A Morte é grande.
Nós, sua presa,
vamos sem receio.
Quando rimos, indo, em meio à correnteza,
chora de surpresa
em nosso meio.
Trad.: Augusto de Campos
Nelson Santander
A Morte é grande.
Nós, sua presa,
vamos sem receio.
Quando rimos, indo, em meio à correnteza,
chora de surpresa
em nosso meio.
Trad.: Augusto de Campos
Escombros. Um odor de carne chamuscada. Porém não se detecta a presença de cadáveres. Aqui e ali, como sombras, algumas paredes e edificações remanescentes. A torre caída de uma catedral gótica sobre fragmentos de vitrais estilhaçados. A reverberação de suas cores projetando castelos abstratos.
Um bando de delinquentes juvenis, com as mãos nos bolsos, atravessa agora esta profundidade cênica em direção à vitrine de um grande magazine no fundo do cenário. Arrebentam-na com chutes e se atiram sobre as poltronas e sofás do mostruário, enlameando tudo com suas botas.
Um dos rapazes que desaparece, no interior da loja, ressurge com iguarias enlatadas e garrafas. Dá-se início, então, a um festim silencioso, a não ser pela TV transistorizada que lembraram-se de ligar, agora. E que capta, não se sabe de onde ou quando, entre sinfonias tenuemente marciais, a cavalgada de Valquírias seminuas sobre motocicletas a perderem-se de vista numa avenida no meio do deserto. Às suas margens, imensos outdoors marcam os ícones de uma civilização recente.
Enquanto isso, no exterior da mansão improvisada e saqueada, entardece e esfria prematuramente, parecendo que ao calor artificial se sucederá uma noite gélida. Como se em algum ponto se houvesse trincado a crosta atmosférica e através desse vão começasse a soprar um vento cósmico.
Alguém que penetra lentamente nesta paisagem da tarde e é possuído pela alegria solene de achar-se o único no Crepúsculo. Pois se todos desapareceram, não pode haver tragédia para o sobrevivente, mas êxtase.
Usa ele uma capa, com a gola levantada, e assobia uma canção aprendida também não sabe onde ou quando: “Feuilles Mortes”. E galga, então, afundando seus sapatos, o declive de uma duna de cinzas.
E lá de cima, de repente, o panorama que se abre: um rio que passa, caudaloso e pardacento, borbulhante de vapores rumo às longínquas paragens do inabitado.
Estendida, à sua borda, uma adolescente nua, com seus óculos escuros, se oferece aos últimos raios de um sol pálido.
Apressa-se o personagem a ir ter com ela, porque ao último homem deve Deus ter destinado a última mulher e a ele cabe abrigá-la bem junto à costela.
Aproxima-se, porém, em redemoinhos, um vento ferruginoso. E escuta-se, alhures, uma gargalhada desdentada de alguém feliz por finalmente encontrar-se entre os seus pares.
Desfaz-se a menina em pó diante do homem e permanecem apenas os óculos escuros sobre a terra esturricada. Coloca-os o homem sobre os seus olhos, senta-se no chão e nada lhe resta a não ser transformar-se no espectador privilegiado de um clímax.
Anoitece e estampa-se uma lua partida na abóbada celeste.
E, no alto de um monte de entulho, surge o perfil de um violinista com seu instrumento. Sua casaca está rasgada em tiras, seu rosto enegrecido de cinza e pólvora e, no entanto, desde as primeiras notas da melodia ele a retesa em seu arco com toda a dignidade de um rito.
A paisagem é minha
só porque tenho olhos.
O pássaro é meu
só porque tenho ouvidos.
Amo com a mão as coisas
que o estar aqui me deu.
No universal verde,
sou meu ser, não sou eu.
Em meu léxico lírico
só existem duas palavras,
e uma é irmã da outra:
a manhã e o amanhã.
Sinto que o espaço é a vida
e que o tempo é a morte.
E ponho, entre uma e outra,
Meu rebanho de estrelas.
Ferindo o tempo
Vestindo eternidade
O meu amor tranqüilo e mudo
Vive em ti
Tão leve e manso
Que tu não o sentes
Tu
Irei, irás
onde os ventos
nos exigem.
E o universo
é o começo
de estar contigo.
2.
O arado
com o trigo
vai rodar.
Irei, irás
com os cabelos
rodando.
O céu irá
rodar
no colo plúmeo
das espigas.
Seguirás
com as colinas
e os plátanos
rodando.
O mundo
é tua mão
desprevenida.
Vai rodando
a alma
no teu corpo,
o feno dos meses,
tuas tranças.
Irei, irás
onde reluz
de outro limite,
o mar.
E o universo todo
é o começo
de estar contigo.
Um meio-dia nu, numa enorme moldura
de prata.
Parece mais o escudo de um arcanjo de fogo.
Mas não é nada. É apenas um espelho.
Um rico espelho. De extraordinário fulgor.
Próprio pra ser colocado à parede
de um ministério da Fazenda, ou de uma casa
de jogo.
Toda a cidade cabe dentro dele.
