Saskia Hamilton – 1944

Ela fez circular, por toda sala, um frasco
de suco de groselha, que passou ‘de mão em mão
por todas as macas,’ escreveu,
vinte e cinco ou mais, e voltou
‘ainda meio cheio’. Alguém ajudou o vizinho
a beber, pois ele ‘não tinha mãos’
A batalha de Arnhem — e, espremidos em sua casa
junto ao rio, jaziam trezentos
ou mais, um médico e um enfermeiro.
As crianças se abrigavam no porão. Ela
assistia aos homens, lia os salmos em inglês
para eles, ‘Pois ele te livrará
do laço do caçador’, lia ela,
‘Ele te cobrirá com suas penas,
e sob suas asas estarás seguro’.
Ela voltou ao porão.
‘Você demorou tanto’,
disse sua filha, e pediu o linho branco
da boneca. Ela subiu novamente as escadas
e no topo encontrou ‘uma parte inteira
da parede sob a janela…
explodida’, os feridos com ela.

Trad.: Nelson Santander

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1944

She passed all along a room a bottle
of currant juice, it went ‘from hand to hand
along all the stretchers,’ she wrote,
some twenty-five or more, and came back
‘still half-full.’ Someone helped his neighbor
to drink, since he had ‘no hands.’
The battle of Arnhem—and pressed in her house
by the river there lay three hundred
or more, one doctor, one orderly.
The children sheltered in the cellar. She
attended the men, read the English psalms
to them, ‘Surely he shall deliver thee
from the snare of the fowler,’ she read,
‘He shall cover thee with his feathers,
and under his wings shalt thou trust.’
She returned to the cellar.
‘What a long time you have been away,’
her daughter said, and asked for her doll’s
white linen. Again she climbed the stairs
and at the top she found ‘a whole piece
of the wall under the window…
blown away,’ the wounded with it.

Peter Davidson – Castelos de Setembro

Os primeiros sinais de nossa condição se manifestam1:
Pesar no vento, véu de névoa sobre a lua,
Frio ligeiro, teias de aranha, grama embranquecida,
E dois dias quentes como no sul em nada alteram essa situação.
Uma manhã chega, e você sabe que isso não pode acabar bem.
Logo não será mais tempo de reuniões nos jardins;
Muito em breve, meus queridos, será a estação
Dos quintetos de Brahms, das folhas que vagam tristes além das janelas
Dos que estão sozinhos em seus quartos, isolados pela duração,
Para quem não é tempo de construir. Os que agora estão sós
Permanecerão assim durante essa estranha estação
De leitura, de escrever e-mails detalhados como cartas,
De observar as folhas secas se encharcarem nas calçadas vazias.
Rilke disse algo assim em versos que li pela última vez em Edimburgo,
Com minha tia mais bela em sua idade tardia,
Que, depois de tantas perdas, ainda se lembrava daqueles versos em alemão.

Trad.: Nelson Santander

  1. O poema September Castles de Peter Davidson é descrito pelo autor como “uma variação do Herbsttag de Rilke”. Enquanto o poema de Rilke celebra as últimas conquistas do verão antes de mergulhar na melancolia do outono, Davidson ajusta o tom, inserindo elementos de uma era digital e, possivelmente, do isolamento pandêmico. O trecho “e-mails detalhados como cartas” moderniza o sentimento de solidão e reflete um tempo de conexões frágeis, intensificando a sensação de perda iminente. Ambos os poemas compartilham o motivo da transitoriedade do outono e a solidão daqueles que não possuem uma “casa”, mas Davidson entrelaça memórias autobiográficas e referências locais (como Edimburgo) em uma expansão das paisagens emocionais de Rilke, com um toque mais urgente e sombrio. O poema de Rilke, na brilhante tradução de Nelson Ascher, já foi publicado no blog, e pode ser lido aqui. ↩︎

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September Castles

First hints of our condition manifest:
Spite in the wind, mist-gauze across the moon,
Light chill, the spider’s filaments, blanched grass,
And two days as warm as the south change nothing at all.
A morning comes when you know this cannot end well.
Soon it will be no time for gathering in gardens
All too soon, my dears, it will be the weather
For Brahms quintets, for leaves drifting triste past the windows
Of those in their rooms alone for the duration,
For whom this is no time to build. Those now alone
Are going to remain so through this estranging season
Of reading, of writing emails as detailed as letters,
Of watching dry leaves grow sodden on empty pavements.
Rilke said this in lines that I last read in Edinburgh
With my most beautiful aunt in hert later age
When, many things gone, she remembered those verse in German.

