Abdellatif Laâbi (Marrocos, 1942)

Paulo Henriques Britto – De “Duas Bagatelas”

(…)

II

Então viver é isso,
é essa obrigação de ser feliz
a todo custo, mesmo que doa,
de amar alguma coisa, qualquer coisa,
uma causa, um corpo, o papel
em que se escreve,
a mão, a caneta até,
amar até a negação de amar,
mesmo que doa,
então viver é só
esse compromisso com a coisa,
esse contrato, esse cálculo
exato e preciso, esse vicio,
só isso.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 13/01/2017

Nâzim Hikmet – O otimista

quando criança ele nunca arrancou as asas das moscas
ele não atava latas nos rabos dos gatos
não prendia besouros em caixas de fósforos
nem esmagava formigueiros
ele cresceu
e todas estas coisas foram feitas com ele
eu estava ao lado de sua cama quando ele morreu
ele disse leia para mim um poema
sobre o sol e o oceano
sobre satélites e reatores nucleares
sobre a grandeza da humanidade

Trad.: Nelson Santander (a partir de tradução para o inglês feita por Randy Blasing e Mutlu Konuk)

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Optimistic Man

as a child he never plucked the wings off flies
he didn’t tie tin cans to cats’ tails
or lock beetles in matchboxes
or stomp anthills
he grew up
and all those things were done to him
I was at his bedside when he died
he said read me a poem
about the sun and the sea
about nuclear reactors and satellites
about the greatness of humanity

Paulo Henriques Britto – De “Biographia Literária”

VII

Nada disso foi do jeito que eu quis.
Se fosse como eu quis, não haveria
de ser tão sofrido, tão infeliz.
Mas eu – o eu que sou – eu não seria.

Assim, não me lamento. Até me sinto
como quem tem não o que foi pedido,
e sim o que, guiado pelo instinto,
não pelo querer, teria querido.

O que de mais duro a vida me deu
– que dura mais quanto mais me custou
dele me acostar, e torná-lo meu –

o que não escolhi, mas me escolheu,
é o que, ao fim e ao cabo, mais eu sou.
Não é o eu que eu me quis. Mas sou eu.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 11/01/2017

Andrea Cohen – O comitê avalia

Digo à minha mãe que
ganhei o Prêmio Nobel.

De novo? ela diz. Em qual
categoria desta vez?

É uma brincadeira
que fazemos: eu finjo

que sou alguém, ela
finge não estar morta.

Trad.: Nelson Santander

The Committee Weighs In

I tell my mother
I’ve won the Nobel Prize.

Again? she says. Which
discipline this time?

It’s a little game
we play: I pretend

I’m somebody, she
pretends she isn’t dead.

Paulo Henriques Britto – Balanços

(…)

II

Como saber sem tentar?
Como tentar se é tão fácil
conformar-se de saída
com a ideia de fracasso?

Pois fracassar justifica
o não se ter nem sequer
admitido não querer-se
aquilo que mais se quer.

É um beco sem saída,
mas sempre é melhor que a rua:
mais estreito. Acolhedor.
Vem, entra. A casa é tua.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 10/01/2017

Sylvia Plath – Estrelas sobre a Dordonha

Estrelas caem densas como rochas na linha
Enfolhada de árvores cuja silhueta é mais escura
Do que o breu do céu porque não tem estrelas.
O bosque é um poço. As estrelas caem silenciosamente.
Parecem grandes, mas caem, e nenhuma lacuna é visível.
Elas tampouco emitem fogos de onde caem
Ou qualquer sinal de angústia ou ansiedade.
Elas são imediatamente devoradas pelos pinheiros.

Onde me sinto em casa, apenas as estrelas mais esparsas
Alcançam o crepúsculo, e depois de algum esforço.
E elas chegam abatidas, embotadas por muitas viagens.
As menores e mais tímidas nunca aparecem
Mas permanecem, paradas ao longe, em sua própria poeira.
Elas são órfãs. Eu não consigo vê-las. Elas estão perdidas.
Mas esta noite, elas descobriram este rio sem nenhuma dificuldade,
E estão lavadas e autoconfiantes como os grandes planetas.

A Ursa Maior é minha única conhecida.
Sinto falta das Cadeiras de Orion e Cassiopeia. Talvez elas estejam
Pairando timidamente sob o horizonte cravejado
Como um elementar problema matemático de criança.
O problema lá em cima parece ser o número infinito.
Ou então elas estão presentes e seu disfarce é tão brilhante
Que eu as estou deixando passar mesmo olhando com muita atenção.
Talvez seja a estação do ano que não está correta.

