Eis o que herdei —
Nunca foi minha própria vida,
Mas o nome de uma casa que ouvi
E outros ouviram como advertência
Do que poderia acontecer a uma garota
Ousada e apanhada pela má-sorte:
Um fragmento de um destino
Desolador, uma nota-marreta de medo —
Mas eu nunca vi o lugar.
Agora que estou em frente ao portão
E aquele tempo há muito se foi
É a ausência dele que chove,
Que perfura a costura
Do meu casacão, com agulhas
Pontiagudas, preenchendo o dia breve.
O portão de grades brancas está fechado,
A cerca branca perde-se de vista
Onde a avenida segue, a chuva
Vela a distância, abafando todo som
E um semicerrado véu de névoa
Oculta elementos do conhecido:
Frontões e janelas altas e cegas.
A história se afastou.
A chuva se incorpora à relva,
Soprada sobre o lago das marés
Além do telhado isolado
E das árvores altas no parque;
Em rajadas, ela se dispersa para sul e oeste;
A terra é secreta como sempre:
O sangue que aqui foi semeado, floresceu,
E todas as sementes foram levadas pelo vento.
Trad.: Nelson Santander
Nota contextual
O poema “Bessboro”, da poeta irlandesa Eiléan Ní Chuilleanáin, faz referência ao controverso Bessborough Mother and Baby Home (atualmente conhecido como Bessborough Centre), localizado na cidade de Cork, Irlanda, onde a autora cresceu. Este estabelecimento, administrado por freiras católicas da Congregação do Sagrado Coração de Jesus e Maria, funcionou entre 1922 e 1998.
Bessborough representa uma página sombria na história social irlandesa. Para lá eram enviadas, frequentemente contra sua vontade e em absoluto sigilo, jovens mulheres solteiras grávidas, em uma época em que a maternidade fora do casamento era considerada uma vergonha inaceitável na conservadora sociedade católica irlandesa.
O local se tornou símbolo de um sistema de opressão institucionalizada. Investigações recentes revelaram uma série de práticas abusivas: confinamento forçado das mulheres, registros adulterados de nascimentos e óbitos, sepultamentos não identificados de bebês e internas em valas comuns, maus-tratos físicos e psicológicos sistemáticos, uso de residentes como sujeitos involuntários em experimentos médicos, e um esquema de adoções forçadas e por vezes ilegais, muitas vezes enviando crianças para famílias nos Estados Unidos.
Em 2021, a Comissão de Investigação sobre Lares Materno-Infantis da Irlanda publicou um extenso relatório documentando estes abusos. Estima-se que aproximadamente 9.000 crianças morreram nestes estabelecimentos em toda a Irlanda, com uma taxa de mortalidade infantil significativamente superior à média nacional da época.
O poema de Ní Chuilleanáin ecoa essa herança cultural traumática, abordando como estes lugares existiam como ameaças veladas no imaginário feminino irlandês – um aviso sobre o destino que aguardava mulheres “ousadas” que transgredissem as normas sociais.
Para compreender mais profundamente este contexto histórico, recomenda-se a reportagem especial da BBC News: “The Girls of Bessborough” (https://www.bbc.co.uk/news/resources/idt-sh/the_girls_of_bessborough), embora existam numerosas outras fontes documentando esta trágica parte da história irlandesa recente.
Bessboro
This is what I inherit—
It was never my own life,
But a house’s name I heard
And others heard as warning
Of what might happen a girl
Daring and caught by ill-luck:
A fragment of desolate
Fact, a hammer-note of fear—
But I never saw the place.
Now that I stand at the gate
And that time is so long gone
It is their absence that rains,
That stabs right into the seams
Of my big coat, in pointed
Needles, crowding the short day.
The white barred gate is closed,
The white fence tracks out of sight
Where the avenue goes, rain
Veils distance, dimming all sound
And a halfdrawn lace of mist
Hides elements of the known:
Gables and high blind windows.
The story has moved away.
The rain darns into the grass,
Blown over the tidal lough
Past the isolated roof
And the tall trees in the park;
It gusts off to south and west;
Earth is secret as ever:
The blood that was sown here flowered
And all the seeds blew away.
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