Meghan O’Rourke – Erro não forçado

Outrora: aqueles longos e úmidos verões em Vermont.
Sem dinheiro e nada para fazer além de ler, nadar
no rio com homens de shorts jeans,
e depois jogar bingo fora da igreja, comemorando quando ganhávamos.
Nada parecia real para mim e tudo aquilo era muito vivo e real.
Levei muito tempo para aprender o quanto eu estava errada —
além da linha do horizonte o sol arde.
Heidegger: “Todo homem nasce como muitos homens,
e morre como um só”.
Os ossos em nós ainda cheios de tutano.
A lua lá em cima, também, um ártico lamento.
Lamento, outro uísque? Nozes?
Eu costumava achar que seguir em frente era o propósito da vida,
sempre em frente, a neve caindo, caindo espalhafatosamente.
Cometi um erro. Agora eu tenho uma testamento. Ele diz: quando eu morrer,
deixe-me continuar a viver. Uma camisa branca, pernas nuas, ossos por baixo.
Números em um quadro-negro. Uma vida pode significar uma maré de sorte,
uma fase ruim, ou um acaso.
Framboesas amarelas ao sol de julho, ameixas amargas, cortinas ao vento.

Trad.: Nelson Santander

N. do T.: o título do poema – “Unforced error” – é uma expressão do tênis que se refere a um erro cometido sem pressão do adversário, literalmente um erro não forçado. No poema – uma reflexão sobre a importância de aceitar a ambiguidade da vida e aprender a conviver com ela -, o eu lírico parece refletir sobre seus erros, insinuando que, de certa forma, eles não foram “forçados”, mas sim resultado de uma escolha pessoal – não obstante reconheça que nem tudo na vida pode ser controlável e que algumas coisas simplesmente acontecem por acaso ou por sorte.

Unforced Error

Once: those long wet Vermont summers.
No money, nothing to do but read books, swim
in the river with men in their jean shorts,
then play bingo outside the church, celebrating when we won.
Nothing seemed real to me and it was all very alive.
It took that long to learn how wrong I was—
over the rim of the horizon the sun burns.
Heidegger: “Every man is born as many men
and dies as a single one.”
The bones in us still marrowful.
The moon up there, too, an arctic sorrow.
I’m sorry, another Scotch? Some nuts?
I used to think pressing forward was the point of life,
endlessly forward, the snow falling, gaudily falling.
I made a mistake. Now I have a will. It says when I die
let me live. A white shirt, bare legs, bones beneath.
Numbers on a board. A life can be a lucky streak,
or a dry spell, or a happenstance.
Yellow raspberries in July sun, bitter plums, curtains in wind.

Bruno Gouveia e Miguel Cunha – Impossível

Biquíni Cavadão

Tudo bem quando termina bem
E os seus olhos, e os seus olhos não estão rasos d’água
Mas eu sei que no coração ficaram muitas palavras
Um vocabulário inteiro de ilusão

Tudo que viceja também pode agonizar
E perder seu brilho em poucas semanas
E não podemos evitar que a vida trabalhe com o seu relógio invisível
Tirando o tempo de tudo que é perecível

É impossível, é impossível esquecer você
É impossível esquecer o que vivi
É impossível esquecer, o que senti

Tudo que morre fica vivo na lembrança
Como é difícil viver carregando um cemitério na cabeça
Mas antes que eu me esqueça, antes que tudo se acabe
Eu preciso, eu preciso, dizer a verdade

É impossível, é impossível esquecer você
É impossível esquecer o que vivi
É impossível esquecer, o que senti
É impossível!

Jorge de Sena – Nasceu-te um filho

Nasceu-te um filho. Não conhecerás,
jamais, a extrema solidão da vida.
Se a não chegaste a conhecer, se a vida
ta não mostrou – já não conhecerás

a dor terrível de a saber escondida
até no puro amor. E esquecerás,
se alguma vez adivinhaste a paz
traiçoeira de estar só, a pressentida,

leve e distante imagem que ilumina
uma paisagem mais distante ainda.
Já nenhum astro te será fatal.

E quando a Sorte julgue que domina,
ou mesmo a Morte, se a alegria finda
– ri-te de ambas, que um filho é imortal.

