Juan Vicente Piqueras – Oração do incrédulo

O importante é rezar, não importa a quem,
que as perguntas sejam as orações
do pensamento, plantem sua semente
em nossa solidão, e que não exista paz
que, à força de insistir, seja capaz
de não existir, não tenha remédio
senão atender à voz de quem a chama.

Que deus não exista, acaso
é razão para nele não crer?

Deus é o nome da sede, a sina
e a querência desta solidão
em que ambos consistimos.

De ninguém falo com deus, de deus com ninguém.
Escrevo-o com cuidado e em minúscula.
Sou ateu e laico todos os dias.
Mas há noites amnióticas
em que minha alma reza de joelhos,
não importa a quem,
pergunta, espera, pede.

E minha alma ajoelhada é uma vela
à luz da qual, em cuja noite, escrevo.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Plegaria del descreído

Lo importante es rezar, no importa a quién,
que las preguntas sean las plegarias
del pensamiento, planten su semilla
en nuestra soledad, y no haya paz
que, a fuerza de insistir, sea capaz
de no existir, no tenga más remedio
que acudir a la voz de quien la llama.

Que dios no exista, ¿acaso
es razón para no creer en él?

Dios es el nombre de la sed, el sino
y la querencia de esta soledad
en que ambos consistimos.

De nadie hablo con dios, de dios con nadie.
Lo escribo con cuidado y con minúscula.
Yo soy ateo y laico cada día.
Pero hay noches amnióticas
en que mi alma reza de rodillas
no importa a quién,
pregunta, espera, pide.

Y mi alma arrodillada es una vela
a cuya luz, en cuya noche, escribo.

Juan Vicente Piqueras – Taças de sede

Se duvidas de tua sede, se não te atreves
a questiona-la ou a dar-lhe um nome,
se só sabes que buscas uma água
que a sacie e não achas senão poços,
e neles ecos que te chamam, bebe.

Se ao beber a sede desaparece
é que era só sede. Segue buscando.

Mas se cresce em ti quando a sacias,
se não queres parar de ter sede
mas seguir bebendo dia e noite
taças de sede, não há dúvida:
podes chama-la amor, seguir sofrendo,
e saber que não há ninguém que te guia.

Trad.: Nelson Santander

Vasos de Sed

Si dudas de tu sed, si no te atreves
a preguntarle o a ponerle un nombre,
si sólo sabes que buscas un agua
que la sacie y no hallas sino pozos,
y en ellos ecos que te llaman, bebe.

Si la sed al beber desaparece
es que era sólo sed. Sigue buscando.

Pero si crece en ti cuando la sacias,
si quieres no dejar de tener sed
sino seguir bebiendo día y noche
vasos de sed, no hay duda:
puedes llamarla amor, seguir sufriendo,
y saber que no existe quien te guía.

Juan Vicente Piqueras – Lençóis herdados

A ferida mais íntima é herdada.

O onde, o como, o quando,
a morte, o nascimento,
língua, família, deus, tempo, amor:
o decisivo do que nos acontece,
e quem somos,
não é algo desejado nem escolhido.

E passamos a vida, a despeito disso, ou por isso,
crendo que o desejo é nosso deus,
e não uma rosa rara que em nós cultiva
o acaso
que nos guia, nos cega e nos ignora.

Ninguém escolheu o mundo em que nasceu.
Nem sequer seu nome, sua memória.

O importante se impõe, não se escolhe.

E no entanto somos seres livres
para escolher entre dar e destruir
o que temos, deseja-lo, ama-lo
mais do que o que não há, lutar sem mundo,
aceitar o que ocorre e trabalhar
duro para que ocorra
o que de todo modo vai ocorrer.

Não há mais sabedoria ou remédio
que amar a vida mais que o seu sentido
e deixar-se levar pelas águas indomáveis
de estar aqui e, assim, com sede de partir,
de escolher o que há e, ai de nós,
ser quem somos, pródigos, saber
que não temos mais que o que damos.

Chamamos liberdade a esta tarefa
minuciosa e secreta de bordar,
manchar, romper, lavar, estender, dobrar,
guardar no armário, entre folhas de marmelo,
lençóis herdados da avó
que por sua vez herdou da sua, um estranho enxoval
para essa solidão que me desposou.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Sábanas Heredadas

La más íntima herida es heredada.

El dónde, el cómo, el cuándo,
la muerte, el nacimiento,
lengua, familia, dios, época, amor:
lo decisivo de lo que nos pasa,
y los que somos,
no es algo deseado ni elegido.

