Thomas Hardy – Autoinconsciência

A pé, ao longo daquela via
Ele caminhou naquele dia,
Cismando as formas que os sonhos retratavam,
E ele só parecia ter
Raramente olhos para ver
Aqueles momentos que o rodeavam.

Cintilantes pássaros dourados
Faziam um tropel animado,
Bicando longas palhas, efervescentes.
E, levando ramos de azevinho,
Voavam cruzando o caminho
Que ele percorria, só, indiferente.

Da margem até o interior
E por cima e em derredor
Eles fugiam pela sebe adjacente;
Muitas vezes até o canal,
Sua amarela vibração
Pulando na borda da ardósia mais rente.

O traçado do mar, perenal,
Com aquele brilho de metal,
Flashes brancos, e a vela que a percorria,
Sim, ele deve ter avistado
Com um dos olhos semicerrado
Entre os projetos sobre os quais refletia.

Sim, achavam-se à sua roda
Estas perfeições terrestres todas,
Mas a utopia que ao seu chamado vinha
Era o que mais o motivava
Enquanto ele peregrinava,
Ao passo que a si mesmo ele não se via.

Mortas hoje como urnas quebradas
Estão aquelas aves douradas,
E tudo o que importava já é passado;
Porém, o Elfo a que chamam Deus,
Agora lhe mostra aquele eu
Como era, e deveria ser mostrado.

Oh, teria sido muito bom
Se ele conseguisse então
Manter distância e tudo gerir, com calma.
Contudo, agora tal visão
É pura e simplesmente irrisão,
Não acalma o corpo nem salva a alma.

Alguns, não todos, podem dizer
Que pouco haveria pra se ver
Se aquilo tudo fosse entrevisto antes.
Não! Ele está assaz consciente
De que havia algo ali, um ente
Que se erguia com um imortal semblante.

Trad.: Nelson Santander

Self-Unconscious

Along the way
He walked that day,
Watching shapes that reveries limn,
And seldom he
Had eyes to see
The moment that encompassed him.

Bright yellowhammers
Made mirthful clamours,
And billed long straws with a bustling air,
And bearing their load
Flew up the road
That he followed, alone, without interest there.

From bank to ground
And over and round
They sidled along the adjoining hedge;
Sometimes to the gutter
Their yellow flutter
Would dip from the nearest slatestone ledge.

The smooth sea-line
With a metal shine,
And flashes of white, and a sail thereon,
He would also descry
With a half-wrapt eye
Between the projects he mused upon.

Yes, round him were these
Earth’s artistries,
But specious plans that came to his call
Did most engage
His pilgrimage,
While himself he did not see at all.

Dead now as sherds
Are the yellow birds,
And all that mattered has passed away;
Yet God, the Elf,
Now shows him that self
As he was, and should have been shown, that day.

O it would have been good
Could he then have stood
At a focussed distance, and conned the whole,
But now such vision
Is mere derision,
Nor soothes his body nor saves his soul.

Not much, some may
Incline to say,
To see in him, had it all been seen.
Nay! he is aware
A thing was there
That loomed with an immortal mien.

https://www.theguardian.com/books/2023/jan/02/poem-of-the-week-self-unconscious-by-thomas-hardy

Manuel António Pina – de “Cuidados Intensivos”

I

“A esta hora e neste sítio
(miocárdio ventricular esquerdo)
é a abstracta vida que me assalta.
Eles não sabem
que o seu coração pulsa,
ferido, no meu coração,
que a minha dor alheia
vagarosamente mata
os seus sonhos, os seus sentidos,
os seus dias visíveis e invisíveis,
a linha dos telhados
ao longe sobre o céu.
Como saberiam
(com que palavras exteriores?)
que existem
dentro de mim
de um modo fora de mim,
os parentes, os amigos,
a vaga enfermeira da noite,
que enquanto o meu Único coração
morre na minha cabeça
a luz do quarto se
apaga para sempre
e o silêncio se fecha
sobre os corredores?
No quarto ao lado alguém
a noite passada morreu,
provavelmente eu.
Os livros, as flores
da mesa de cabeceira
conhecerão estas últimas coisas
em algum sítio da minha alma?”

Terça-feira, 3 de Março.