David Mourão-Ferreira – Praia do Paraíso

Era a primeira
Vez que nus os nossos corpos
Apesar da penumbra à vontade se olhavam
Surpresos de saber que tinham tantos olhos
Que podiam ser luz de tantos candelabros
Era a primeira vez cerrados os estores
Só o rumor do mar permanecera em casa
E sabias a sal, e cheiravas a limos
Que tivesses ouvido o canto das cigarras
Havia mais que céu no céu do teu sorriso
Madrugada de tudo em tudo que sonhavas
Em teus braços tocar era tocar os ramos
Que estremecem ao sol desde que o mundo é mundo
É preciso afinal chegar aos cinquenta anos
Para se ver que aos vinte é que se teve tudo.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página anteriormente em 23/09/2018

Cheryl Pearson – Encantamento de proteção para um amado

Você sai com o carro em uma noite chuvosa,
e minha mente corre solta. Bêbados. Pista escorregadia.
Um corpo sob um lençol à beira da estrada. Eu te digo:
Tenha cuidado. O que quero dizer é: Eu te amo,
não vá embora. Eu quero você quente e descontente.
O rejunte entre os ladrilhos do banheiro está lascando;
a umidade na cozinha arruinou o sal. Eu listo
cada meio pelo qual você pode ser destruído, e o cão recebe
uma focinheira e permite que você respire. Nenhuma curva fechada
em duas rodas. Nenhum erro ao conduzir o caminhão articulado.
Eu te dou câncer, rompo seu apêndice. Torno-o
alérgico a abelhas. Houve situações perigosas:
eu as conto como as contas de um rosário, afago nossa sorte.
A vez em que aquaplanamos em uma lâmina de luz. A vez
em que a embreagem do seu carro falhou nos Picos. O amor
sobrevive aos amantes, sim, mas eu não quero ficar
para trás. Eu seguro a cortina, embaço a vidraça. Com
derrame. Com moto. Com infarto.

Trad.: Nelson Santander

Protection Spell For A Lover

You take out the car on a wet night,
and my mind runs wild. Drunks. Black ice.
A body in ribbons at the side of the road. I tell you,
Be careful. What I mean is, I love you,
don’t leave. I want you warm and complaining.
The grout between the bathroom tiles is chipping;
the damp in the kitchen has wrecked the salt. I list
each means of your unmaking, and so the dog
is muzzled, leaves you breathing. No sharp turn
on two wheels. No error in guiding the articulated truck.
I give you cancer, rupture your appendix. I make you
allergic to bees. There have been close calls:
I count them like rosary beads, thumb our luck.
The time we aqua-planed on a sheet of light. The time
the bite of your clutch failed in the Peaks. Love
outlives the lover, yes, but I don’t want to be
left back. I hold the curtain, fog the glass. With
stroke. With motorbike. With heart attack.

Wendell Berry – A Paz das Coisas Selvagens

Quando as dores do mundo crescem em mim
e desperto na noite ao menor som
com medo do que minha vida e a dos meus filhos possam ser,
eu saio e me deito onde o pato selvagem
repousa em sua beleza sobre as águas, e a garça se alimenta.
Eu penetro na paz das coisas selvagens
que não sobrecarregam suas vidas com premeditações
de tristeza. Eu me coloco na presença das águas tranquilas.
E sinto acima de mim as estrelas cegas
esperando com seu brilho. Por um tempo
descanso na graça do mundo, e sou livre.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO, com pequenas alterações na tradução: poema publicado na página anteriormente em 17/09/2018

The Peace of the Wild Things

When despair for the world grows in me
and I wake in the night at the least sound
in fear of what my life and my children’s lives may be,
I go and lie down where the wood drake
rests in his beauty on the water, and the great heron feeds.
I come into the peace of wild things
who do not tax their lives with forethought
of grief. I come into the presence of still water.
And I feel above me the day-blind stars
waiting with their light. For a time
I rest in the grace of the world, and am free.

Philip Schultz – Fracasso

Para pagar o funeral do meu pai,
pedi dinheiro emprestado a pessoas
a quem ele já devia dinheiro.
Um deles o chamou de zé-ninguém.
Não, eu disse, ele era um fracassado.
Ninguém se lembra o nome
de um zé-ninguém, é por isso que
eles são chamados de zés-ninguém.
Os fracassados são memoráveis.
O rabino que leu um discurso convencional
sobre um homem que não pertencia
ou acreditava em nada
era um fracassado e um zé-ninguém.
Ele fracassou em imaginar o filho
e a esposa do morto
sendo humilhados em cada palavra.
Em entender que não
acreditar ou não pertencer a
nada exigia uma espécie de
fé e resiliência.
Um tio, enumerando nos dedos
os negócios fracassados do meu pai —
um estacionamento onde se criavam gansos,
um motel que sorteava luas-de-mel,
uma pista de boliche com mariachis itinerantes —
fracassou em amar e honrar seu irmão,
que o ensinou a assobiar
embaixo das cobertas, a roubar maçãs
com ambas as mãos. De fato,
meu pai era excêntrico.
Seus relógios atrasavam, ele tropeçava
nas bainhas das calças e roncava
alto nos filmes, quando
o cansaço finalmente o
dominava. Ele não acreditava em:
poupança seguros jornais
vegetais humanos bons ou maus
fraquezas história ou Deus.
Nossa família nos evitava,
temendo o contágio. Eu deixei a cidade
mas fracassei em escapar.

