha de Amor na terra
que só as nossas ravinas ou os ressecados
regatos pirenaicos reconduzem
a paraísos de fecundação;
a verde alma que procura
vida onde só
reina aridez e a desolação,
a centelha que diz:
tudo começa quando tudo parece
carbonizar-se, galho enterrado;
breve arco-íris, íris gêmea
daquela que teus cílios encastoam
e que fazes brilhar intacta entre os filhos
do homem, afundados no teu lamaçal, podes tu
não crê-la irmã?

Trad.: Geraldo Holanda Cavalcanti

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 13/05/2020

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

L’anguilla

L’anguilla, la sirena
dei mari freddi che lascia il Baltico
per giungere ai nostri mari,
ai nostri estuari, ai fiumi
che risale in profondo, sotto la piena avversa,
di ramo in ramo e poi
di capello in capello, assottigliati,
sempre più addentro, sempre più nel cuore
del macigno, filtrando
tra gorielli di melma finché un giorno
una luce scoccata dai castagni
ne accende il guizzo in pozze d’acquamorta,
nei fossi che declinano
dai balzi d’Appennino alla Romagna;
l’anguilla, torcia, frusta,
freccia d’Amore in terra
che solo i nostri botri o i disseccati
ruscelli pirenaici riconducono
a paradisi di fecondazione;
l’anima verde che cerca
vita là dove solo
morde l’arsura e la desolazione,
la scintilla che dice
tutto comincia quando tutto pare
incarbonirsi, bronco seppellito;
l’iride breve, gemella
di quella che incastonano i tuoi cigli
e fai brillare intatta in mezzo ai figli
dell’uomo, immersi nel tuo fango, puoi tu
non crederla sorella?

Li-Young Lee – Cuidado

Então somos poeira. Enquanto isso, minha esposa e eu
fazemos a cama. Segurando as pontas opostas do lençol,
nós o levantamos, fazendo-o ondular, e depois puxamos com força,
medindo com os olhos enquanto ele cai alinhado
entre nós. Puxamos, dobramos e ajustamos. E se eu tiver sorte,
ela vai se lembrar de um sonho recente e me contar.
Um dia, nos deitaremos e não nos levantaremos.
Um dia, tudo o que guardamos será entregue.
Até lá, seguiremos aprendendo a reconhecer
aquilo que amamos e o que é necessário
para cuidar do que não nos cabe.
Tantas vezes o medo me levou
a abandonar o que sei que, no fim,
terei que renunciar. Mas, por ora,
ouvirei o sonho dela,
e ela o meu, nossa mútua escuta trazendo
mais e mais detalhes à luz
de uma cuidado recíproco e frágil.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

To Hold

So we’re dust. In the meantime my wife and I
make the bed. Holding opposite edges of the sheet,
we raise it, billowing, then pull it tight,
measuring by eye as it falls into alignment
between us. We tug, fold, tuck. And if I’m lucky,
she’ll remember a recent dream and tell me.
One day we’ll lie down and not get up.
One day, all we guard will be surrendered.
Until then, we’ll go on learning to recognize
what we love, and what it takes
to tend what isn’t for our having.
So often fear has led me
to abandon what I know I must relinquish
in time. But for the moment,
I’ll listen to her dream,
and she to mine, our mutual hearing calling
more and more detail into the light
of a joint and fragile keeping.

Eavan Boland – Quarentena

Na pior hora da pior estação
do pior ano de todo um povo
um homem partiu do internato com a mulher
Ele andava – ambos andavam – para o norte

Ela tinha a febre da fome e não se aguentava.
Ele a ergueu e a pôs nas costas.
Andou assim para oeste e oeste e norte. Até que
ao anoitecer sob estrelas congeladas chegaram.

De manhã ambos foram encontrados mortos.
De frio. De fome. Das toxinas de toda uma história.
Mas os pés dela estavam aninhados no peito dele.
O calor final de sua carne foi seu presente para ela.

Nunca deixe um poema de amor chegar a esse fim.
Não há lugar aqui para o inexato
Elogio à graça leve e sensual do corpo.
Há tempo apenas para esse impiedoso inventário:

Sua morte juntos no inverno de 1847.
Também o que sofreram. Como viveram.
E o que há entre um homem e uma mulher.
E em qual treva se pode provar melhor.