Louis MacNeice – Déjà Vu

Não volta em centenas de milhares de anos,
Volta num piscar de olhos, você estará sentada exatamente
Onde está agora, e coçando o cotovelo, o trem
Passará exatamente como agora e dirá não volta,
não volta, não volta, e, em cadência precisa,
As rodas marcarão o tempo nos trilhos e a ave no ar
Aguardará em sua caixa e será moído aquele mesmo
Grão de café que agora está no moinho, e sei o que você vai dizer
Pois tudo isso já aconteceu antes, ambos já passamos pelo moinho,
Pelo nosso Magnus Annus, e agora poderíamos quase dar por encerrado
Não fosse o fato de que, coçando o cotovelo, você é adorável demais
Assim, quaisquer que sejam as regras que deveríamos obedecer,
Nosso amor deve se estender além do tempo, pois o próprio tempo está em mora
Então essa visão dupla deve passar e passado e futuro unir-se
E onde nos mandaram nos curvar podemos estalar os dedos e rir
E agora, enquanto você observa, vou pegar esse mesmo lápis e escrever:
Não volta em centenas de milhares de anos.

Trad.: Nelson Santander

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Déja Vu

It does not come round in hundreds of thousands of years,
It comes round in the split of a wink, you will be sitting exactly
Where you are now and scratching your elbow, the train
Will be passing exactly as now and saying It does not come round,
It does not come round, It does not come round, and compactly
The wheels will mark time on the rails and the bird in the air
Sit tight in its box and the same bean of coffee be ground
That is now in the mill and I know what you’re going to say
For all this has happened before, we both have been through the mill,
Through our Magnus Annus, and now could all but call it a day
Were it not that scratching your elbow you are too lovely by half
So that, whatever the rules we might be supposed to obey,
Our love must extend beyond time because time is itself in arrears
So this double vision must pass and past and future unite
And where we were told to kowtow we can snap our fingers and laugh
And now, as you watch, I will take this selfsame pencil and write:
It does not come round in hundreds of thousands of years.

Tadeusz Różewicz – Epístola Apócrifa

Mas Jesus se inclinou
e com o dedo escreveu na terra
depois se inclinou novamente
e escreveu na areia

Mãe, eles são tão obtusos
e simples que preciso lhes mostrar
maravilhas faço tantas coisas
tolas e vãs
mas você compreende
e perdoa seu filho
mudo água em vinho
ressuscito os mortos
caminho sobre as águas

eles são como crianças
é preciso sempre
mostrar-lhes algo novo
imagine só

E quando se aproximaram
ele cobriu e apagou
as palavras
para sempre

Trad.: Nelson Santander

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Unrecorded Epistle

But Jesus stooped
and with his finger wrote on the ground
then he stooped again
and wrote on the sand

Mother they are so dim
and simple I have to show them
marvels I do such silly
and futile things
but you understand
and forgive your son
I change water into wine
raise the dead
walk the seas

they are like children
one has always
to show them something new
just imagine

And when they approached
he covered and effaced
the letters
for ever

Adam Zagajewski – O velho pintor em uma caminhada

Em seus bolsos, petiscos para os cães da vizinhança
Agora ele mal enxerga
Quase não nota as árvores, as casas suburbanas
Ele conhece cada pedra deste lugar
Pintei tudo tentei pintar meus pensamentos
E capturei tão pouco
O mundo ainda cresce, cresce incessantemente
E no entanto há sempre menos dele

Trad.: Nelson Santander, a partir da versão em inglês vertida do Polonês por Clare Cavanagh

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The Old Painter on a Walk

In his pockets treats for local dogs
He sees almost nothing now
He almost doesn’t notice trees suburban villas
He knows every stone here
I painted it all tried to paint my thoughts
And caught so little
The world still grows it grows relentlessly
And yet there is always less of it

Louise Bogan – Canção

Ama-me porque estou perdida;
Ama-me em minha ruína.
Isso é coragem, — nenhum homem,
Nem um sequer almejou tal sina.

Sê forte, olha para o meu coração
Como outros olham meu semblante.
Ama-me — digo-te: ali é um lugar
Terrível e decadente.

Trad.: Nelson Santander

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Song

Love me because I am lost;
Love me that I am undone.
That is brave,—no man has wished it,
Not one.

Be strong, to look on my heart
As others look on my face.
Love me,—I tell you that it is a ravaged
Terrible place.

Seamus Heaney – Uma ligação

‘Espere’, ela disse, ‘Vou lá fora chamá-lo.
O clima aqui está tão bom que ele aproveitou
Para capinar um pouco’.
Então eu o vi
Ajoelhado ao lado do canteiro de alho-poró,
Tocando, inspecionando, separando um
Talo do outro, delicadamente arrancando
Tudo o que não era afilado, frágil e sem folhas,
Satisfeito ao sentir cada pequena raiz de erva daninha se partir,
Mas pesaroso também…

Então me peguei ouvindo
O grave e amplificado tique-taque dos relógios no corredor,
Onde o telefone jazia esquecido em uma calma
De vidro espelhado e pêndulos ensolarados…

E me peguei então pensando: se fosse hoje,
É assim que a Morte convocaria o Homem Comum.

No instante seguinte ele falou, e eu quase disse que o amava.

Trad.: Nelson Santander

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A call

‘Hold on,’ she said, ‘I’II just run out and get him.
The weather here’s so good, he took the chance
To do a bit of weeding.’
So I saw him
Down on his hands and knees beside the leek rig,
Touching, inspecting, separating one
Stalk from the other, gently pulling up
Everything not tapered, frail and leafless,
Pleased to feel each little weed-root break,
But rueful also…

Then found myself listening to
The amplified grave ticking of hall clocks
Where the phone lay unattended in a calm
Of mirror glass and sunstruck pendulums …

And found myself then thinking: if it were nowadays,
This is how Death would summon Everyman.

Next thing he spoke and I nearly said I loved him.

Seamus Heaney – Recesso escolar

Passei a manhã toda na enfermaria da escola1
Contando os sinais que marcavam o fim das aulas.
Às duas horas, os vizinhos me levaram para casa.

Na varanda, encontrei meu pai chorando —
Ele que sempre enfrentara funerais com serenidade —
E Big Jim Evans dizendo que fora um duro golpe.

O bebê balbuciava e sorria balançando o carrinho
Quando entrei, e me senti constrangido
Com os velhos que se levantavam para apertar minha mão

E dizer que ‘lamentavam minha perda’.
Sussurros informavam aos estranhos que eu era o mais velho,
E estudava fora, enquanto minha mãe segurava minha mão

na dela e soltava suspiros secos e raivosos.
Às dez horas, a ambulância chegou
Com o corpo, já limpo e enfaixado pelas enfermeiras.

Na manhã seguinte, subi até o quarto. Campainhas-brancas
E velas suavizavam a cabeceira; vi-o
Pela primeira vez em seis semanas. Mais pálido agora,

Com um hematoma de papoula na têmpora esquerda,
Jazia em uma caixa de quatro pés, como em seu berço.
Sem cicatrizes evidentes, o para-choque o arremessara longe.

Uma caixa de quatro pés, um pé para cada ano.

Trad.: Nelson Santander

  1. O poema foi inspirado pela morte do irmão mais novo de Heaney, Christopher, que faleceu tragicamente aos quatro anos de idade, após ser atropelado por um carro. O evento ocorreu quando Heaney estava no internato, e a experiência de retornar para casa e confrontar o luto familiar moldou a carga emocional e reflexiva do poema. ↩︎

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Mid-Term Break

I sat all morning in the college sick bay
Counting bells knelling classes to a close.
At two o’clock our neighbours drove me home.

In the porch I met my father crying—
He had always taken funerals in his stride—
And Big Jim Evans saying it was a hard blow.

The baby cooed and laughed and rocked the pram
When I came in, and I was embarrassed
By old men standing up to shake my hand

And tell me they were ‘sorry for my trouble’.
Whispers informed strangers I was the eldest,
Away at school, as my mother held my hand

In hers and coughed out angry tearless sighs.
At ten o’clock the ambulance arrived
With the corpse, stanched and bandaged by the nurses.

Next morning I went up into the room. Snowdrops
And candles soothed the bedside; I saw him
For the first time in six weeks. Paler now,

Wearing a poppy bruise on his left temple,
He lay in the four-foot box as in his cot.
No gaudy scars, the bumper knocked him clear.

A four-foot box, a foot for every year.

Gerard Fanning – Ala St Charles

Os notívagos arrastam contágio
Pelos longos corredores.
Fitando o barco postal de Dublin,
Eles imaginam as bandeiras do Titanic,
Ou sua flotilha fantasmagórica,
Deslizando para dar forma
Ao naufrágio do meridiano de Greenwich.
Por mais que o mundo opere de forma confiante,
Os dias se confundem aqui,
O crepúsculo funde-se à fosforescência desbotada,
Torneiras imitam cachoeiras sem nomes,
E, no canto do quarto,
Perto da sala de desinfecção acortinada,
Algo luminoso evolui,
Nosso leitor de cardápio tropeça nas palavras,
Meu velho amigo é auxiliado a descer
Para a ala de transplantes,
E um a um nos despedimos
Com um aceno de cabeça e um sorriso.

Trad.: Nelson Santander

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St Charles Ward

The nightwalkers drag contagion
Down the long corridors.
Staring at Dublin’s mailboat
They imagine the flags of the Titanic,
Or its ghostly flotilla,
Gliding out to formulize
The wreck of the Greenwich meridian.
However confident the world works,
Days blur here,
Twilight fuses the bleached phosphorescence,
Taps mimic the unnamed waterfalls,
And in the corner of the room,
Near the curtained sluice alcove
Something bright evolves,
Our menu reader slurs his lines,
My old friend is helped down
To the transplant ward,
And one by one we sign off
With a nod and a smile.

Gwendolyn MacEwen – Fogos de artifício

Fogos de Artifício

Em memória de Marian Engel

Um ano após sua morte, no inverno baço,
Parte de seu jardim jaz enterrada no meu jardim,
Para onde a transplantei. Eu me pergunto
Onde você está agora — (não é exatamente no céu
Porque você disse uma vez que sabia tudo sobre o céu
E não queria ir para lá). Não obstante,
Ao celebrar sua vida, celebro sua entrada
Em algum reino incondicional.

Amiga, que sua morte seja fogos de artifícios,
Como os cata-ventos e as escolas ardendo
(temos tanto a desaprender)
Que você tinha em seu jardim no dia 24 de maio,
Cem anos atrás, quando mal éramos jovens.

Que seja uma conflagração, um sinal,
Como todas aquelas flores barulhentas e eloquentes
Que queimarão por todo o verão em meu quintal —
(as lanternas japonesas, laranja brilhante e audaciosa contra o muro do jardim) —

Tudo lutando para se tornar o que já é
E nós, que você deixou para trás,
Lutando para nos tornarmos o que já somos.

Inverno de 1986

Trad.: Nelson Santander

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Fireworks

In memory of Marian Engel

A year after your death, in the spleen of winter
Part of your garden lies buried in my garden
Where I transplanted it. I wonder
Where you are now — (it isn’t exactly heaven
because you said once you knew all about heaven
and didn’t want to go there). Nevertheless
As I celebrate your life I celebrate your entry
Into some unconditional kingdom.

Friend, let your death be fireworks
Like the pinwheels and burning schoolhouses
(we have so much to unlearn)
You had in your garden on the 24th of May
A hundred years ago when we were less than young.

Let it be a conflagration, a sign,
Like all those loud outspoken flowers
Which will burn all summer in my back yard —
(the Japanese lanterns, bright audacious orange against the garden wall) —

Everything struggling to become what it already is
And we who are left behind you
Struggling to become what we already are.

Winter 1986