(…)

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 11/09/2018

Sharon Olds – Minha mão

Quando olho para a minha mão, e para o dorso do meu pulso,
brilhando com o petrolato que
esfreguei em suas fissuras — óleo mineral,
ceresina, lanolina, pantenol, glicerina,
bisabolol, vejo as rugas
finas, muitas formando losangos,
algumas delas longas cicatrizes vacilantes —
isso me parece comovente e afortunado. E eu gosto
das veias salientes do dorso da minha mão.
Faço parte de um casal. Meu parceiro está em
um traje de linho, numa caixa de pinho,
em New Hampshire — em uma terra consagrada no cemitério
judeu. Eu lhe digo, Carl1,
meu querido, está tudo bem, seu tecido
se dissolverá na terra quando chegar a primavera,
está tudo bem, você não pode mudar a forma
chocante do seu corpo que amo, você é inocente
na morte, você é bom.
Nós somos um casal. Lembra quando eu subi em sua cama
estreita de hospital, quando você mal conseguia se mexer,
e assim que me encaixei ao
seu lado, como a última peça de um quebra-cabeça,
nós dois desmaiamos de sono? Quando dirigi para o norte,
para fora de uma cidade de peste1, meu carro —
o seu carro, que você me vendeu pelo preço de tabela —
estava cheio de cadernos nos quais nossas histórias
são mantidas, equilibradas em sua lenta dança
para cima e para baixo. Minha epiderme
parece bonita, para mim, esta noite, frágil
e tangível, como córregos na areia onde a água
ondeia. Gostei de conversar com você sobre a
coroa de ouro que o rabino da internet
disse que você usaria depois de morto,
no banquete. E agora amo ver que
na teia da pele brilhante do meu pulso, eu já
faço parte de ti, suave e
permanente é a noite.

Trad.: Nelson Santander

  1. Carl Wallman, companheiro de longa data de Sharon Olds que morreu em fevereiro de 2020, poucas semanas antes da pandemia de Covid-19 explodir.
  2. Balladz, o livro mais recente da poeta, publicado no ano passado, e do qual foi extraído este poema, foi escrito em grande parte durante a quarentena de Covid-19 . Essa é a “peste” à qual ela se refere. 

My hand

When I look at my hand, and at the back of my wrist,
gleaming with the petrolatum which I’ve
rubbed into its chap—mineral oil,
ceresin, lanolin, panthenol, glycerin,
bisabolol, I see the fine
wrinkles, many making diamond shapes,
some of them long cicatrice wobbles—
it looks touching to me, and lucky. And I like
the veins which bulge up from the back of my hand.
I’m a member of a couple. My partner is in
a linen shift, a pine box,
a New Hampshire earth—sacred in the Jewish
cemetery. I say to you, Carl,
my darling, it’s O.K. your tissue
will melt with the dirt when spring comes,
it’s O.K. you cannot change the shock-
shape of your body I love, you are innocent
of death, you are good.
We are a couple. Remember when I climbed into your narrow
hospice bed, when you could hardly move,
and as soon as I fitted myself in
along you, like the last piece of a puzzle,
we both passed out into sleep. When I drove north,
out of a city of plague, my car—
your car which you sold me for the list price—
was packed with notebooks in which our stories
are held, balanced in their slow dance
up and down and up. My epidermis
looks pretty, to me, tonight, frail
and real, like rills in sand which water
rippled. I liked to talk with you about the
golden crown the internet rabbi
said you would be wearing, after death,
at the feast. And I love, now, seeing
in the web of my glistening wrist-skin that I am
already part with thee, tender and
permanent is the night.

José Mateos – In Memoriam

Para Pedro Sevilla

Sempre, diante da dor, estamos sozinhos,
não se deseja viver, e tu sabes disso.
Há um instante, na penumbra de um
quarto de hospital, viste a mão hirta,
seu rosto afundado que o lençol ocultou.
E foi como olhar-se num espelho
e perceber que somos menos que essa ausência,
menos que a névoa que o ar dissipa.

Eu sei; sentes agora apenas a noite
pronunciar sua absurda palavra,
e vês a humilhação, vês o esforço
que foi esta despedida.
            No entanto,
ouve-me: não sofras. Pois sempre
– mesmo nos dia nublados,
ou quando o inevitável acontece, mesmo assim –
a resposta é a vida que foge e continua,
nunca a dor nem suas indagações ao Nada.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO com alterações na tradução: poema publicado na página originalmente em 09/09/2018

En Memoria

   Para Pedro Sevilla

Siempre frente al dolor uno está solo,
no se quiere vivir, y tú lo sabes.
Hace un momento has visto, en la penumbra
de un cuarto de hospital, la mano yerta,
su rostro hundido que cubrió la sábana.
Y era como mirarse en un espejo
y ver que somos menos que esa ausencia,
menos que el humo que despeja el aire.

Ya sé; sientes que ahora únicamente
dice la noche su palabra absurda,
y ves la humillación, ves el esfuerzo
que fue esta despedida.
            Sin embargo,
escúchame: no sufras. Porque siempre
– incluso cuando un día pasan nubes,
pasa lo inevitable, incluso entonces —
la respuesta es la vida que huye y sigue,
nunca el dolor ni su pregunta a Nadie.

Linda Pastan – Graça

Quando o jovem professor juntou
as mãos no jantar e falou com Deus
sobre a minha chegada em segurança
em meio à neve, agradecendo-Lhe também
pelo alimento que iríamos comer,
foi no tom de voz que eu costumo
usar para falar com meus amigos quando ligo
e sou atendida pela secretária eletrônica,
com a qual converso sobre isso e aquilo
usando um tom casual,
imaginando que eles estejam ouvindo
mas ocupados demais para atender o telefone,
ou cuidando de negócios
importantes em outro lugar.
No dia seguinte, voando para casa
através de um céu tempestuoso
e assustador, eu soube
que invejava sua conexão com Deus
e desejei que suas preces
mantivessem meu avião no ar.

Trad.: Nelson Santander

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Grace

When the young professor folded
his hands at dinner and spoke to God
about my safe arrival
through the snow, thanking Him also
for the food we were about to eat,
it was in the tone of voice I use
to speak to friends when I call
and get their answering machines,
chatting about this and that
in a casual voice,
picturing them listening
but too busy to pick up the phone,
or out taking care of important
business somewhere else.
The next day, flying home
through a windy
and overwhelming sky, I knew
I envied his rapport with God
and hoped his prayers
would keep my plane aloft.

Joan Margarit – Ulisses nas águas de Ítaca

Estás chegando à ilha e agora sabes
o que é o acaso. Viver, o que significa.
Teu arco será pó em uma prateleira.
Pó será o tear e a peça que ele tece.
Os pretendentes, que no pátio
acamparam,
são sombras dos sonhos de Penélope.
Estás chegando à ilha enquanto o mar
arrebenta nas rochas da costa,
como faz o tempo com a Odisseia.
Ninguém jamais teceu a tua ausência
nem, sem rumor, desfez o esquecimento.
Por mais que, por vezes, a razão o ignore,
Penélope é a sombra do teu sonho.
Estás chegando à ilha: as gaivotas
cobrem a praia e não se moverão
quando, ao passares, não deixares pegada alguma,
pois não exististe: és apenas uma
lenda.
Talvez um remoto Ulisses tenha morrido em Troia,
e talvez uma mulher o tenha chorado,
mas no sonho de um poeta cego
continuas a te salvar:
na fronte de Homero, eterna
e rigorosa, cada vez que o dia desponta,
um solitário Ulisses desembarca.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO com alterações na tradução: poema publicado na página originalmente em 07/09/2018

Ulises en Aguas de Ítaca

Vas llegando a la isla y ahora sabes
qué es el azar. Vivir, qué significa.
Tu arco será polvo en un estante.
Polvo será el telar y la pieza que teje.
Los pretendientes, que en el patio
acampan,
son sombras de los sueños de Penélope.
Vas llegando a la isla mientras rompe
el mar contra las rocas de la costa,
como hace el tiempo contra la Odisea.
Nadie ha tejido alguna vez tu ausencia
ni, sin rumores, destejió el olvido.
Por más que, a veces, la razón lo ignore,
Penélope es la sombra de tu sueño.
Vas llegando a la isla: las gaviotas
cubren la playa y no se moverán
cuando al pasar no dejes huella alguna,
porque no has existido: tan sólo eres
leyenda.
Quizá un lejano Ulises murió en Troya,
y quizá lo lloró alguna mujer,
pero en el sueño de un poeta ciego
continúas salvándote:
en la frente de Homero, riguroso
y eterno, cada vez que rompe el día,
un solitario Ulises desembarca.

Tess Gallagher – Escolhas

Dirijo-me para o lado da casa de onde se vê
a montanha, a fim de aparar as árvores novas
e desobstruir a vista para a neve
sobre as serras. Mas quando olho para cima,
serrote na mão, vejo um ninho agarrado
aos galhos mais altos.
Não corto esta.
E também não corto as demais.
De repente, em cada árvore,
um ninho invisível
onde uma montanha
poderia estar.

Trad.: Nelson Santander

Choices

I go to the mountain side
of the house to cut saplings,
and clear a view to snow
on the mountain. But when I look up,
saw in hand, I see a nest clutched in
the uppermost branches.
I don’t cut that one.
I don’t cut the others either.
Suddenly, in every tree,
an unseen nest
where a mountain
would be.

Ruy Belo – Através da chuva e da névoa

Chovia e vi-te entrar no mar
longe de aqui há muito tempo já
ó meu amor o teu olhar
o meu olhar o teu amor
Mais tarde olhei-te e nem te conhecia
Agora aqui relembro e pergunto:
Qual é a realidade de tudo isto?
Afinal onde é que as coisas continuam
e como continuam se é que continuam?
Apenas deixarei atrás de mim tubos de comprimidos
a casa povoada o nome no registo
uma menção no livro das primeiras letras?
Chovia e vi-te entrar no mar
ó meu amor o teu olhar
o meu olhar o teu amor
Que importa que algures continues?
Tudo morreu: tu eu esse tempo esse lugar
Que posso eu fazer por tudo isso agora?
Talvez dizer apenas
chovia e vi-te entrar no mar
E aceitar a irremediável morte para tudo e todos

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 04/09/2018

Li-Young Lee – Comendo sozinho

Colhi as últimas cebolas frescas do ano.
O jardim está limpo agora. O solo está frio,
gasto e pardacento. O que resta do dia
arde nos bordos, nas bordas dos meus
olhos. Eu me viro, um cardeal desaparece.
Junto à porta da adega, lavo as cebolas,
depois bebo da gelada torneira de metal.

Certa vez, anos atrás, caminhei ao lado do meu pai
entre as peras caídas. Não consigo lembrar de
nossas palavras. Talvez tenhamos caminhado em silêncio. Mas
ainda o vejo se inclinar daquele jeito – a mão esquerda apoiada
no joelho, rangendo – para erguer e segurar diante dos meus
olhos uma pera podre. Nela, uma vespa
girava loucamente, vitrificada em um suco lento e brilhante.

Foi meu pai que vi esta manhã
acenando para mim das árvores. Quase
o chamei, até que cheguei perto o suficiente
para ver a pá, apoiada onde a havia
deixado, na sombra verde profunda e tremulante.

Arroz branco cozinhando, quase pronto. Ervilhas doces
fritas com cebolas. Camarão refogado no óleo
de gergelim e alho. E minha própria solidão.
O que mais eu, um jovem, poderia querer?

Trad.: Nelson Santander

P.S.: À moda melancólica da página, desejo a todos um feliz Dia dos Pais!

Eating Alone

I’ve pulled the last of the year’s young onions.
The garden is bare now. The ground is cold,
brown and old. What is left of the day flames
in the maples at the corner of my
eye. I turn, a cardinal vanishes.
By the cellar door, I wash the onions,
then drink from the icy metal spigot.

Once, years back, I walked beside my father
among the windfall pears. I can’t recall
our words. We may have strolled in silence. But
I still see him bend that way-left hand braced
on knee, creaky-to lift and hold to my
eye a rotten pear. In it, a hornet
spun crazily, glazed in slow, glistening juice.

It was my father I saw this morning
waving to me from the trees. I almost
called to him, until I came close enough
to see the shovel, leaning where I had
left it, in the flickering, deep green shade.

White rice steaming, almost done. Sweet green peas
fried in onions. Shrimp braised in sesame
oil and garlic. And my own loneliness.
What more could I, a young man, want.

