Mário Cesariny – “de profundis amamus”

Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria

Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros

Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes

O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso

Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso

Rui Pires Cabral – Nunca se Sabe

Papéis velhos com poemas: são o joio
das gavetas. Relê-los causa aversão
e uma espécie de tristeza arrependida –
são tão nossos como as más recordações
e ainda vemos a circunstância precisa,
a causa, a ferida, por detrás de cada um.

Mas na altura havia esperança: é isso
que representam. Não pelas coisas que
dizem – é só descrença e fastio – mas
pela simples razão de termos querido
guardá-los. Com um pouco mais de alento,
de inspiração e trabalho, ainda se endireita
isto. Ou seja, os versos. E até a vida.

Amalia Bautista – Ver o Sol

Era tudo mentira e me convenço
no momento mais inoportuno.
O amor não era amor. Eram os beijos
uma maneira de saciar a sede.
As carícias, o modo de nos guiarmos
no meio da noite. Ouço agora
a voz da tristeza: se pretendes
ver o sol, deves à contraluz
contemplar um ovo semicozido.

Trad.: Nelson Santander

Ver el sol

Era todo mentira y me convenzo
en el momento más inoportuno.
El amor no era amor. Eran los besos
una manera de apagar la sed.
Las caricias, el modo de orientarnos
en medio de la noche. Oigo ahora
la voz de la tristeza: si pretendes
ver el sol, deberías al trasluz
mirar un huevo pasado por agua.

José Mateos – Caminhantes na Neblina

Símbolo da morte é esta neblina
que hoje me envolve nos ecos do bosque solitário,
que apaga os caminhos e tudo iguala,
que faz mais longe o próximo?

Assim será a morte?
Ouvir ao lado
as pessoas que amamos e não vê-las?
Saber que em nossa casa nos aguardam,
e não poder,
e não saber chegar até ela?
Onde estais amigos, pai, irmão?
E todas essas sombras
antes não eram árvores douradas?

Trad.: Nelson Santander

Paseantes en la Niebla

¿Símbolo de la muerte es esta niebla
que hoy me envuelve en los ecos del bosque solitario,
que borra sendas y la iguala todo,
que hace que esté más lejos lo cercano?

¿Así será la muerte?
¿Oír al lado
las personas que amamos y no verlas?
¿Saber que en nuestra casa nos aguardan,
y no poder,
y no saber llegar a ella?
¿A dónde estáis, amigos, padre, hermano?
Y todas esas sombras
¿antes no eran árboles dorados?

 

José Tolentino Mendonça – Calle Principe, 25

Perdemos repentinamente
a profundidade dos campos
os enigmas singulares
a claridade que juramos
conservar

mas levamos anos
a esquecer alguém
que apenas nos olhou

Angela Figuera Aymerich – Princípio e Fim (na morte de minha mãe)

Já tenho minha raiz debaixo da terra.
Já um pouco morta contigo, mãe,
há algo da minha vida que se decompõe
contigo, com teus ossos delicados,
com tuas veias azuis, com teu ventre
que côncavo sofreu, dando-me forma.
Na ignorância, mãe, não no pecado
mostraste-me como a vida brota.
Como a carne cresce e se divide
no centro sagrado da mulher.
Pequena e frágil foste. Pesava-te
um filho atrás do outro no regaço
com um humilde assombro de perceber-te
permanentemente repleta e frutificada.
E eu saí de ti com outra força.
Com uma ardente audácia de perguntas
que tu jamais havias formulado
quando a vida se te dava em júbilo
ou te assediava em duro sofrimento.
Que não estavam sequer na terrível
angústia suplicante de teus olhos
que só me pediam uma trégua,
um impossível alívio
para essa dor, para esse medo infinito
de bicho na armadilha sem saída
com que a morte, mãe, se te incutia.
Eu te vi partir. Sem te deteres.
Sem ajudar-te. Ninguém pode faze-lo
nessa hora. Todos vamos sozinhos
à nossa própria destruição. Não pude,
não pude acompanhar-te, minha mãe,
dar-te segurança em tua jornada
nem sorrir-te do outro lado
da pesada porta silente
que um dia se nos abre bruscamente,
sempre para fora, nunca como via de retorno.
E tive que soltar, fria, indefesa,
tua mão que à minha se aferrava
pedinte de um calor e uma esperança
que haviam desertado de teu sangue.
Eu sei que confiavas, supondo
em mim uma vaga onipotência, alguma coisa qualquer
capaz de te dar apoio. E eu somente
sentia uma dulcíssima ternura,
uma tremenda compaixão inútil
por teu absoluto, enorme desamparo.
E nada pude fazer. Nem sequer
ficar junto a ti. Colocas-te-me
terrivelmente distante. Separada.
Alheia. Quase hostil em teu mistério.
Indecifrável em tua quietude. Agora
aquilo de mim que estava em tuas entranhas,
que foi o meu princípio e persistia
em tua secreta intimidade, apodrece
contigo – minha raiz – ou talvez viva
como um caule profundo, recatado,
na terra que fecundas enquanto me esperas.

Trad.: Nelson Santander

Principio Y Fin (En la muerte de mi Madre)

Ya tengo mi raíz bajo la tierra.
Un poco muerta ya contigo, madre,
hay algo de mi vida que se pudre
contigo, con tus huesos delicados,
con tus azules venas, con tu vientre
que cóncavo sufrió dándome forma.
En la ignorancia, madre, no en pecado
me hiciste tú como la vida brota.
Como la carne crece y se divide
en el sagrado centro de la hembra.
Pequeña y débil fuiste. Te pesaba
un hijo tras de otro en el regazo
con un humilde asombro de mirarte
continuamente llena y frutecida.
Y yo salí de ti con otra fuerza.
Con una ardiente audacia de preguntas
que tú jamás te habías formulado
cuando la vida se te daba en júbilo
o te acosaba en duro sufrimiento.
Que no estaban siquiera en la terrible
angustia suplicante de tus ojos
que sólo me pedían una tregua,
un imposible alivio
a ese dolor, a ese infinito miedo
de bestezuela en cepo sin huida
con que la muerte, madre, te llegaba.
Yo te veía ir. Sin retenerte.
Sin ayudarte. Nadie puede hacerlo
en esa hora. Todos vamos solos
a nuestra propia destrucción. No pude,
no pude acompañarte, madre mía,
poner seguridad en tu camino
ni sonreírte desde el otro lado
de la pesada puerta silenciosa
que un día se nos abre bruscamente,
siempre hacia afuera, nunca hacia el retorno.
Y tuve que soltar, fría, indefensa,
tu mano que a la mía se acogía
mendiga de un calor y una esperanza
que habían desertado de tu sangre.
Yo sé que confiabas, suponiendo
en mí una vaga omnipotencia, un algo
capaz de sostenerte. Y yo tan solo
sentía una blandísima ternura,
una tremenda compasión inútil
por tu absoluto, enorme desamparo.
Y nada pude hacer. Ni tan siquiera
quedarme junto a ti. Te me pusiste
horriblemente lejos. Separada.
Ajena. Casi hostil en tu misterio.
Indescifrable en tu quietud. Ahora
eso de mí que estaba en tus entrañas,
que fue principio mío y persistía
en tu secreta intimidad, se pudre
contigo –mi raíz– o acaso vive
como un tallo profundo, recatado,
en tierra que tú abonas aguardándome.

Spencer Reece – Portofino

Prometa-me que você não esquecerá Portofino.
Prometa-me que você encontrará o trompe l’oeil
nas paredes daquele quarto no Splendido.
As paredes que criam um cenário em que você não pode entrar.

Talvez então você compreenda esse anseio
por permanência do qual sempre lhe falei.
Além do porto? Uma capela amarela. Um penhasco.
Prometa-me que você assistirá ao dia declinar.

E quando o céu escurecer, quando as estrelas se alastrarem
até se estilhaçarem no fim do oceano,
você saberá que o que eu falei é verdade
quando disse que o abandono é lindo.

Trad.: Nelson Santander

Portofino

Promise me you will not forget Portofino.
Promise me you will find the trompe l’oeil
on the bedroom walls at the Splendido.
The walls make a scene you cannot enter.

Perhaps then you will comprehend this longing
for permanence I often mentioned to you.
Across the harbor? A yellow church. A cliff.
Promise me you will witness the day diminish.

And when the roofs darken, when the stars drift
until they shatter on the sea’s finish,
you will know what I told you is true
when I said abandonment is beautiful.

Jesús Jiménez Domínguez – A Ponte no Nevoeiro

Detenho-me
a meio do caminho
e ouço.

Num extremo
aquele que fui grita-me:
Espera-me!

No outro,
aquele que serei sussurra-me:
Segue-me.

E a ponte, eterna,
não aguenta o peso dos três.

Trad.: Maria Sousa

El Puente en la Niebla

Me detengo
a mitad del recorrido
y escucho.

En un extremo
aquel que fui me grita:
¡Espérame!

En el otro,
el que seré me susurra:
Sígueme.

Y el puente, eterno,
no aguanta el peso de los tres.

José Gomes Ferreira – Viver Sempre Também Cansa!

Viver sempre também cansa!

O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinza, negro, quase verde…
Mas nunca tem a cor inesperada.

O Mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.

As paisagens não se transformam
Não cai neve vermelha
Não há flores que voem,
A lua não tem olhos
Ninguém vai pintar olhos à lua

Tudo é igual, mecânico e exato

Ainda por cima os homens são os homens
Soluçam, bebem riem e digerem
sem imaginação.

E há bairros miseráveis sempre os mesmos
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe
automóveis de corrida…

E obrigam-me a viver até à morte!

Pois não era mais humano
Morrer por um bocadinho
De vez em quando
E recomeçar depois
Achando tudo mais novo?

Ah! Se eu pudesse suicidar-me por seis meses
Morrer em cima dum divã
Com a cabeça sobre uma almofada
Confiante e sereno por saber
Que tu velavas, meu amor do norte.

Quando viessem perguntar por mim
Havias de dizer com teu sorriso
Onde arde um coração em melodia
Matou-se esta manhã
Agora não o vou ressuscitar
Por uma bagatela

E virias depois, suavemente,
velar por mim, sutil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo…

Chico Amaral e Samuel Rosa – As Noites

As ruas desse lugar
Conhecem bem
As noites longas, as noites pálidas
Quando eu te procurava

As casas desse lugar
Se lembrarão
Do nosso abraço, da sombra insólita
Espelho azul no chão

As ruas desse lugar
Agora eu sei
Sempre escutaram a nossa música
Quando eu te respirava

As pedras municipais
Se impregnaram
Da dupla imagem, da dupla solidão,
A sombra ali no chão

E, lá no céu, constelações
Num arranjo inusitado
O seu nome desenhado
– Pelo menos tinha essa ilusão

E, lá no céu, os astros
Num arranjo surpreendente
Se buscavam como a gente
– Pelo menos tinha essa ilusão

São milhares de estrelas
Singulares letras vivas no céu