Trad.: Nelson Santander

Failure

To pay for my father’s funeral
I borrowed money from people
he already owed money to.
One called him a nobody.
No, I said, he was a failure.
You can’t remember
a nobody’s name, that’s why
they’re called nobodies.
Failures are unforgettable.
The rabbi who read a stock eulogy
about a man who didn’t belong to
or believe in anything
was both a failure and a nobody.
He failed to imagine the son
and wife of the dead man
being shamed by each word.
To understand that not
believing in or belonging to
anything demanded a kind
of faith and buoyancy.
An uncle, counting on his fingers
my father’s business failures—
a parking lot that raised geese,
a motel that raffled honeymoons,
a bowling alley with roving mariachis—
failed to love and honor his brother,
who showed him how to whistle
under covers, steal apples
with his right or left hand. Indeed,
my father was comical.
His watches pinched, he tripped
on his pant cuffs and snored
loudly in movies, where
his weariness overcame him
finally. He didn’t believe in:
savings insurance newspapers
vegetables good or evil human
frailty history or God.
Our family avoided us,
fearing boils. I left town
but failed to get away.

Tamara Kamenszain – O Eco de Minha Mãe

Não consigo narrar.
Que pretérito me serviria
se minha mãe já não me tece mais?
Desamparada, então, eu me detenho
diante de um estado de coisas muito presente:
ser a descuidada que dela cuida
enquanto outros a negligenciam por mim.
São pessoas que me são dispensáveis
e a gramática se torna um escândalo
quando ela, que esqueceu as palavras,
manifesta-se em um arroubo raivoso
com o intuito de dizer tudo
embora nada se compreenda.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO, com alterações na tradução: poema publicado na página originalmente em 15/09/2018

El eco de mi madre

No puedo narrar.
¿Qué pretérito me serviría
si mi madre ya no me teje más?
Desmadrada entonces me detengo
ante un estado de cosas demasiado presente:
ser la descuidada que la cuida
mientras otros la descuidan por mí.
Son personas que me sobran
y la gramática se torna un escándalo
cuando ella que olvidó las palabras
adelanta su bebé furioso
con el fin de decirlo todo
aunque no se entienda nada.

Lucille Clifton – Dois poemas

adão pensando

ela
roubou meu osso
não é de admirar
que eu anseie cavar de volta
para dentro desesperado
para reconectar costela e argila
e ser inteiro outra vez

alguma carência está em mim
lutando para rugir com minha
boca por um nome
esta criação é tão feroz
que eu preferiria ter nascido

eva pensando

aqui é um território selvagem
irmãos e irmãs unindo
garras e asas
apalpando uns aos outros

eu aguardo
enquanto a argila bípede
ressoa em seu peito
procurando palavras para

me nomear
mas ele é lento
esta noite enquanto ele dorme
vou sussurrar em sua boca
nossos nomes

Trad.: Nelson Santander

adam thinking

she
stolen from my bone
is it any wonder
i hunger to tunnel back
inside desperate
to reconnect the rib and clay
and to be whole again

some need is in me
struggling to roar through my
mouth into a name
this creation is so fierce
i would rather have been born

eve thinking

it is wild country here
brothers and sisters coupling
claw and wing
groping one another

i wait
while the clay two-foot
rumbles in his chest
searching for language to

call me
but he is slow
tonight as he sleeps
i will whisper into his mouth
our names

Albano Martins – Haicais

Juncos em movimento.
Os cabelos da água
penteados pelo vento.

*
Num fruto
sazonado é o tempo
que amadurece.

*
Romãs: as últimas
brasas do incêndio
do verão.

*
Maçã – disse a criança.
E era apenas o sol
dependurado nos ramos.

*
Morango. O frágil
Coração da terra
levado à boca.

*
O mel no frasco:
exposto, para consumo,
o suor da abelha.

*
Mais cedo ou mais tarde
o silêncio virá
perguntar por ti.

*
A andorinha faz
a sua casa
no vento.

*
Quando o verão
morre, as amoras
vestem-se de luto.

*
Nem sempre a neve
cai do céu: às vezes
explode numa flor.

*
Um mar azul
pintou de branco
o voo das gaivotas.

REPUBLICAÇÃO: haicais publicados na página originalmente em 12/09/2023