Árvores, automóveis, povo, casas de comércio
e vendedores de jornais, principalmente.
Enfim, todo o vaivém instantâneo da rua
salpicado aqui e ali pelo sol matutino.
Resultado de tudo, ele é uma coisa viva,
de gestos súbitos e esplendor repentino.
Quatro operários o conduzem pela rua.
E há uma outra rua nele, ainda mais coletiva,
é a rua oposta, extremamente nítida,
por onde vêm nossos melhores camaradas,
os nós mesmos,
ao nosso encontro, fáceis, momentâneos.
São os nossos irmãos, nascidos de repente
e em grande número.
Imagens conduzindo os nossos rostos,
ao nosso encontro, fáceis, simultâneos.
Enquanto os quatro operários conduzem o espelho
de rua em rua.
Mas não é nada. É apenas um espelho,
terrivelmente nu, que ora é azul no reflexo,
ora vermelho. É, apenas, um espelho.
Afinal, que é um espelho? um mágico de circo
casado com uma grande mulher nua
que é a vida, que é a verdade nua e crua.
Ó loucos, que levais o espelho pela rua,
quem vos encomendou tão estranho transporte?
Quando não haja nada num espelho,
há todas as hipóteses de nudez proibida
que sempre acodem à imaginação do povo.
Há uma população mágica e instantânea que mora,
toda, em sua superfície álgida.
Quando não haja nada num espelho,
há mesas verdes onde os números da fortuna
dançam.
Há duas mãos nervosas segurando um baralho
até clarear o dia.
Há o tresnoitado que, depois de haver perdido tudo,
se mira no cristal e aí se vê tragicamente,
peito engomado e colarinho duro,
mas nu, completamente nu, por dentro.
Há muito rosto, para quem – a uma certa hora –
olhar no espelho é um convite ao suicídio.
Quando não haja nada, nada, num espelho,
há ainda a hipótese
de que ele possa incendiar uma esquadra.
Quando não haja nada, absolutamente nada,
no abismo límpido de um espelho
há a pior nudez, a nudez feérica do Nada!
E o seu reflexo é tão súbito
que fere como ponta de aço os olhos inocentes
das crianças reunidas na calçada
só para o ver passar enormemente oblongo
e rútilo.
Ó loucos, escondei esse esplendor terrífico
pra que as ruas não mais se olhem no espelho
e o povo não se verifique.
Escondei-o até que a noite desça
pois as estrelas serão mais suaves e mansas…
Em cada rua escriturada em que ando,
Onde o Tâmisa escriturado passa,
Eu nos rostos que encontro vou notando
Os sinais da doença e da desgraça.
Ouço nos gritos que os adultos dão,
E nos gritos de medo do inocente,
Em cada voz, em cada interdição,
As algemas forjadas pela mente
Se o Limpa-Chaminés acaso grita,
Assusta a Igreja escura pelos anos;
Se o Soldado suspira de desdita,
O sangue mancha os muros palacianos.
Mas o que mais à meia noite é ouvido
É a rameira a lançar praga fatal,
Que estanca o pranto do recém nascido
E empesteia a mortalha conjugal
Trad.: Paulo Vizioli
Perambulo por todas as ruas com barreiras
Vizinhas de onde o próprio Tâmisa
Entre barreiras flui, e em cada face que encontro
Marco marcas de fraqueza, marcas de pesar.
Ouço o ruído dos grilhões mentais apostos
Em cada alocução de cada homem
No grito de temor de cada infante
Nas vozes todas, em cada interdição.
Como o grito dos meninos que limpam chaminés
Ressoa intimidante nos tempos encardidos.
E o suspiro do infeliz conscrito
Escorre em sangue pelas paredes dos palácios.
Mas sobretudo como na calada da noite
A maldição das adolescentes prostitutas
Provoca o choro do recém-nascido
E envolve em pragas o ataúde nupcial.
Trad.: Benedicto Ferri de Barros
Tudo que nasceu para morrer
Deve-se a terra misturar
Para da geração se libertar:
Então, que tenho eu a ver contigo?
Do orgulho e da vergonha nasce o sexo
Pela manhã florido, à tarde morto.
Mas a piedade faz da Morte sono
E os sexos se levantam para o trabalho e o pranto.
Tu, mãe da minha mortal parte
Que cruelmente meu coração moldaste
E com fingidas lágrimas
Obliteraste meu olfato, meu olhar e meu ouvir.
E minha fala fizeste de cerâmica insensível
Falseando minha vida de mortal:
A morte de Jesus me liberou:
Então, que tenho eu que haver contigo?
Trad.: Benedicto Ferri de Barros
Natal
Não tenho vontade
de mergulhar-me
em um novelo
de estradas
Carrego tanto
cansaço
sobre os ombros
Deixai-me assim
como uma
coisa
colocada
em um
canto
e esquecida
Aqui
não se sente
outra presença
que o calor bom
Estou
com as quatro
cabriolas
de fumaça
da lareira.
Trad.: Luigi Lucchesi