Manuel de Freitas – Grand Hotel København, 326

Onze horas: a tua mão adormecida marca
agora um conto de Karen Blixen
– veremos em breve essa casa cinzenta,
em Helsingør – enquanto eu ouço uma sonata
de Scarlatti tocada por Scott Ross
e sei que também isso ficarei a dever à Dinamarca.

Apontamentos culturais? Podem até chamar-lhes
assim, ignorando a áspera nudez da voz,
o grito comum que viemos suspender aqui.
Lá em baixo, por exemplo, os funcionários do
restaurante, terminado o serviço, abrem
a terceira garrafa de champanhe e fumam
ruidosamente, como se amanhã não existisse.

A questão, no fundo, é apenas esta: há momentos
em que a vida nos parece quase bela,
escolhos onde embatem as mais íntimas certezas.

Talvez adormeçamos lado a lado,
de costas para a morte, e haja corsários ao fundo,
um mar de gelo protegendo-nos da noite.

Inês Dias – Joaquim e Judite

Fizera toda a viagem com ele ao colo.

Queria despedir-se junto ao mar,
mas as partidas são tão imperfeitas
se o coração é uma caixa de cinzas
demasiado enferrujada para abrir
ao vento. Mesmo agora, depois de lavada
a última partícula que se lhe colara
à pele, sabia que o amor passara a ter
o peso exacto das ondas e, por isso,
nunca mais deixaria de o ouvir.

E ria, apontando-nos mais um turista
à procura das marcas do milagre
na pedra. Como se não fosse milagre
suficiente cada volta do mar: sermos
ainda reconhecidos, sete passos
dentro da noite, quando andamos
pelo mundo a povoá-lo de fantasmas.

Manuel António Pina – Ruínas

Por onde quer que tenha começado,
pelo corpo ou pelo sentido,
ficou tudo por fazer, o feito e o não feito,
como num sono agitado interrompido.

O teu nome tinha alturas inacessíveis
e lugares mal iluminados onde
se escondiam animais tímidos que só à noite se mostravam,
e talvez devesse ter começado por aí.

Agora é tarde, do que podia
ter sido restam ruínas;
sobre elas construirei a minha Igreja
como quem, ao fim do dia, volta a uma casa.

Vítor Nogueira – Gelo

Agora é apenas um café com paredes adornadas,
imagens retratando destemidos ancestrais.
O tempo foi passando, não foi? Um acidente
em câmara lenta a uma escala cataclísmica.

Grande parte daquilo que fazemos é construir
memória, uma promessa frágil ao futuro.
E pensar que na vida acumulamos tanta coisa,
sobretudo se por hábito não deitamos nada fora.

Mas ninguém pode travar a grande máquina.
Diz-se que a viagem conta mais do que o destino.
Perscruto as águas envolventes, em busca de
sombras, enquanto o mar revolto bate no casco.

Nuno Júdice – Passado

Passou o vento, passou o dia,
passou a noite e a manhã,
passou o tempo, passou a gente,
passou cada hora de amanhã;

passou um canto esquecido
nos cantos de cada passo,
passou ao dizer que passo
sem se lembrar do compasso;

passou a vida como se nada
fosse,
só passou e foi-se embora,
passou à pressa, sem demora,
e passou tudo a quem ficou;

e se mais não passou
no fim de tudo ter passado,
foi porque algo se passou
no último passo que foi dado.

Manuel António Pina – O Regresso

Como quem, vindo de países distantes fora de
si, chega finalmente aonde sempre esteve
e encontra tudo no seu lugar,
o passado no passado, o presente no presente,
assim chega o viajante à tardia idade
em que se confundem ele e o caminho.

Entra então pela primeira vez na sua casa
e deita-se pela primeira vez na sua cama.
Para trás ficaram portos, ilhas, lembranças,
cidades, estações do ano.
E come agora por fim um pão primeiro
sem o sabor de palavras estrangeiras na boca.

Manuel António Pina – Luz

Talvez que noutro mundo, noutro livro,
tu não tenhas morrido
e talvez nesse livro não escrito
nem tu nem eu tenhamos existido

e tenham sido outros dois aqueles
que a morte separou e um deles
escreva agora isto como se
acordasse de um sonho que

um outro sonhasse (talvez eu),
e talvez então tu, eu, esta impressão
de estranhidão, de que tudo perdeu
de súbito existência e dimensão,

e peso, e se ausentou,
seja um sonho suspenso que sonhou
alguém que despertou e paira agora
como uma luz algures do lado de fora.

