Anna Akhmátova – Cleópatra

Os palácios de Alexandria
Cobriram-se de sombras suaves.
Púschkin

Ela já beijara os lábios de Antônio, sem vida,
E chorava, de joelhos, ante Augusto, vencida…
E os servos a traíram. Sob a águia de Roma
As trombetas ressoam. E o crepúsculo assoma.

E chega o último escravo de sua beleza.
Alto e solene, num sussurro, ele pondera:
“Vão te levar para ele… em triunfo… como presa…”
Mas a curva do colo de cisne não se altera.

Amanhã acorrentarão seus filhos. Pouco lhe resta:
Brincar com este rapaz até perder a mente
E, de piedade, a víbora negra — último gesto —
Depor no peito moreno com a mão indiferente.

Trad.: Augusto de Campos

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Aleksandr Blok – Cleópatra

Cleópatra

O museu triste da rainha
Há um, dois, três anos já se abriu.
Bêbada e louca a turba ainda se apinha…
Ela espera no túmulo sombrio.

Jaz na sinistra caixa
De vidro, nem morta nem viva.
Sobre ela a multidão saliva
Palavras torpes em voz baixa.

Ela se estende preguiçosamente
No sono eterno a que se recolhera…
Lenta e suave, uma serpente
Morde o peito de cera.

Eu mesmo, fútil e perverso,
Com olheiras de anil,
Vim ver o lúgubre perfil
Na cera fria imerso.

Todos te contemplamos neste instante.
Se essa tumba não fosse uma mentira
Eu ouviria, outra vez, arrogante,
Teu lábio putrefato que suspira:

“Dai-me incenso. Esparzi-me flores.
Em eras anteriores
Fui rainha do Egito. Hoje sou só
Cera. Apodrecimento. Pó.”

“Rainha! O que há em ti que me fascina?
No Egito, como escravo, eu te adorei.
Agora a sorte me destina
A ser poeta e rei.

Da tua tumba não vês que já imperas
Na Rússia como em Roma? Não vês, mais,
Que eu e César, em séculos e eras,
Ante o destino seremos iguais?”

Emudeço. Contemplo. Ela não muda.
Só o peito pulsa, quase
Respirando entre a gaze,
E ouço uma fala muda:

“Outrora eu suscitei paixões e lutas.
O que suscito agora?
Um poeta bêbado que chora
E o riso bêbado das prostitutas.”

Trad.: Augusto de Campos

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Ian Hamilton – A Tempestade

Longe, uma tempestade irrompe. Ela avança em ondas até o nosso quarto.
Olhas para a luz, de modo que ela ilumina um lado
Do teu rosto, tua boca contraída, teu assustado olhar.
Voltas-te para mim e quando chamo, tu vens
E ajoelhas-te ao meu lado, desejando que eu tome
Tua cabeça entre minhas mãos, como se fosse
Uma delicada tigela que a tempestade pudesse quebrar.
Queres que eu me coloque entre ti e o brutal trovão.
Pousando em tuas carnes, minhas grandes mãos se agitam,
Pulsam em ti e então, perguntando-se como, apertam.
A tempestade me atravessa enquanto tua boca se abre.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 16/02/2019

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The Storm

Miles off, a storm breaks. It ripples to our room.
You look up into the light so it catches one side
Of your face, your tight mouth, your startled eye.
You turn to me and when I call you come
Over and kneel beside me, wanting me to take
Your head between my hands as if it were
A delicate bowl that the storm might break.
You want me to get between you and the brute thunder.
Settling on your flesh my great hands stir,
Pulse on you and then, wondering how to do it, grip.
The storm rolls through me as your mouth opens.

Faith Shearin – Lição de Piano

Meus olhos se abrem antes que o sol derrame sua gema no céu;
uma garota no andar de cima pratica escalas. Imagino o arco
de sua mão, a sua saia que paira acima do joelho.

Na rua, ouço um indigente, um copo de papel, um homem que discute
física com um pombo; um par de meninas sopra bolas de chiclete
para o céu. Talvez uma velha senhora sonhe com sua infância

num banco do parque, enquanto o homem ao seu lado decide deixar
sua esposa. O mundo é complicado: uma janela aberta,
minha cabeça afundada no travesseiro, onde descubro uma ação de maré:

tantos corpos rolando em direção ao planeta, tantos outros
refluindo. Num café, talvez um dia eu acenda um cigarro,
lembrando da última pessoa que não me amou, abrindo a

boca para ver se dela sai fumaça ou palavras. Mas hoje
acordo me perguntando: como vou fazer caber toda essa vida em uma só?
Preciso de um mapa, de uma lista de vocabulários; não consigo aprender o mundo

rápido o suficiente. Quero ser como a garota do andar de cima que se preparou
diante de um piano de cauda e ensinou seus próprios dedos cegos a cantar.

Trad.: Nelson Santander

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Piano Lesson

My eyes open before the sun drops its yolk into the sky
and a girl upstairs is practicing scales. I imagine the arch
of her hand, the way her skirt might pause above the knee.

In the street I hear a victim, a paper cup, a man who talks
physics with a pigeon; a pair of girls blow bubblegum bubbles
at the sky. Perhaps an old woman dreams her childhood

on a park bench while the man beside her decides to leave
his wife. The world is complicated: an open window,
my head pressed to a pillow where I find a tidal action:

so many bodies rolling onto the planet, so many others
turning back. In a café I may someday light a cigarette,
remember the last person who did not love me, open my

mouth to see if it speaks smoke or words. But these days
I wake up wondering: how will I fit all this life in one life?
I need a map, a vocabulary list; I can’t learn the world

fast enough. I want to be like the girl upstairs who has braced
herself before a grand piano and taught her own blind fingers to sing.

Francisco Brines – Aquele verão de minha juventude

E o que restou daquele distante verão
nas costas da Grécia?
O que resta em mim do único verão de minha vida?
Se pudesse escolher, de todos em que vivi,
algum lugar, e o tempo que o ata,
sua milagrosa companhia me arrasta até lá,
onde ser feliz era a razão natural de existir.

Perdura a experiência, como um quarto fechado da infância;
não resta mais a lembrança de dias sucessivos
nesta sucessão medíocre dos anos.
Hoje sinto essa carência,
e busco na ilusão algum resgate
que me permita ainda olhar para o mundo
com o amor necessário;
E assim saber-me digno do sonho da vida.

De tudo o que foi ventura, daquele lugar de alegria,
saqueio avaramente
sempre uma única imagem:
seus cabelos agitados pelo vento,
e o olhar fixo no mar.
Tão só esse momento indiferente.
Selada nele, a vida.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 15/02/2019.

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Aquel verano de mi juventud

Y qué es lo que quedó de aquel viejo verano
en las costas de Grecia?
¿Qué resta en mí del único verano de mi vida?
Si pudiera elegir de todo lo vivido
algún lugar, y el tiempo que lo ata,
su milagrosa compañía me arrastra allí,
en donde ser feliz era la natural razón de estar con vida.

Perdura la experiencia, como un cuarto cerrado de la infancia;
no queda ya el recuerdo de días sucesivos
en esta sucesión mediocre de los años.
Hoy vivo esta carencia,
y apuro del engaño algún rescate
que me permita aún mirar el mundo
con amor necesario;
y así saberme digno del sueño de la vida.

De cuanto fue ventura, de aquel sitio de dicha,
saqueo avaramente
siempre una misma imagen:
sus cabellos movidos por el aire,
y la mirada fija dentro del mar.
Tan sólo ese momento indiferente.
Sellada en él, la vida.

Kim Addonizio – Para a mulher que chora descontroladamente no banheiro ao lado

se você já acordou vestida às 4 da manhã
fechou as pernas para alguém que amava abriu-
as para alguém que não roçou-se contra
um travesseiro no escuro ficou miseravelmente em uma praia
algas agarradas em seus tornozelos pagou
uma boa grana por um corte de cabelo ruim se afastou
de um espelho que queria matá-la sangrou
no banco de trás por falta de um absorvente
se atravessou um rio a nado sob a chuva cantou
usando um vibrador como microfone ficou acordada
para ver a lua engolir o sol inteiro
arrancou os pontos do seu coração
porque por que não? se você acredita que nada &
ninguém pode / ouça eu te amo a alegria está a caminho

Trad.: Nelson Santander

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To the Woman Crying Uncontrollably in the Next Stall

If you ever woke in your dress at 4 A.M. ever
closed your legs to someone you loved opened
them for someone you didn’t moved against
a pillow in the dark stood miserably on a beach
seaweed clinging to your ankles paid
good money for a bad haircut backed away
from a mirror that wanted to kill you bled
into the back seat for lack of a tampon
if you swam across a river under rain sang
using a dildo for a microphone stayed up
to watch the moon eat the sun entire
ripped out the stitches in your heart
because why not if you think nothing &
no one can / listen I love you joy is coming

Paulo Henriques Britto – de “Duas autotraduções”

(CADERNO, XIV)
II

Isto, também, será lembrado um dia,
porém não tal qual é sentido agora.
Não que as lembranças sejam distorcidas
de propósito; é só porque a memória,
entre o vivido e o lembrado, interpõe
como que um filtro, com pequenas falhas
ou até mesmo substituições –
nem tanto por mentiras deslavadas,
mas por versões plausíveis do ocorrido.
São mudanças sutis, que se desculpam,
como perdas num texto traduzido,
e não trapaças. Pois a vida é tua,
e se nem sempre é possível amá-la,
tens o direito (ao menos) de editá-la.

Paulo Henriques Britto – de “Caderno”

XIV

This, too, will one day be remembered
not quite like what it feels like now.
It’s not that memories are tampered
with purposely, but that, somehow,
between life lived and life relalled
things go awry, details get lost
and are replaced – not by a bald-
faced fabrication, but at worst
a plausible version of what
could have happened, in circumstances
at just a slight remove from fact.
We’re talking subtlety, nuances,
not downright lies. Don’t you forget it:
Your life is yours (at least) to edit.

Republicação: poema publicado na página originalmente em 14/02/2019

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Tony Harrison – Longa distância II

Embora minha mãe há dois anos já fosse falecida,
papai mantinha junto ao fogão os chinelos dela, quentes,
colocava ao seu lado na cama bolsas de água aquecida
e ainda ia renovar seus passes e bilhetes

Não podíamos simplesmente aparecer. Era necessário
telefonar. Ele adiava a visita por uma hora
para poder arrumar as coisas dela e parecer solitário,
como se fosse um crime sua paixão ainda pura.

Ele não podia arriscar a minha maldição da descrença,
embora tivesse certeza de que em breve ouviria
sua chave arranhar a fechadura enferrujada e acabar com sua tristeza.
Ela tinha saído para buscar o chá, ele sabia.

Acredito que a vida termina com a morte, é o que sempre digo.
Vocês não foram juntos às compras; mesmo assim, em minha
nova agenda telefônica de couro preto se aninha
seu nome e o número inativo para o qual ainda ligo.

Trad.: Nelson Santander

Long Distance II

Though my mother was already two years dead
Dad kept her slippers warming by the gas,
put hot water bottles her side of the bed
and still went to renew her transport pass.

You couldn’t just drop in. You had to phone.
He’d put you off an hour to give him time
to clear away her things and look alone
as though his still raw love were such a crime.

He couldn’t risk my blight of disbelief
though sure that very soon he’d hear her key
scrape in the rusted lock and end his grief.
He knew she’d just popped out to get the tea.

I believe life ends with death, and that is all.
You haven’t both gone shopping; just the same,
in my new black leather phone book there’s your name
and the disconnected number I still call.

Joan Margarit – Amor e tempo

Lembras quando ainda desconhecias
que a vida não teria piedade de ti?
Amor e tempo: o tempo nos habita
como a areia do rio que, lentamente,
vai moldando a forma da margem.
O amor, que refletiu em teu olhar
o esplendor da ilha do tesouro.
Sensual, solitária, cercada
pela sonora senectude do mar
e os gritos militares das gaivotas.
O sonho clandestino dos cinquenta anos.

Trad.: Nelson Santander

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Amor y tiempo

Recuerda cuando aún desconocías
que la vida no tendría piedad contigo.
Amor y tiempo: el tiempo nos habita
como arena del río que, despacio,
va cambiando la forma de la costa.
El amor, que ha copiado en tu mirada
la claridad de la isla del tesoro.
Sensual, solitaria, rodeada
por la sonora senectud del mar
y gritos militares de gaviotas.
El sueño clandestino de los cincuenta años.