E se o céu daqui não for diferente,
E são meus olhos que estão se aguçando?
Um luxo tal de estrelas me envergonharia.
As poucas com as quais estou acostumada são comuns e duradouras;
Acho que elas não gostariam deste pano de fundo vistoso
Ou de muita companhia, ou da suavidade do sul.
Elas são muito puritanas e solitárias para tanto —
Quando uma delas cai deixa um espaço,

Uma sensação de ausência em seu antigo lugar brilhante.
E onde estou agora, de volta à minha própria estrela escura,
Vejo essas constelações em minha cabeça,
Não aquecidas pelo ar doce deste pomar de pêssegos.
Há muita tranquilidade aqui; essas estrelas me tratam muito bem.
Nesta colina, com sua vista de castelos iluminados, cada campana oscilante
é responsável por sua vaca. Eu fecho os olhos
E bebo da brisa noturna como se fosse uma notícia de casa.

Trad.: Nelson Santander

Stars Over The Dordogne

Stars are dropping thick as stones into the twiggy
Picket of trees whose silhouette is darker
Than the dark of the sky because it is quite starless.
The woods are a well. The stars drop silently.
They seem large, yet they drop, and no gap is visible.
Nor do they send up fires where they fall
Or any signal of distress or anxiousness.
They are eaten immediately by the pines.

Where I am at home, only the sparsest stars
Arrive at twilight, and then after some effort.
And they are wan, dulled by much travelling.
The smaller and more timid never arrive at all
But stay, sitting far out, in their own dust.
They are orphans. I cannot see them. They are lost.
But tonight they have discovered this river with no trouble,
They are scrubbed and self-assured as the great planets.

The Big Dipper is my only familiar.
I miss Orion and Cassiopeia’s Chair. Maybe they are
Hanging shyly under the studded horizon
Like a child’s too-simple mathematical problem.
Infinite number seems to be the issue up there.
Or else they are present, and their disguise so bright
I am overlooking them by looking too hard.
Perhaps it is the season that is not right.

And what if the sky here is no different,
And it is my eyes that have been sharpening themselves?
Such a luxury of stars would embarrass me.
The few I am used to are plain and durable;
I think they would not wish for this dressy backcloth
Or much company, or the mildness of the south.
They are too puritan and solitary for that—
When one of them falls it leaves a space,

A sense of absence in its old shining place.
And where I lie now, back to my own dark star,
I see those constellations in my head,
Unwarmed by the sweet air of this peach orchard.
There is too much ease here; these stars treat me too well.
On this hill, with its view of lit castles, each swung bell
Is accounting for its cow. I shut my eyes
And drink the small night chill like news of home.

Paulo Henriques Britto – Circular

Neste mesmo instante, em algum lugar,
alguém está pensando a mesma coisa
que você estava prestes a dizer.
Pois é. Esta não é a primeira vez.

Originalidade não tem vez
neste mundo, nem tempo, nem lugar.
O que você fizer não muda coisa
alguma. Perda de tempo dizer

O que quer que você tenha a dizer.
Mesmo parecendo que desta vez
algo de importante vai ter lugar,
não caia nessa: é sempre a mesma coisa.

Sim. Tanto faz dizer coisa com coisa
ou simplesmente se contradizer.
Melhor calar-se para sempre, em vez
de ficar o tempo todo a alugar

todo mundo, sem sair do lugar,
dizendo sempre, sempre, a mesma coisa
que nunca foi necessário dizer.
Como faz este poema. Talvez.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 07/01/2017

Jack Gilbert – O vale abandonado

Consegue entender o que é estar só por tanto tempo
que você sairia no meio da noite
e colocaria um balde no poço
apenas para sentir algo lá embaixo
puxando a outra ponta da corda?

Trad.: Nelson Santander

The Abandoned Valley

Can you understand being alone so long
you would go out in the middle of the night
and put a bucket into the well
so you could feel something down there
tug at the other end of the rope?

Paulo Henriques Britto – De “Cinco Sonetos Frívolos”

(…)

III

Mesmo o mais sólido some
sem deixar nenhum vestígio,
sem nem se ter (como exige o
costume) lhe dado um nome.  

E, como sempre, o sentido —
que se dá a posteriori,
antes que se deteriore
de todo o mal percebido —  

não capta mais que um minúsculo
ângulo do evento único
que só durou um segundo

Entrementes, coisas mais
surgem, somem, num zás-trás,
e agora já é outro o mundo.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 05/01/2017