João Miguel Fernandes Jorge – Presépio Animado da Ribeira Grande

Ainda todos se lembram do dezembro de 96.
Era dia de natal. Na estrada que leva ao norte
da ilha, sob grande tempestade, trôpego, na
berma, um gato de pelagem branca. Parecia

ferido. Fêmea branca, a que chamariam persa
de pelo curto, tinha uma chaga na orelha
alastrava pelo crânio e pela face e
olho. Massa disforme de carne e sangue,

pancada de carro ou parede de muro desabado
a ferida. Animal muito manso, delicado e
tímido, deixou que me aproximasse
lhe pegasse e a trouxesse para dentro do

meu carro. Tremia de frio e também de medo e
dor. Enxuguei-a com um pedaço de
flanela, dei por mim chamando-lhe
Princesa: era muito nova, pequena,

de um branco que resistia ao lixo da terra
da quase sarjeta de onde a tirei; olhos
claros, amendoados. A mais
delicada e triste das gatas com a horrível

ferida a alastrar, implacável. Uma
gangrena que exalava cheiro pestilento
– a princesa branca apodrecia no dia
de natal. Havia uma caixa de cartão

no banco traseiro, coloquei-a dentro e
descobri a casa do veterinário. Era uma pasta
de sangue, carne e urina tão assustada
estava. O médico agarrou-a – eles já

cheiraram muita pestilência, os veterinários –
fez-lhe festas. Era muito meiga. Não
pude olhar enquanto a matava; meteu o
corpo branco, ainda quente, na caixa de

cartão. Levei-a, morta, e com aquele cheiro;
já quase noite. Enterrei-a num pequeno
jardim, bem perto do presépio animado da Ribeira
Grande, que nesse fim de dia de natal ainda

visitei. As lágrimas de nada servem, nem
por uma gata branca a que chamei Princesa,
durante uma escassa hora, a debater-se
com a morte. O sangue, a urina

o cheiro da gangrena. Este é o inferno
dos mortais, a sua beleza e fragilidade. A
morte é uma coisa e a vida, a mesma
coisa. A face da morte é o reflexo da

vida quando se debruça sobre a superfície
da ilha. Luze em todos os natais, suave,
esbatida de traços – palavra de traição
que rodeia o medo, o abandono.

Inês Dias – Lei Sálica

As mulheres da família sempre
tiveram um jeito quase póstumo
de existir: guardar o lume
em silêncio, comer depois de
servir os outros, morrer primeiro.

Saíam à hora de ponta do destino
para lerem os caminhos perdidos
e coleccionavam a abdicação
em caixinhas de folha, entre bilhetes
caducados ou dentes de infâncias alheias.

Esperavam a vida toda por uma vida
próxima, de alma presa a alfinetes
no vestido preferido para o enterro,
os passos medidos nas suas varandas
a dar para o fim do mundo.

Retomo-lhes às vezes os gestos
neste meu exílio inventado,
mas acaba aqui: vou encher de corpo
a sombra, mesmo que nem tempo
me reste já para a pesar.

A. M. Pires Cabral – Motes e Voltas

1
Senhor, vão sendo horas.
Sei bem que o teu relógio
não tem de regular-se pelo meu
nem a tua vontade pela minha.

Mas é justo que seja aquele que sofre
do tempo os enxovalhos
a dizer quando vão sendo horas —

e não tu, Senhor, com quem
o tempo não colide
(decerto porque tu mesmo és o tempo
ou a ausência dele,
e não podes portanto avaliar
quando se nos torna o peso do Verão
desmedido, funesto, vexatório.)

2
Como foi longo o Estio. Como se demorou
o Sol nas coisas com cínica indiferença
própria dos deuses.
Como o Sol crestou a erva, a pele.

É tempo de vento à solta nas campinas.
Entorna, Senhor, o bálsamo das sombras
sobre o quadrante dos relógios de sol
e sobre tudo o mais que o Verão escaldou.

Que vigorem as trevas, chuva e frio
com que se tece
o branco lenço da melancolia.

3
Estão colhidas, derramadas
na sua cama de palha,
as maçãs que hão-de perfumar a casa
no Inverno avesso a cheiros.
O vinho já ganhou
doçura e perfídia quanto baste.

Estas são, Senhor, as minhas provisões
para os dias de Estio que aí vêm.

4
Eu fiz a minha casa com uma pedra
que me deste. Usei a tua madeira,
os teus metais. Posso dizer:
tenho uma casa, eu não sou daqueles
para quem o Verão não foi mais que um embuste.

Mas sei de muitos a quem o Sol cegou
e já não podem ver
o esplendor das trevas.
Isto é: já não podem construir
casa nenhuma.

5
Não estou só
Recrutei companheiros para o Inverno
que não o temem como se teme um lobo,
mas apenas como é justo que se tema
o desdobrar das páginas do tempo:
com decoro. Então
aconchegados a mim, e eu a eles.
Somos uma parede.

Mas há quem esteja só
e assim deva ficar.

A esses, tudo aquilo que o nocivo
Inverno lhes trouxer
recordará o que ficou retido
nas levianas demasias do Verão.

As cartas que usarão como recurso
contra a ausência do Sol
ninguém lhas lerá, ser-lhe-ão devolvidas
com um carimbo maquinal: «Desconhecido
neste endereço». Cartas descompostas
de terem ido e voltado.
Cartas que em boa verdade
escreverão a si mesmos
sob outros nomes e moradas. Cartas
semelhantes a ardilosos bumerangues
ou a cães ensinados a voltar para nós,
trazendo na boca, molhado de saliva,
o pau que arremessámos.

6
Mas possa eu, Senhor, não perder nunca
os olhos com que ao frio me enamoro
das folhas que se movem casuais
ao vento outonal das alamedas.