Trad.: Mario Sergio Conti

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 12/05/2020

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Sobre o poema e sua autora:

Da Folha: Conheça ‘Quarentena’, poema de Eavan Boland, sobre a Grande Fome

“Eavan Boland ensinou inglês na Universidade Stanford por 21 anos. Com a pandemia, ela quis ficar perto das filhas e netos. Voltou no mês passado da Califórnia para a Irlanda e, pelo computador, continuou a dar aulas sobre literatura irlandesa. Até a segunda-feira passada.

Acordou, teve um infarto e morreu à tarde, em Dublin. Tinha 75 anos. Do presidente do país aos meios literários, houve comoção. Ela não é popular porque nenhum poeta o é mais: poesia virou arte de elite.

Mas foi uma voz incisiva, sensível à história e à condição feminina no presente.

Não é pouco. Sobretudo numa terra de escritores arquiconhecidos —Swift, Sterne, Yeats, Shaw, Wilde, Joyce, Beckett, Heaney. Todos eles tensionados pela história da Irlanda, por sua vez marcada pela posição subalterna e atritos com o Reino Unido. Todos eles homens.

Eavan Boland começou a escrever cedo e sua poesia amadureceu devagar. Filha de diplomata, teve uma infância cosmopolita em Londres e Nova York. A volta à Irlanda, insular, foi um estranhamento.

Frequentava rodas literárias em Dublin, mas casou e foi morar num subúrbio pacato.

Teve duas filhas e, como todas as suas vizinhas, cuidava da casa e da família. Contudo, professora, ensaísta e poeta, não era bem como elas. Os terremotos dos anos 1960 não a tiraram do prumo. O primeiro feminismo, um pouco. E a obra de Sylvia Plath, totalmente.

Sua poesia adquiriu aos poucos contundência. Fez versos sobre casamento, menstruação, criar as filhas, mastectomia. Em “Violência Doméstica” e “Uma Mulher sem País”, fez algo meio impossível: foi crítica e convencional, sentimental e seca, evidente e elíptica.

“Quarentena”, de 2001, seu poema mais conhecido, embebe em ácido uma chaga aberta da história irlandesa. E, na forma, se insurge contra a imagem feminina na poesia romântica. É singular, estranho, belo.

Nele, a pior hora é a noturna. A estação letal, o inverno. O ano horrível, 1847. Foi o auge da Grande Fome. Uma praga dizimou todas as plantações de batata da Irlanda, alimento básico dos camponeses empobrecidos e endividados. Ou seja, da maioria acachapante do povo.

Explorados pela aristocracia e hostilizados pela Coroa, durante anos os irlandeses padeceram de fome, frio, epidemias várias. Mais de 1 milhão de pessoas pereceram, 20% da população. Outro milhão emigrou.

A ilha de esmeralda regrediu à treva medieval da peste negra.

Foi o maior desastre sanitário, demográfico e humanitário do século 19. O crítico literário Terry Eagleton —neto de imigrantes irlandeses— chamou-o de “Auschwitz irlandês”, mas pré-moderno. As raízes do nacionalismo, da religiosidade fanática e da luta violenta pela independência estão fincadas na Grande Fome.

“Quarentena” começa com um casal que foge das autoridades. A mulher teve tifo (“famine fever”) e o marido a carrega pela noite gelada até que chegam —e o poema não diz onde. São encontrados enregelados, paralisados num último gesto: ele tenta aquecer os pés dela em seu peito.

Eavan Boland aí se insurge contra poemas de amor, contra o romantismo galante que põe a mulher no pedestal de musa. Seu impiedoso inventário registra a fuga, a dor, o frio. Monossílabos sincopados politizam o amor mudo de um casal, sua busca inútil por calor na escuridão.

Em “Quarentena”, o que sobrevive ao homem e à mulher não é apenas o amor —como em “An Arundel Tomb”, de Philip Larkin. É a Grande Fome, a sociedade que a produziu, da história irlandesa que vem de 1847 e molda o presente. Cinco estrofes condensam a catástrofe.

Eavan Boland reviveu e deu forma ao passado. Inspirou-se em meia dúzia de frases de uma memória da Grande Fome, escrita por um padre no início do século 20. “Minha Própria História”, o livro, dá até o nome dos jovens do poema, Kit e Patrick.

