Cecilia Meireles – Cantarão os Galos

Cantarão os galos, quando morrermos,
e uma brisa leve, de mãos delicadas,
tocará nas franjas, nas sedas
mortuárias.

E o sono da noite irá transpirando
sobre as claras vidraças.

E os grilos, ao longe, serrarão silêncios,
talos de cristal, frios, longos ermos,
e o enorme aroma das árvores.

Ah, que doce lua verá nossa calma
face ainda mais calma que o seu grande espelho
de prata!

Que frescura espessa em nossos cabelos,
livres como os campos pela madrugada!

Na névoa da aurora,
a última estrela
subirá pálida.

Que grande sossego, sem falas humanas,
sem o lábio dos rostos de lobo,
sem ódio, sem amor, sem nada!

Como escuros profetas perdidos,
conversarão apenas os cães, pelas várzeas.
Fortes perguntas. Vastas pausas.

Nós estaremos na morte
com aquele suave contorno
de uma concha dentro da água.

Philip Roth – A Marca Humana (excerto)

“Porque não sabemos, não é? Todo mundo sabe… Como é que as coisas acontecem do jeito que acontecem? O que está por trás da anarquia da seqüência de eventos, as incertezas, os infortúnios, a incoerência, as irregularidades chocantes que definem os assuntos humanos? Ninguém sabe, professora Roux. ‘Todo mundo sabe’ é a invocação do clichê e o início da banalização da experiência, e a seriedade e o tom de autoridade que as pessoas adotam ao repetir esse clichê é o que é mais insuportável. O que sabemos é que, ao contrário do que diz o clichê, ninguém sabe nada. Não se pode saber nada. As coisas que você sabe, você não sabe. Intenção? Motivo? Conseqüência? Significado? É surpreendente, quantas coisas desconhecemos. Mais surpreendente ainda é o que passa por conhecimento.

À medida que a platéia voltava para o auditório, em fila, comecei, como num desenho animado, a imaginar as doenças fatais que, sem que ninguém se desse conta, estavam atuando dentro de cada um de nós: comecei a visualizar os vasos sanguíneos se entupindo debaixo dos bonés, os tumores malignos crescendo sob os cabelos brancos fixados em permanente, os órgãos a pifar, atrofiar, entrar em pane, as centenas de bilhões de células assassinas impelindo silenciosamente toda aquela platéia em direção à catástrofe improvável mais adiante. Eu não conseguia me conter. Aquela dizimação estupenda que é a morte nos levando embora a todos. Orquestra, platéia, regente, técnicos, andorinhas, garriças — pensemos apenas nos números referentes a Tanglewood entre hoje e o ano 4000. Depois multipliquemos isso por tudo. A mortandade incessante. Que idéia! Qual o louco que teve essa idéia? E no entanto hoje está um dia tão bonito, um dia que é uma dádiva, um dia perfeito a que nada falta, numa região de veraneio em Massachusetts tão inofensiva e tão bonita quanto qualquer outra na Terra. (…)”

Livro da Vida

William Butler Yeats – Morte

Um bicho à morte ignora
ânsia e temor; contudo
um homem, quando é hora,
anseia e teme tudo;
morreu vezes sem conta
e ergueu-se redivivo.
Um grande homem confronta
gente homicida, altivo,
escarnecendo o corte
do alento. Convivera
com a morte a vida inteira:
o homem criou a morte.

Trad.: Nelson Ascher

Rainer Maria Rilke – Conclusão

A Morte é grande.
Nós, sua presa,
vamos sem receio.
Quando rimos, indo, em meio à correnteza,
chora de surpresa
em nosso meio.

Trad.: Augusto de Campos

Eclesiastes (excerto)

“Acumulei também prata e ouro, as riquezas dos reis e das províncias.
Escolhi cantores e cantoras e todas as delícias dos homens, toda a abundância dos cofres.
Ultrapassei e avantajei-me a todos quantos me precederam em Jerusalém, e a sabedoria permanecia junto a mim.
Então examinei todas as obras de minhas mãos e o trabalho que me custou para realizá-las, e eis que tudo era vaidade e correr atrás do vento, e nada havia de proveitoso debaixo do sol.
Assim, todos têm um mesmo destino, tanto o justo como o ímpio, o bom como o mau, o puro como o impuro, o que sacrifica como o que não sacrifica; o bom é como o pecador, o que jura é como o que evita o juramento.
Este é o mal que existe em tudo o que se faz debaixo do sol: o mesmo destino cabe a todos. O coração dos homens está cheio de maldade; enquanto vivem, seu coração está cheio de tolice, e seu fim é junto aos mortos.
Ainda há esperança para quem está ligado a todos os vivos, e um cão vivo vale mais do que um leão morto.
Os vivos sabem ao menos que irão morrer; os mortos, porém, não sabem, e nem terão recompensa, porque sua memória cairá no esquecimento.
Seu amor, ódio e ciúme já pereceram, e eles nunca mais participarão de tudo o que se faz debaixo do sol.”

Richard Dawkins – Todos Vamos Morrer

Arte: Gavin Aung – 2012

António Lobo Antunes

Com os anos a morte vai-se tornando familiar. Quero dizer não a ideia da morte, não o medo da morte: a realidade dela. As pessoas de quem gostamos e partiram amputam-nos cruelmente de partes vivas nossas, e a sua falta obriga-nos a coxear por dentro. Parece que sobrevivemos não aos outros mas a nós mesmos, e observamos o nosso passado como uma coisa alheia: os episódios dissolvem-se a pouco e pouco, as memórias esbatem-se, o que fomos não nos diz respeito, o que somos estreita-se. A amplitude do futuro de outrora resume-se a um presente acanhado. Se abrirmos a porta da rua o que se encontra é um muro. No nosso sangue existem mais ausências do que glóbulos.
Tento recordar-me: a casa dos meus avós, a Praia das Maçãs, episódios antigos, as horas gordas do relógio de parede ecoando na sala.
Deve ser tudo normal, certamente é tudo normal e não entendo. Venderam a quinta, o mundo encheu-se de pessoa. Fomos tão poucos, dantes!
Escondia-me num canteiro a fumar, as nuvens passavam sobre as copas. As flores nasciam, perfeitas, dos dedos do senhor José. Esqueceste-te das estátuas com o nome das estações, do roseiral? Do mês de junho em que tudo era verde, nítido, claro? De trazeres pilhas de livros para o jardim? Que Antonio eras tu? Dos versinhos que escrevias? De ires ser escritor? Tão fácil ser escritor, não é verdade? Tão fácil respirar.

Do “Segundo Livro de Crônicas”

Ferreira Gullar – Os Mortos

os mortos vêem o mundo

pelos olhos dos vivos

eventualmente ouvem,

com nossos ouvidos,

certas sinfonias
algum bater de portas,
ventanias

 

   Ausentes
   de corpo e alma

misturam o seu ao nosso riso

   se de fato
   quando vivos
   acharam a mesma graça

Sophia de Mello Breyner Andresen – Traduzido de Kleist

Dizem que no outro mundo o sol é mais brilhante
E brilha sobre campos mais floridos
Mas os olhos que vêem essas maravilhas
São olhos apodrecidos