Y pasamos la vida, sin embargo o por eso,
creyendo que el deseo es nuestro dios
y no una rosa rara que en nosotros cultiva
el azar
que nos guía, nos ciega y nos ignora.

Nadie ha elegido el mundo en que ha nacido.
Ni siquiera su nombre, su memoria.

Lo importante se impone, no se elige.

Y sin embargo somos seres libres
de escoger entre dar y destruir
lo que tenemos, desearlo, amarlo
más que a lo que no hay, luchar sin mundo,
aceptar lo que ocurre y trabajar
duro para que ocurra
lo que de todos modos va a ocurrir.

No hay más sabiduría ni remedio
que amar la vida más que su sentido
y dejarse llevar por las aguas salvajes
de estar aquí y así, con sed de irse,
de elegir lo que hay y, ay de nosotros,
ser quienes somos, pródigos, saber
que no tenemos más que lo que damos.

Llamamos libertad a esta tarea
minuciosa y secreta de bordar,
manchar, romper, lavar, tender, plegar,
guardar en el armario entre membrillos
sábanas heredadas de la abuela
que a su vez heredó de la suya, extraño ajuar
para esta soledad que me ha esposado.

Juan Vicente Piqueras – A sala vazia

a Carlos Edmundo de Ory

Era um de teus jogos favoritos.
O que há em uma sala vazia?,
perguntavas. Mantínhamo-nos em silêncio.

O que há em uma sala vazia?

Os que não conheciam o jogo
às vezes diziam: nada, e tu dizias: não.
Nada é nada, e eu disse o quê
.

Até que alguém dizia, por exemplo: silêncio.
E tu dizias: sim.
E outro dizia: .
E o jogo começava a decolar.

Algumas pegadas no chão.
Um fantasma. Uma tomada. O buraco
de um prego. A penumbra.
O quadrado que deixa na parede
a ausência de um quadro. Um fio.
Uma carta no chão.
A marca de uma palma na parede.
Um raio de sol que entra pela janela.
Uma teia de aranha. Uma pedaço
de papel. Uma unha. Uma formiga perdida.
A música que vem da rua
(há música sem alguém que a ouça?).
Uma mancha de fuligem ou umidade.
Garatujas ou pássaros ou nomes
ou um desenho de Laura na parede.

Tua ias dizendo sim ou não.
Tu sabias. Eras o inventor do jogo.
Tu sabias, Carlos, o que há
na sala vazia onde acabas de entrar.

Era um de teus jogos favoritos.
– O que há em uma sala vazia?
– Um fantasma.
– Já disseram isso.
– Sim, mas aquele a que me refiro é outro.

Trad.: Nelson Santander

 

La habitación vacía

a Carlos Edmundo de Ory

Era uno de tus juegos preferidos.
¿Qué hay en una habitación vacía?,
preguntabas. Guardábamos silencio.

¿Qué hay en una habitación vacía?

Los que no conocían el juego
tal vez decían: Nada, y tú decías: No.
Nada es nada, he dicho qué.

Hasta que alguien decía, por ejemplo: Silencio.
Y tú decías: .
Y otro decía: Polvo.
Y el juego comenzaba a tomar vuelo.

Unas huellas de pasos en el suelo.
Un fantasma. Un enchufe. El agujero
de un clavo. La penumbra.
El cuadrado que deja en la pared
la ausencia de un cuadro. Un hilo.
Una carta en el suelo.
La huella de una mano en la pared.
Un rayito de sol que entra por la ventana.
Una telaraña. Un trozo
de papel. Una uña. Una hormiga extraviada.
La música que llega de la calle
(¿hay música sin alguien que la escuche?).
Una mancha de humo o de humedad.
Garabatos o pájaros o nombres
o un dibujo de Laura en la pared.

Tú ibas diciendo sí o no.
Tú lo sabías. Eras el inventor del juego.
Tú ya sabías, Carlos, lo que hay
en la habitación vacía donde acabas de entrar.

Era uno de tus juegos preferidos.
– ¿Qué hay en una habitación vacía?
– Un fantasma.
– Ya lo han dicho.
– Sí, pero el que yo digo es otro.

Juan Vicente Piqueras – Visível e Invisível

(Para os amigos que ainda estão vivos,
          mas desapareceram, onde quer que estejam,
          com um abraço póstumo)

As pessoas tendem a desaparecer.

Um dia te fazem rir e no seguinte já não estão.

Um dia te ligavam todos os dias
para saber como estavas,
e agora já nem te lembras de suas vozes.

Um dia disseram sempre
e sempre acabou sendo nunca mais.

As pessoas se parecem com fantasmas.
Aparecem, seduzem, crês nelas,
dão medo, brilham e desaparecem.

Partem e, de repente, já não existem,
como se nunca tivessem existido.
Chegas a convencer-te de que as sonhou.

Eu sou uma delas.

Morrer, no nosso caso,
É uma redundância.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Visto y no visto

(A los amigos que siguen vivos
          pero han desaparecido, allá donde estén,
          con un abrazo póstumo.)

La gente tiende a desaparecer.

Un día te hacen reír y al siguiente no están.

Un día te llamaban cada día
para saber cómo estabas,
y ahora ya no puedes ni recordar sus voces.

Un día dijeron siempre
y siempre acabó siendo nunca más.

La gente se parece a los fantasmas.
Aparecen, seducen, crees en ellos,
dan miedo, brillan y desaparecen.

Se van y, de repente, ya no existen,
como si nunca hubieran existido.
Llegas a convencerte de que los has soñado.

Yo soy uno de ellos.

Morir, en nuestro caso,
es una redundancia.

Juan Vicente Piqueras – Papoulas

No antigo campo de batalha
onde morreram milhares de meninos
cresce novamente o trigo, salpicado
aqui e ali de ardentes papoulas.

E dois amantes, que terão
mais ou menos a idade dos soldados
que aqui então morreram,
hoje fazem amor no semeado.

Deitam o trigo. Calcam as papoulas.

Trad.: Nelson Santander

Amapolas

Sobre el antiguo campo de batalla
donde murieron miles de muchachos
vuelve a crecer el trigo, salpicado
aquí y allá de ardientes amapolas.

Y dos enamorados, que tendrán
más o menos la edad de los soldados
que aquí entonces murieron,
hoy hacen el amor en el sembrado.

Tumban el trigo. Aplastan amapolas.

Juan Vicente Piqueras – Ristorante dal 1882–

Ristorante dal 1882–
leio no cardápio e me ponho a pensar
que numa noite, há mais de um século,
numa noite igual a esta,
houve um grupo de amigos que aqui jantou,
como nós fazemos agora,
e riram, conversaram, passaram o sal,
mais ou menos felizes, fugazes, encantados
de estarem juntos rindo
como nós fazemos agora,
e que nenhum deles vive mais
e agora somos nós,
os que reservamos esta grande mesa
neste restaurante
que tanto apreciamos por ser antigo,
o ar fantasma do garçom,
e o cozinheiro que nunca vimos
e que tanto admiramos
por seu saber nos fazer esquecer
com sabores sagrados, requintados,
que esta poderia ser perfeitamente
nossa última ceia.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Ristorante dal 1882-

Ristorante dal 1882-
leo en la carta y me da por pensar
que en una noche de hace más de un siglo,
en una noche que era igual a ésta,
hubo un grupo de amigos que cenaron aquí,
como ahora nosotros,
y rieron, charlaron, se pasaron la sal,
más o menos felices, fugaces, encantados
de estar juntos riendo
como ahora nosotros,
y que ninguno de ellos vive ya
y ahora son nosotros,
los que hemos reservado esta gran mesa
en esto restaurante
del que tanto nos gusta que sea antiguo,
el aire fantasma del camarero,
y el cocinero que nunca hemos visto
y al que admiramos tanto
por su saber hacernos olvidar
con sabores piadosos, exquisitos,
que ésta podría ser perfectamente
nuestra última cena.

Juan Vicente Piqueras – História universal

Um homem nasce chora cresce ri
sofre e faz sofrer caminha canta
tem sede fome frio medo
se perde extravasa arde sorri.

Um homem sozinho no meio da noite
assobia para domar as bestas que o habitam.

Abraça empurra mata beija morre
se cansa de si mesmo se apaixona
se entrega à vida sabe que se finda
que o que é escoa por entre os dedos.

Um homem olha o céu as nuvens e se diz
em silêncio o quão breve
bela e fugidia foi a vida.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Historia universal

Un hombre nace llora crece ríe
sufre y hace sufrir camina canta
tiene sed hambre frío miedo
se pierde se desborda arde sonríe.

Un hombre solo en medio de la noche
silba para amansar las bestias que lo habitan.

Abraza empuja mata besa muere
se cansa de sí mismo se enamora
se da a la vida sabe que se acaba
que se cae lo que es de entre sus dedos.

Un hombre mira el cielo las nubes y se dice
en silencio lo breve
lo hermosa y fugitiva que es fue la vida.

Juan Vicente Piqueras – Confissão do fugitivo

Só sou feliz partindo.

Não entre quatro paredes, à mercê das espadas,
mas entre aqui e ali, uma e outra casa,
ambas de preferência alheias.

Já não posso, nem quero, estar quieto.
Nem agora nem depois. Nem aqui nem ali.
Em todo caso aí, onde tu estás,
seja tu quem fores, põe o teu nome
nos meus lábios sedentos, insaciáveis.

Eu não sou eu nem posso ter casa.
Não digo já porque foi sempre assim,
nunca a tive, sempre fui estrangeiro
dentro e fora de mim. Sou o que sou:
o mendigo que dorme debaixo da ponte
que une as minhas duas margens e que cruzo
dia e noite sem poder deter-me.

Escrevo porque procuro, porque espero.
Mas já não sei o quê, perdeu-se na memória.
Espero que escrevendo
acabe por lembrar-me. Insisto na intempérie.

Sobrevivo entre parêntesis
no espaço vivo e no tempo morto
da espera de que, entre dois aquis.

Nunca em mas entre. sai de mim,
sejas quem fores, deixa-me em paz
ou acaba já comigo e com o mel
amargo de estar só a falar só.

Decidi que a minha pátria seja
não decidir, não estar em nenhum sítio
mas de passagem, pontes, naves, comboios,
onde eu seja só o passageiro
que sei que sou, sentindo
que me inquieta a paz,
que a quietude me assusta,
que a segurança não me interessa,
que só sou feliz quando me sei fugaz.

Trad.: João Duarte Rodrigues e Manuel Alberto Valente

Confesión del fugitivo

Sólo soy feliz yéndome.

No entre cuatro paredes, con sus sendas espadas,
sino entre aquí y allí, una casa y otra,
ajenas ambas preferiblemente.

No puedo ya, ni quiero, estarme quieto.
Ni ahora ni después. Ni aquí ni allí.
En todo caso ahí, donde estás tú,
seas quien seas tú, ponme tu nombre
en los labios sedientos, insaciables.

Yo no soy yo ni puedo tener casa.
No digo ya porque nunca lo fui,
nunca la tuve, siempre fui extranjero
dentro y fuera de mí. Soy lo que no:
el mendigo que duerme bajo el puente
que une mis dos orillas y yo cruzo
sin poder, día y noche, detenerme.

Escribo porque busco, porque espero.
Pero ya no sé qué, se me ha olvidado.
Espero que escribiendo
llegue a acordarme. Insisto en la intemperie.

Sinvivo entre paréntesis
en el espacio vivo y tiempo muerto
de la espera de qué, entre dos aquíes.

Nunca en sino entre. Sal de mí,
seas quien seas tú, déjame en paz
o acaba ya conmigo y con la miel
amarga de estar solo hablando solo.

He decidido que mi patria sea
no decidir, no estar en ningún sitio
sino de paso, puentes, naves, trenes,
donde yo sea sólo el pasajero
que sé que soy, sintiendo
que me inquieta la paz,
que la quietud me asusta,
que la seguridad no me interesa,
y sólo soy feliz cuando me sé fugaz.

Juan Vicente Piqueras – Os deuses Internos

Os deuses sabem mais e melhor do que nós
do que precisamos. Pedimos-lhes um filho,
e nos enviam um lobo, e não os compreendemos.

A vida diariamente os esquece.
A morte à noite os inventa.

E as doenças, como diz o sábio,
são deuses que agonizam dentro de nosso corpo,
seu último templo em ruínas,
seu refúgio sem fé. Imploram compaixão.

Os deuses não compreendem a estranha insensatez
com que decidimos acabar conosco
acabando com eles, o orgulho
com que os desprezamos.

Os deuses pedem pouco: que não os esqueçamos.

Mas é pedir demais a uma espécie escrava
que fez do esquecimento sua missão e sua vida
e sua razão de ser.
Os deuses se calam,
resignados, e morrem em silêncio
dentro de cada um de seus antigos súditos.

Trad.: Nelson Santander

Los Dioses Dentro

Los dioses saben más y mejor que nosotros
lo que nos hace falta. Les pedimos un hijo
y nos mandan un lobo, y no los comprendemos.

La vida cada día los olvida.
La muerte por la noche los inventa.

Y las enfermedades, como bien dijo el sabio,
son dioses que agonizan dentro de nuestro cuerpo,
su último templo en ruinas,
su refugio sin fe. Piden piedad.

Los dioses no comprenden la extraña insensatez
con que hemos decidido acabar con nosotros
acabando con ellos, el orgullo
con que los despreciamos.

Los dioses piden poco: que no los olvidemos.

Pero es mucho pedirle a una raza de esclavos
que han hecho del olvido su misión y su vida
y su razón de ser.
Los dioses callan,
resignados, y mueren en silencio
dentro de cada uno de sus antiguos súbditos.