Há uma longa discussão na Irlanda acerca da representação da Grande Fome. Tem-se como assente que ela foi sub-representada: existem poucos romances, peças, poesias, filmes a seu respeito. A sub-representação se estenderia à historiografia, à economia e à sociologia.

Parece ser verdade. Porque a Grande Fome é pouco conhecida fora de lá. Isso se deve mais ao presente que ao passado. Na indústria cultural, por exemplo, Hollywood venceu a Segunda Grande Guerra. Para cada Svetlana Aleksiévitch há cem Spielbergs.

Há infindáveis imagens da peste que hoje engolfa o Brasil. Boa parte delas é chocante, mas vazia. A poesia política pode representar as toxinas de toda uma história?”

Quarantine

In the worst hour of the worst season
of the worst year of a whole people
a man set out from the workhouse with his wife.
He was walking—they were both walking—north.

She was sick with famine fever and could not keep up.
He lifted her and put her on his back.
He walked like that west and west and north.
Until at nightfall under freezing stars they arrived.

In the morning they were both found dead.
Of cold. Of hunger. Of the toxins of a whole history.
But her feet were held against his breastbone.
The last heat of his flesh was his last gift to her.

Let no love poem ever come to this threshold.
There is no place here for the inexact
praise of the easy graces and sensuality of the body.
There is only time for this merciless inventory:

Their death together in the winter of 1847.
Also what they suffered. How they lived.
And what there is between a man and woman.
And in which darkness it can best be proved.

Marina Colasanti – Sexta-feira à noite

Sexta-feira à noite
Os homens acariciam o clitóris das esposas
Com dedos molhados de saliva.
O mesmo gesto com que todos os dias
Contam dinheiro, papéis, documentos
E folheiam nas revistas
A vida dos seus ídolos.

Sexta-feira à noite
Os homens penetram suas esposas
Com tédio e pénis.
O mesmo tédio com que todos os dias
Enfiam o carro na garagem
O dedo no nariz
E metem a mão no bolso
Para coçar o saco.

Sexta-feira à noite
Os homens ressonam de borco
Enquanto as mulheres no escuro
Encaram seu destino
E sonham com o príncipe encantado.

Marina Colasanti

– 26 de setembro de 1937

+ 28 de janeiro de 2025

Anna Swir – Eu lavo a camisa

Pela última vez lavo a camisa
de meu pai, que morreu.
A camisa cheira a suor. Conheço
esse cheiro desde a minha infância,
tantos anos
lavei suas camisas e cuecas.
Eu as secava numa estufa de ferro,
ele as vestia sem passar.

De todos os corpos do mundo,
animais, humanos,
só um exsudava esse suor.
E o aspiro
pela última vez. Ao lavar esta camisa
destruo no mundo
para sempre
este cheiro.
Agora
só restarão os quadros
que cheiram a tinta a óleo.

Trad.: Carlito Azevedo

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Piorę koszulę

Ostatni raz piorę koszulę
mojego ojca, który umarł.
Koszulę czuć potem, pamiętam
ten pot od dziecka,
tyle lat
prałam mu koszule i kalesony,
suszyłam
przy piecyku żelaznym w pracowni,
kładł je
bez prasowania.

Ze wszystkich ciał na świecie,
zwierzęcych, ludzkich,
tylko jedno wydzielało ten pot.
Wdycham go
po raz ostatni. Piorąc tę koszulę
niszczę go
na zawsze.
Teraz
pozostaną po nim już tylko obrazy,
które czuć farbą.

Emily Dickinson – Após grande dor sobrevém um sentimento austero

Após grande dor sobrevém um sentimento austero –
Os Nervos ficam cerimoniosos como um cemitério –
Indaga o rijo Coração se foi Ele que sofreu,
Se Ontem, ou Séculos antes aconteceu?

Os pés, mecânicos, circundam sem cessar –
Nos Sopés, no Ar, em qualquer Lugar –
Um caminho de madeira
Que indiferentemente medra
Um contentamento de Quartzo, uma pedra –

A Hora de Chumbo chegou –
Lembrada, para quem perdurou,
Como as pessoas congeladas recordam a neve –
Primeiro – o Frio – após o Torpor – e por fim o até breve –

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 08/05/2020

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

After great pain a formal feeling comes

After great pain a formal feeling comes –
The Nerves sit ceremonious, like Tombs –
The stiff Heart questions was it He, that bore,
And Yesterday, or Centuries before?