Henri Michaux – Nós dois ainda

1948

Música do fogo, tu não soubeste tocar.

Lançaste sobre a minha casa um pano negro. O que é este opaco em toda a parte? É o opaco que tapou o meu céu. O que é este silêncio em toda a parte? É o silêncio que calou o meu canto.

*

De esperança tinha-me bastado um fio de água. Mas tu levaste tudo. O som que vibra foi-me retirado.

*

Tu não soubeste tocar. Pegaste nas cordas. Mas não soubeste tocar. Estragaste logo tudo. Partiste o violino. Lançaste sobre a pele de seda uma chama para fazer um horrível pântano de sangue.

*

A felicidade ria-lhe na alma. Mas era tudo engano. Não foi por muito tempo que riu.

*

Ela ia num comboio que avançava em direcção ao mar. Ia dentro de um projéctil que seguia em cima do rochedo. Embora imóvel, dirigiu-se impetuosa para a serpente de fogo que a devia destruir. E aí de súbito foi agarrada, enquanto desprevenida penteava os cabelos, contemplando a felicidade ao espelho.

*

E quando viu a chama chegar junto de si, oh…

*

No mesmo instante, a taça foi-lhe arrancada das mãos. Que não seguraram mais nada. Viu que a atiravam para um canto. Nele se deteve como num enorme objecto de meditação a resolver antes de mais nada. Dois segundos mais tarde, dois segundos demasiado tarde, fugia para a janela a pedir socorro.
Toda a chama então a envolveu.

*

Está deitada numa cama, de onde o sofrimento sobe até ao céu, até ao céu, sem encontrar deus… de onde o sofrimento desce até ao fundo do inferno, até ao fundo do inferno sem encontrar demónio.

*

O hospital dorme. A queimadura desperta. O seu corpo, como um parque abandonado…

*

Defenestrada de si mesma, procura a maneira de entrar. O vazio em que paira não responde aos seus movimentos.

*

Lentamente, na granja, o seu trigo arde.

*

Cega, através da longa barragem de sofrimento, durante um mês ela torna a subir, nadando com um esforço atroz, o rio da vida.
Paciente, volta, a traçar as formas elegantes no inominável inchaço, tece de novo a camisa da sua pele fina. Está próxima a cura. Tira amanhã o último penso. Amanhã…

*

Música do sangue, tu não soubeste tocar. Também tu não soubeste. Lançaste subitamente, estupidamente, o teu tolo pequeno coágulo para obstruir uma nova aurora.
No mesmo instante ela já não encontrou lugar. Teve mesmo que se voltar para a Morte.
Quase não deu pelo caminho. O primeiro segundo mostrou o abismo. O seguinte precipitava-a nele.

*

Do lado de cá ficámos atónitos. Não tivemos tempo para dizer adeus. Não tivemos tempo para uma promessa.
Ela tinha desaparecido do filme desta terra.

____________________
Lou
Lou
Lou, no retrovisor de um breve instante
Lou, não me vês?
Lou, o destino de ficarmos juntos para sempre em que tanto acreditavas
Que é dele?
Não vais ser como as outras que nunca mais dão sinal, submergidas no silêncio.
Não, uma morte não deve chegar para apagar o teu amor.
Na horrível espiral
que te afasta até não sei que milésima diluição procuras ainda, procuras um lugar para nós
Mas tenho medo
Não se tomaram precauções bastantes
Devíamos estar mais informados
Alguém escreve que és tu, mártir, quem vai velar por mim agora.
Oh! Duvido.
Quando toco o teu fluido tão delicado
que permanece no quarto e os teus objectos familiares que aperto nas mãos
esse fluido ténue que tanto urge proteger
Oh, duvido, duvido e tenho medo por ti,
impetuosa e frágil, à mercê das catástrofes
Todavia, vou a repartições, à procura de certificados
desperdiçando momentos preciosos
que devíamos antes gastar connosco precipitadamente
ao mesmo tempo que tu tremes de frio
aguardando na tua maravilhosa confiança que eu venha ajudar a libertar-te, pensando «Ele vem de certeza
Teve talvez um contratempo, mas não deve tardar
Há-de vir, eu conheço-o
Não vai deixar-me sozinha
Não é possível
não vai deixar-me sozinha, a sua pobre Lou…»

*

Eu não conhecia a minha vida. A minha vida passava através de ti. Esse grande problema complicado tornava-se simples. Apesar da inquietação, tornava-se simples.
A tua fraqueza ao apoiar-se em mim dava-me força.

*

Diz, será que não vamos realmente encontrar-nos nunca mais?

*

Lou, falo uma língua morta, agora que já não te falo. Já vês como em mim resultaram os teus esforços de trepadeira. Vês isso, ao menos? É verdade que tu nunca duvidaste. Era necessário um cego como eu e era-lhe necessário tempo, era-lhe necessária a tua longa doença, a tua beleza, a ressurgir da magreza e das febres, era necessária essa luz em ti, essa fé, para enfim furar a parede teimosa da sua autonomia.

*

Foi tarde que vi. Foi tarde que soube. Tarde que aprendi a palavra «juntos», que não parecia estar no meu destino. Mas não demasiado tarde.
Os anos foram a nosso favor, não contra nós.

*

As nossas sombras respiraram juntas. A nossos pés as águas do rio dos acontecimentos deslizavam quase em silêncio.
As nossas sombras respiravam juntas e com elas tudo ficava resguardado.

*

Tive frio com o teu frio. Bebi goladas do teu sofrimento. Perdíamo-nos no lago das nossas trocas.

*

Rico de um amor imerecido, rico que ignorava sê-lo, com a inconsciência dos possidentes, perdi ser amado. A minha fortuna derreteu-se num dia.

*

Árida, a minha vida continua. Mas não regresso a mim. O meu corpo permanece no teu corpo delicioso e dentro do meu peito há plumas que se agitam ao vento da distância e me fazem sofrer. A que já não é, exige, e a sua ausência absorvente devora-me e invade-me.

*

Chego a ter saudades dos dias do teu sofrimento atroz na cama de hospital, quando através de corredores nauseabundos atravessados de gemidos me dirigia para a múmia densa do teu corpo envolto em ligaduras e de súbito ouvia emergir como que o «tom» da nossa aliança, a tua voz, doce, musical, controlada, resistindo com orgulho à fealdade do desespero, quando por tua vez ouvias o meu passo, e murmuravas, tranquilizada: «Ah, estás aí».
Punha a mão no teu joelho, por cima, do cobertor sujo e tudo desaparecia então, o mau cheiro, a horrível indecência do corpo tratado como um barril ou um esgoto, por estranhos afadigados e cuidadosos, tudo ficava para trás, deixando, os nossos dois fluidos, através das ligaduras, tornarem a encontrar-se, juntar-se, misturar-se, num aturdimento do coração, no auge da desgraça, no auge da doçura.
As enfermeiras, o interno, sorriam; os teus olhos cheios de fé apagavam os dos outros.

*

O que está só volta-se para a parede à noite, para te falar. Ele sabe o que te animava. Vem partilhar o dia. Observou com os teus olhos. Ouviu com os teus ouvidos. Tem sempre coisas para ti.

*

Não me vais responder um dia?

*

Mas talvez a tua pessoa se tenha transformado numa espécie de ar de neve, que entra pela janela que tornamos a fechar, tomados de arrepios ou de um mal-estar prenúncio de drama, como me aconteceu há semanas atrás. O frio concentrou-se-me de súbito nos ombros cobri-me precipitadamente e afastei-me quando eras tu talvez e o mais quente que podias mostrar-te, à espera de ser bem acolhida; tu, tão lúcida, já não conseguias exprimir-te de outra maneira. Quem sabe se neste preciso momento tu não estás à espera, ansiosa, que eu enfim compreenda, e que venha, longe da vida onde já não estás, juntar-me a ti, pobremente, pobremente, decerto, sem meios, mas nós dois ainda, nós dois… »

Trad.: Rui Caeiro

Peguei aqui: http://vida-escrita.blogspot.com/2006/05/ns-dois-ainda_15.html

A história por trás do poema: http://vida-escrita.blogspot.com/2006/05/marie-louise.html

REPUBLICAÇÃO: poema em prosa publicado na página originalmente em 02/09/2018