José Alcaraz – Volta para Casa

Atravessa as ruas
absorto nos ecos das pessoas,
distante inclusive de seus pensamentos.
Não chove, não abre seu guarda-chuva,
no entanto, como sempre, molham-se
não só seus sapatos
como a vida também, porque às vezes
não recorda que o mundo o reclama.
Caminha como quem não sabe para onde,
a cada passo crê estar só
e mais longe das outras pessoas,
por isso demora a encontrar as palavras,
e quando as pronuncia já não há ninguém
esperando. Depois
novamente o caminho de volta,
as ruas, a tristeza. E nada mais,
salvo sua casa, e ele,
diante de um espelho,
olhando-me nos olhos.

Trad.: Nelson Santander

José Alcaraz – Vuelta a Casa

Atraviesa las calles
ensimismado en ecos de la gente,
distante incluso de sus pensamientos.
No llueve, no despliega su paraguas,
pero a él, como siempre, se le mojan
no solo los zapatos
sino también la vida porque a veces
no recuerda que el mundo lo reclama.
Camina como quien no sabe adónde,
a cada paso cree que está solo
y más lejos del resto de personas,
así que llega tarde a sus palabras
y cuando las pronuncia ya no hay nadie
esperando. Después
nuevamente el camino de regreso,
las calles, la tristeza. Y nada más,
salvo su casa, y él,
delante de un espejo,
mirándome a los ojos.

Hans Magnus Enzensberger – A Visita

Quando levantei os olhos da página em branco
havia um anjo no quarto.

Um anjo bastante comum
presumivelmente de menor hierarquia.

Você não pode imaginar, ele disse,
o tanto que você é dispensável.

Dos quinze mil tons de azul,
ele disse, cada um faz mais diferença

Do que tudo que você possa fazer
ou deixar de fazer.

Sem mencionar o feldspato
ou a Grande Nuvem de Magalhães.

Mesmo a banana-da-terra mais comum, com toda
sua modéstia, deixaria uma lacuna. Você não.

Eu poderia falar de seus olhos brilhantes –
Ele esperava por uma discussão, por uma longa disputa.

Eu não me mexi. Esperei em silêncio
até que ele partisse.

Trad.: Nelson Santander (a partir de tradução do alemão para o inglês feita por Michael Hamburger, David Constantine e Hans Magnus Enzensberger: https://www.bu.edu/european/files/2014/12/Chapter6_Layout-1.pdf )

Hans Magnus Enzensberger – The Visit

When I looked up from my blank page
there was an angel in the room.

A rather commonplace angel,
presumably of lower rank.

You cannot imagine, he said,
the degree to which you’re dispensable.

Of the fifteen thousand hues of blue,
he said, each one makes more of a difference

Than anything you may do
or refrain from doing,

Not to mention the feldspar
or the Great Magellanic Cloud.

Even the most common Plantain, unassuming
as it is, would leave a gap. Not you.

I could tell from his bright eyes –
he hoped for an argument, for a long fight.

I did not move.I waited in silence
until he had gone away.

Manuel António Pina – Interiores

Onde estamos agora que não nos vemos,
tu sentada diante da TV
e eu escrevendo isto, não sei o quê,
como outros dois que nós não conhecemos?

Será que alguma coisa permaneceu
do nosso amor como uma inevitabilidade,
uma saudade pousada agora na mão de Deus
existindo para sempre na sua breve eternidade?

Talvez percorramos uma rota circular
através da curvatura do espaço e do tempo
onde haveremos de nos reencontrar;
será que então de alguma forma nos reconheceremos?

Sophia de Mello Breyner Andresen – Reza da Manhã de Maio

Senhor, dai-me a inocência dos animais
Para que eu possa beber nesta manhã
A harmonia e a força das coisas naturais.

Apagai a máscara vazia e vã
De humanidade,
Apagai a vaidade,
Para que eu me perca e me dissolva
Na perfeição da manhã
E para que o vento me devolva
A parte de mim que vive
​À beira dum jardim que só eu tive.

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/04/poesia-de-sophia-de-mello-breyner-andresen-e-redescoberta-no-brasil.shtml