The feet, mechanical, go round –
Of Ground, or Air, or Aught –
A Wooden way
Regardless grown,
A Quartz contentment, like a stone –

This is the Hour of Lead –
Remembered, if outlived,
As Freezing persons, recollect the snow –
First – Chill – then Stupor – then the letting go –

Linda Gregg – Noites na vizinhança

Carrego a alegria como um coral canta,
mas discretamente como a noite entoando
cânticos. Para afastar o vento,
e permitir que os que estão ocultos saiam
para a rua e se juntem
à lua e a essa profusão de
estrelas e constelações.
Percebo que aqueles que sofrem
brilham mais do que os outros.
É para que possam ser encontrados,
acho. Encontrados e abrigados.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Nights in the Neighborhood

I carry joy as a choir sings,
but quietly as the dark
carols. To keep the wind away
so the hidden ones will come
out into the street and add
themselves to this array of
stars, constellations and moon.
I notice the ones in pain
shine more than the others.
It’s so they can be found,
I think. Found and harbored.

William Carlos Williams – Nevasca

Neve:
anos de fúria seguindo
horas que flutuam indolentes —
a nevasca
deposita seu fardo
cada vez mais fundo por três dias
ou sessenta anos, não? Então
o sol! um tumulto de
flocos amarelos e azuis —
Árvores de aparência hirsuta destacam-se
em longas alamedas
sobre uma selvagem solidão.
O homem se vira e lá —
seu solitário rastro estendendo-se
sobre o mundo.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 07/05/2020

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Blizzard

Snow:
years of anger following
hours that float idly down —
the blizzard
drifts its weight
deeper and deeper for three days
or sixty years, eh? Then
the sun! a clutter of
yellow and blue flakes —
Hairy looking trees stand out
in long alleys
over a wild solitude.
The man turns and there —
his solitary track stretched out
upon the world.

Edward Hirsh – Como será a última noite

Você está sentado à janela
de um café vazio à beira-mar.
Já é noite, e o dono está fechando,
embora você ainda esteja curvado sobre o aquecedor,
que lentamente perde calor.

Agora você caminha rumo à costa
para observar os últimos azuis se dissipando nas ondas.
Você viveu em casas pequenas, espaços apertados —
as paredes ao seu redor pareciam se fechar —
mas o céu e o mar também eram seus.

Não há mais ninguém por perto para beber com você
da névoa úmida, das profundezas sombrias.
Você está só com o cosmos em redemoinho.
Adeus, amor, distante, em um lugar quente.
Aqui, a noite é sem fim, e o silêncio, infinito.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

What the Last Evening Will Be Like

You’re sitting at a small bay window
in an empty café by the sea.
It’s nightfall, and the owner is locking up,
though you’re still hunched over the radiator,
which is slowly losing warmth.

Now you’re walking down to the shore
to watch the last blues fading on the waves.
You’ve lived in small houses, tight spaces—
the walls around you kept closing in—
but the sea and the sky were also yours.

No one else is around to drink with you
from the watery fog, shadowy depths.
You’re alone with the whirling cosmos.
Goodbye, love, far away, in a warm place.
Night is endless here, silence infinite.

Nuno Júdice – Epidemia

Passa de um para o outro através do olhar, de uma palavra,
de um toque de mãos; por vezes, basta um leve suspiro
para adivinhar a febre, e atrás dele descobre-se que
não é preciso cura nem tratamento. Instala-se na cabeça,
no corpo, na boca, nos dedos, sem dor nem cansaço,
apenas aquela ânsia a que se dá o nome de desejo e,
para que abrande, o remédio é ver quem se ama, ouvir
a voz que alivia a solidão, saber onde está, o que faz,
o que veste. E a doença está nos que a evitam, nos
que a não conhecem por ignorância ou por medo,
nos que nunca ousaram e, um dia, rejeitaram o que
se lhes oferecia. Assim, dizem os especialistas,
não evitem o olhar que vos procura, não esqueçam
a palavra que vos chega, tão inesperada; e recebam
sem receio essa mão que tereis sonhado e vos
procura, fazendo com que entreis, para sempre,
no campo dos atingidos pelo mais doce dos contágios.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 06/05/2020

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog