Joan Margarit – Enquanto tu dormes

Na praça tomada pela chuva
observo a alta janela iluminada
que não quero perder: não hei de render-me
à condenação da vida.
Este lugar não mais pertence à cidade:
uma praça vazia com a luz
do hospital refletindo nas poças.
As portas automáticas
se abrem de vez em quando e dão lugar
a uma obscura figura corriqueira.
Muletas cruzam, invisíveis, a rua
e se aproximam de um carro, o nosso,
o que nos levará sob a chuva
até o silêncio da dor futura.
Teu calor efêmero.
Triste felicidade a desta paz
enquanto me lembro que tu e eu tivemos
manhãs que retinham nossos olhos.
Apavorava-me tanto
deixar-te sozinha um dia.
Por mais fraca e pequena que seja
a janela iluminada na noite,
esta é a minha consolação:
não haverá maior desamparo do que o meu.

Trad.: Nelson Santander

MIENTRAS TÚ DUERMES

En la plaza tomada por la lluvia
miro la alta ventana iluminada
que no quiero perder: no he de rendirme
a la condena de la vida.
Este lugar ya no es de la ciudad:
una plaza sin nadie con la luz
de hospital reflejándose en los charcos.
Las puertas automáticas
se abren de vez en cuando y dejan paso
a una oscura figura rutinaria.
Unas muletas cruzan, invisibles, la calle
y se acercan a uno de los coches, el nuestro,
el que nos llevará bajo la lluvia
hacia el silencio del dolor futuro.
Tu calidez efímera.
Triste felicidad la de esta paz
mientras recuerdo que tú y yo teníamos
mañanas que guardaban nuestros ojos.
Me daba tanto miedo
dejarte sola un día.
Por débil y pequeña que en la noche
llegue a ser la ventana iluminada,
éste es mi consuelo:
no habrá más desamparo ya que el mío.

Nelson Santander – Apresentação de “Joana”, de Joan Margarit

Em 16 de fevereiro deste ano, falecia, aos 82 anos de idade, vítima de um câncer, Juan Margarit I Consarnau, o grande poeta, arquiteto e catedrático catalão (foi professor da disciplina Cálculos Estruturais da Escola Superior de Arquitetura de Barcelona, de 1964 até sua aposentadoria, em 1998), vencedor do Prêmio Miguel de Cervantes (2019), dentre inúmeras outras distinções literárias. Foi, sem dúvida, um dos maiores poetas catalães de todos os tempos.

Pouco conhecido no Brasil (e mesmo em Portugal), sua morte mereceu escassas resenhas da imprensa brasileira, que não fez justiça à importância do poeta para as letras catalã e espanhola (ele escreveu simultaneamente e publicou toda a sua obra nas duas línguas) e para a literatura mundial. Joana Emídio Marques, do sítio eletrônico Observador, de Portugal, em coluna escrita quando da publicação, naquele país, da coletânea Misteriosamente Feliz (tradução de Miguel Filipe Mochila. Edição/reimpressão: novembro de 2020. Editora: Flâneur / Língua Morta) vai ao ponto:

Abrimos a antologia ‘Misteriosamente Feliz’, lemos uns quantos poemas e ficamos estarrecidos: como é que este poeta nos anda a passar despercebido há mais de 40 anos?

Uma das grandes utopias da modernidade tecnológica, cientifica, digital é prometer-nos de que nada nos escapará. Que estamos no mundo todo sem sair de casa, que tudo o que há a saber e a descobrir está ao nosso alcance num clic. No entanto, muitos de nós não conhecemos Joan Margarit, o enorme poeta que se tornou um dos símbolos da cultura catalã e da Catalunha independente. Seguramente um dos grandes poetas do século XXI.

Margarit não é apenas um dos mais amados e premiados poetas da Catalunha, é também um dos mais lidos poetas contemporâneos espanhóis. Até porque, apesar de escrever em catalão, o poeta encarrega-se ele próprio de traduzir tudo para castelhano, pelo que a sua obra é amplamente conhecida e aumenta a nossa estranheza de não haver editores interessados em divulgá-la.

Joana Emídio Marques (https://observador.pt/especiais/joan-margarit-pode-um-homem-salvar-uma-lingua/ Consulta em 20/08/2021)

Quando me deparei pela primeira vez com a poesia de Joan Margarit, em 2018, soube que ali estava um poeta pouquíssimo conhecido em língua portuguesa que merecia ser lido por essas bandas. Passei então a traduzir poemas colhidos na internet e escolhidos ao sabor de minhas predileções pessoais. O primeiro deles foi Discurso do método, publicado no blog em 07/06/2018. Desde então, já traduzi e publiquei mais de 50 poemas Joan Margarit (há outros no forno, a serem publicados oportunamente). Caso alguém queira conhecer esses poemas, clique na tag com o nome do poeta ou aqui: https://singularidadepoetica.art/category/joan-margarit/

Eventualmente, acabei me deparando, de forma esparsa, com alguns poemas que se destacavam aos meus olhos não só pela qualidade, excepcional, mas acima de tudo pelo tema que eles abordavam: a experiência do poeta diante da morte de uma de suas filhas. Esses poemas, publicados no livro que leva o mesmo nome da filha falecida – Joana – me impressionaram profundamente, não só pela sua temática, mas também por sua beleza dolorosa e cristalina. O primeiro desses poemas que traduzi e publiquei (em julho de 2018) foi Um pobre instante, cujos primeiros versos foram assim traduzidos por mim:

A morte não é mais do que isto: um quarto,
a luminosa tarde na janela,
e este toca-fitas na mesinha
tão desligado como o teu coração
com todas as tuas canções cantadas para sempre.
[…]

Joan Margarit, “Um pobre instante”, in Joana (2002)

Esses versos iniciais são a pura essência do realismo lírico da poesia de Joan Margarit: o verso claro, simples, coeso, o diálogo com os clássicos na técnica de se valer de uma questão de alta indagação (a morte) que vai sendo refinada e resumida a objetos da realidade cotidiana (o quarto, a tarde que brilha do outro lado da janela, o toca-fitas da filha que partiu) para poder ser abarcada em toda sua dimensão e tornar-se suportável. Os outros poemas de Joana que traduzi com o passar do tempo – todos retirados de publicações na internet – eram de igual qualidade.

Mas eu só pude compreender o que Joana realmente representava quando recentemente adquiri este livro e pude ler todos os poemas que o compõem de uma sentada. Não vou sequer tentar descrever o impacto que uma obra dessas causa no apreciador de poesia. Qualquer adjetivação soaria artificial. Peço aos pouco mais de 10 seguidores que eventualmente acessam esta página que o façam por eles mesmos e, se quiserem, deixem seus comentários.

Sim, porque a partir de amanhã começarei a publicar no blog os poemas que compõem Joana, em sua íntegra, na ordem em que foram dispostos no livro.

Antes, porém, a despeito do próprio Joan Margarit esclarecer sucintamente o como, o quando e o porquê de ter escrito este livro, na introdução da obra que será publicada amanhã, cumpre fazer uma breve introdução para quem não conhece o contexto geral em que a obra foi gestada.

Joan Margarit era casado com Mariona Ribalta com quem teve quatro filhos: Mònica, Anna, Joana e Carles. Dos quatro filhos, Joan e Mariona sepultaram dois: Anna, que morreu pouco depois de nascer, em 67. E Joana, falecida em 2001, com 30 anos de idade, de câncer.

Joana nascera com uma síndrome rara (síndrome de Rubinstein-Taybe) que lhe causou uma série de deficiências físicas e mentais – o que não a impediu de ter uma vida afetiva riquíssima no seio da família. Nas palavras de Joan Margarit:

(Joana) Foi, desde muito cedo, uma pessoa muito especial: de um lado — por causa de suas deficiências, que lhe deixaram o amor como única ferramenta para sobreviver — era incapaz de rancor, de orgulho, de quaisquer dos mais ínfimos sinais de maldade. Por outro lado, a paixão pela vida e sua sensibilidade lhe permitiam compreender e utilizar todas as conexões sentimentais com as pessoas. Ter sido seu pai significou estar sempre ao lado do que a vida pode oferecer de mais delicado e bondoso. Isto não quer dizer que tenha sido uma época sem dificuldades, sofrimentos e crises de desespero, especialmente até que a saúde encontrasse o ponto de equilíbrio necessário dentro de suas limitações. Nada se compara a poder cuidar de alguém a quem se ama, mas é difícil encontrar alguém como Joana com quem estabelecer uma relação de uma alegria e ternura tão profundas que, com o passar dos anos, já não se sabe quem cuida de quem.

Joan Margarit, prólogo, in Joana (2002)

Joana já era uma presença importante em outras obras anteriores de Joan Margarit, mas a sua morte marca um antes e um depois na vida e na obra do poeta. Impactado com o sofrimento da última etapa da vida da amada cria, ele começa, oito meses antes da morte dela, a escrever os poemas que comporiam o livro. Joana, com efeito, foi escrito entre outubro de 2000 e setembro de 2001 e publicado em 2002.

Na introdução feita para a republicação da obra em 2020, o também poeta e catedrático Luis García Montero explica:

“Joana (2002) é o livro em que Joan Margarit deixou o testemunho dos últimos dias de vida e morte da sua filha Joana, no ano de 2001 […]. A grave deficiência com que nasceu e a dependência durante anos da mãe e do pai foi uma experiência decisiva, capaz de transformar os sentimentos e as razões do existir. Essa experiência aos poucos foi marcando os passos de um amor, de uma convivência, de uma realização e de uma obra poética. Uma realidade tão contundente e enraizada, vivida com honestidade, não pode ser abordada com retórica, nem com estratégias adoçantes, ou com lisonjas falaciosas, ou com excessos ostensivos. Só pode verbalizar-se ou formalizar-se através de um compromisso íntimo com a verdade. Não faltam experiências e vozes vazias. A poesia é o lugar sagrado onde este poeta secular decidiu não aceitar a mentira, não se enganar, não se camuflar entre enganos ao olhar para o presente, relembrar o passado ou ter ilusões sobre o futuro. E não se trata de levantar em posse de uma Verdade escrita em maiúsculas, mas de comprometer-se a não mentir. Não há dogmatismo sem lealdade ética com as vigas da própria identidade.”

in Joana, Joan Margarit, Editora Fondo de Cultura Económica de España, 1ª edição (23 março de 2020)

É impossível mergulhar na leitura dos poemas de Joana e sair indiferente da experiência. Tentando mitigar a tristeza que permeou todo o período no qual o livro foi escrito, Margarit não nos poupa de nada. Em um verdadeiro striptease da alma, a via crucis emocional que ele é obrigado a percorrer no período nos é apresentada sem censura. Está tudo lá: o sofrimento por um futuro inevitável, sua descrença nos aspectos espirituais da morte, as dolorosas intervenções cirúrgicas às quais a filha foi submetida, o sofrimento e a dor experimentados por ela, a deterioração progressiva da saúde no final, os reflexos familiares, a morte, o funeral, o pós-morte, os remorsos etc.. Comove a coragem com que o poeta enfrenta essa realidade dilacerante, optando conscientemente por não se iludir sobre o futuro, enquanto agarra-se desesperadamente a fiapos de construções intelectuais para tentar seguir em frente, com resignação:

[…]
Mas, se estás morrendo, ainda vives,
e faço irromper a última alegria
em teu rosto cansado enquanto tomo
entre as minhas tuas pequenas mãos.
E repito para mim mesmo:
morrer ainda é viver.
[…]

Joan Margarit, “Súplica”, in Joana (2002)

Por isso, ele não se poupa nem nos poupa de nada: talvez imbuído do objetivo – mencionado no prólogo – de fechar este ciclo para reencontrar, se é que é possível, a Joana de antes, Margarit é assustadoramente sincero:

[…].
Com a testa apoiada na vidraça
peço perdão às minhas filhas mortas,
porque já quase nunca penso nelas.
[…]

Joan Margarit, “No final da noite”, in Joana (2002)

Mas o leitor se decepcionará se julgar que Joana é um recanto apenas de dor e expiação. Embora escrito por um pai devastado pela perda da filha amada, a obra é também o produto final de um artesão da palavra, que, por princípio e técnica compositiva, busca, sempre que possível, fugir ao subjetivismo:

“Tenho a tendência, mesmo nos poemas mais subjetivos, de tirar o máximo possível do sentimento – o sujeito – para que prevaleça um certo senso de objetividade naqueles que leem o poema”

Joan Margarit, em entrevista a José Luis Morante [https://www.joanmargarit.com/category/noticies/page/4/], consultado em 30/08/2021

E, embora profundamente triste, o livro não chega a ser pessimista. Algo que perpassa todo o livro é a percepção da passagem do tempo e da marca que ela deixa em cada um de nós. Assim, os poemas de Joana são sobretudo uma forma de não esquecer, apesar da marcha implacável do tempo. Não esquecer a ternura, o amor, os escassos momentos de deleite.

Sobre Joana já se disse:

[…] Talvez o melhor que se possa dizer sobre um livro seja que ele é necessário. Além da vida e além da literatura, é isso. Poucas vezes esses versos comoventes produziram tamanha sensação de conforto.

Javier Rodríguez Marcos, Conforto e desolação, El País, 17/05/2002 [https://elpais.com/diario/2002/05/18/babelia/1021679426_850215.html], consultado em 21/08/2021

Joana é um livro sofrido, pungente. Mas é também, ao seu modo triste, um livro de esperança e de amor. E, por todas estas razões, imprescindível.

Espero que os que me leem compartilhem comigo do mesmo entusiasmo.

Nelson Santander

Joan Margarit – Faróis na noite

Tento seduzir-te no passado.
As mãos ao volante e esta luz
de boate no painel me permitem
– fantasia invernal – dançar contigo.
Atrás de mim, como um grande caminhão,
o amanhã fabrica explosões de luzes.
Ninguém o conduz e ele me ultrapassa,
mas agora tu e eu viajamos juntos
e a carruagem pode ser a dos cavalos
dos anos sessenta para Paris.
“Je ne regrette rien”, canta Edith Piaf.
Desço o vidro, infiltra-se a noite
fria da rodovia, e o passado
se aproxima de frente, velozmente:
cruza e me cega sem baixar as luzes.

Trad.: Nelson Santander

Faros en la noche

Intento seducirte en el pasado.
Las manos al volante y esta luz
de club nocturno del tablier me dejan
-fantasía invernal- bailar contigo.
Detrás de mí, igual que un gran camión,
el mañana hace ráfagas de luces.
No lo conduce nadie y me adelanta,
pero ahora tú y yo viajamos juntos
y el coche puede ser el dos caballos
de los años sesenta hacia París.
«Je ne regrette rien» canta Edith Piaf.
Bajo la ventanilla, entra la noche
fria de la autopista, y el pasado
se aproxima de cara, velozmente:
cruza y me ciega sin bajar las luces.

Joan Margarit – Arcadi Volodos: Sonata D894

É uma música modesta
como um jantar na cozinha,
hospitaleira como ter tido filhos.
Compadece-se do corpo
que a maré arrasta
à praia invernal de cada um.
Que franqueza nas notas mais abruptas
dizendo-me: é amor
também aquilo que parece hostil.
Quando se extingue o eco do piano,
o que escutei ainda me estremece.
A música de Schubert
é uma forma de caridade.

Trad.: Nelson Santander

Arkadi Volodos: Sonata D894

Es una música modesta
como una cena en la cocina,
hospitalaria como haber tenido hijos.
Se compadece de este cuerpo
que la marea arrastra
a la playa invernal de cada uno.
Qué franqueza en las notas más abruptas
diciéndome: es amor
también aquello que parece hostil.
Cuando el eco del piano se ha extinguido,
lo que he escuchado me estremece aún.
La música de Schubert
es una forma de la caridad.

Joan Margarit – Separado

A casa se abre para uma calçada
onde não me espera ninguém.
Aqui sem ti. Um estranho.
Foi aqui que eu me perdi.
Caminho sem mim, contigo.
Minha sombra é apenas um erro,
vem dos lugares mais gélidos:
teu coração e tuas mãos.
Por isso eu parti.
A vida desconhecida
eu a vivi sem ti.
A teu lado.

Trad.: Nelson Santander

Separado

La casa se abre a una acera
donde no me espera nadie.
Aquí sin ti. Un extraño.
Fue aquí donde me extravié.
Paseo sin mí, contigo.
Mi sombra es sólo un error,
viene de sitios más gélidos:
tu corazón y tus manos. 
Es por lo que me marché.
La vida desconocida
yo la he vivido sin ti.
A tu lado.

Joan Margarit – Noturno em Solivella

Vens da visita que fizeste ao vinhedo, à noite.
Detiveste o trator entre as cercas de arame
onde se embalam, verdes e densas, as videiras,
e escutaste a terra à tua volta.
O restaurante te dá dinheiro,
mas de madrugada, com ele já fechado,
fazendo um café para ti no balcão,
pensas o quanto gostas de, à noite, visitar
sozinho os arames do vinhedo.
Este local sem ninguém te lembra
quando era um bar de aldeia, com os velhos
que perto do fogão jogavam cartas.
Na penumbra, ocultava-se um Deus
encurralado como as garrafas
de anis que ninguém mais pedia,
ou como os retratos dos mortos
do refeitório, o oleado, como uma bandeira
cobrindo um caixão, sobre a mesa.
Alguns deles transportavam vinho
– voltando com carvão – para os Pirineus.
Talvez seja a solidão que te atrai
ao vinhedo à noite. Houve um outro
apostador que acabou no curral
pendurado pelas rédeas em uma viga.
Talvez tenha apostado a vida dele na tua.
E aquela bisavó fuzilada
ao pé do cemitério: legou-te
a fúria de existir. São negros melros
que a mão da morte deteve em pleno voo.
Haver vivido um dia é uma centelha
brilhante em uma escura eternidade
sem qualquer retorno ou ressurreição.
Era isto o que telegrafavam as fileiras
de arames através do vinhedo, à noite.

Trad.: Nelson Santander

Nocturno en Solivella

Vienes de recorrer las viñas en la noche.
Detuviste el tractor entre las alambradas
donde se emparran verdes y tupidas las cepas,
y escuchaste la tierra a tu alrededor.
Te va dando dinero el restaurante,
pero de madrugada, ya cerrado,
haciéndote un café en el mostrador,
piensas cuánto te gusta a solas recorrer,
de noche, los alambres de las viñas.
Este local sin nadie te recuerda
cuando era un bar de pueblo, con los viejos
que cerca de la estufa jugaban a las cartas.
En la penumbra se ocultaba un Dios
arrinconado como las botellas
de anís que nadie ya solicitaba,
o como los retratos de los muertos
del comedor, el hule, igual que una bandera
cubriendo un ataúd, sobre la mesa.
Alguno de ellos transportaba vino
– volviendo con carbón – al Pirineo.
Quizá es su soledad la que te atrae
de noche hasta las viñas. Otro fue
un jugador y terminó en la cuadra
colgado con las riendas de una viga.
Quizá apostó su vida por la tuya.
Y aquella bisabuela fusilada
al pie del cementerio: te legó
la furia de existir. Son negros mirlos
que paró en pleno vuelo la mano de la muerte.
Haber vivido un día es una chispa
brillante en una oscura eternidad
sin vuelta alguna ni resurrección.
Esto telegrafían las hileras
de alambres por las viñas en la noche.

Joan Margarit – Manhã no cemitério de Montjuïc

Fui à colina dos túmulos:
lá cheguei cruzando o ermo
da Can Tunis, coberto de seringas
e de plásticos pardacentos, onde tremem, errantes,
as estátuas de trapo dos drogados.
Corre o boato de que a Prefeitura
irá destruí-lo, cobrindo de concreto
os terrenos com mato em frente à enorme grade
do cemitério, erguida de frente para o mar.
Que má companhia será para os mortos:
os defuntos, seu muro e sua quietude
harmonizam melhor com esses drogados
que, soldados sem forças e perdidos,
deambulam depois da derrota.
À medida que subimos pela velha estrada do porto,
os barcos e os guindastes ficam menores,
enquanto o mar fica mais largo. Aqui, no alto,
estás a salvo das dores do mundo.

Trad.: Nelson Santander

N. do T. em 18/02/2021: a publicação da tradução que fiz deste poema já estava agendada há mais de 2 meses. O poema narra uma visita que o poeta faz ao túmulo de um ente querido – presumivelmente, o de sua filha, Joana, falecida em 2001, vítima do câncer. Há dois dias, depois de uma breve batalha contra o câncer (sempre ele), faleceu também o poeta. Não sei se ele foi enterrado no mesmo cemitério Montjuïc, onde repousa a amada filha. Mas me anima pensar que, onde quer que esteja neste momento, também ele tenha ficado a salvo das dores do mundo.

Mañana en el cementerio de Montjuïc

He ido a la montaña de las tumbas:
he llegado hasta allí cruzando el yermo
de Can Tunis, nevado de jeringas
y de plásticos grises, donde tiemblan, errantes,
las estatuas de trapo de los yonquis.
Corre el rumor de que el Ayuntamiento
lo arrasará, cubriendo de hormigón
los campos de hierbajos ante la enorme reja
del cementerio, alzado frente al mar.
Qué mala compañía será para los muertos:
los difuntos, su muro y su quietud
armonizan mejor con esos yonquis
que, soldados sin fuerzas y perdidos,
deambulan después de la derrota.
Al subir por el viejo camino frente al puerto
los barcos y las grúas van empequeñeciéndose,
mientras se ensancha el mar. Aquí, en lo alto,
estás salvada del dolor del mundo.

Joan Margarit – Nada engrandece um velho

Nem essa violência com a qual desejo
ter sempre razão.
Nem tampouco crer que a felicidade
tem uma relação, sutil, com a mentira.
Nem chegar a ter
o coração tão sujo como o meu,
apesar de ter sido a guerra que o sujou.
Minha paz deve ser uma falsa paz.
Tampouco não abjurar a luxúria
e a vaidade.
Como podemos ser vaidosos, os velhos? Essa é a nossa derrota.
Um campo de batalha onde, ao anoitecer,
estou cercado pelos mortos enquanto ouço
vozes distantes de jovens
celebrando o que hoje,
para eles, é ainda a vitória.

Trad.: Nelson Santander

Nada enaltece a un viejo

Ni esa violencia con la que deseo
tener siempre razón.
Ni tampoco creer que la felicidad
tiene una relación, sutil, con la mentira.
Ni llegar a tener
tan sucio el corazón como los míos,
a pesar de que a ellos los ensució la guerra.
Mi paz debe ser una paz falsa.
Tampoco no abjurar de la lujuria
ni de la vanidad.
¿Cómo podemos ser vanidosos, los viejos? Esa es nuestra derrota.
Un campo de batalla donde, al oscurecer,
me rodean los muertos mientras oigo
lejanas voces de gente joven
celebrando lo que hoy,
para ellos, es aún la victoria.

Joan Margarit – Perdidos em um conto

Após a demolição, começam as obras
no terreno onde ficava nossa casa.
Aqui li para ti contos
junto à cama até que a luz se apagasse.
Lembro-me daquele lobo que ainda chora
porque não reconhece sua dor
na dor alheia. Com seu sinistro
ruído de ferros, uma escavadeira
remove as terras roxas de ontem
enquanto, defronte a cerca, a princesa
ainda está varrendo as folhas secas
de um palácio sem ecos e sem ninguém.
Reuniões noturnas em escolas vazias.
Madrugadas velando-te a febre.
Um tempo de oscilações e castelos de areia,
dias de zoológico e Walt Disney,
horas pensando em ti, falando de ti.
A noite em que estiveste à beira da morte
ainda não terminou: meu olhar abriu
o mais desolador de seus lugares.
Hoje que falas tantas línguas
desconhecidas, teu potente voo
afastou-te de mim, mas subitamente
estou ouvindo aquela mesma voz
com a qual me chamaste tantas vezes.
Da qual vêm o desprezo e a indiferença
dos monstros da adolescência.
Atrás de ti talvez esteja me chamando
a menina de quem me esqueci e que, apesar disso,
eu sei que tive em meus braços. Talvez deva
dizer-lhe adeus. Minha tenda é a insônia:
teso como um soldado, monto guarda
sob o casaco, entre ninhos desertos
nas ramagens nuas invernais.
A vida nunca cuida de nós.

Trad.: Nelson Santander

Perdidos en un cuento

Tras el derribo empieza a edificarse
el solar donde estuvo nuestra casa.
Aquí te leí cuentos
junto a la cama hasta apagar la luz.
Recuerdo el de aquel lobo que llora todavía
porque no reconoce su dolor
en el dolor ajeno. Con su oscuro
ruido de hierros, una excavadora
remueve rojas tierras del ayer
mientras, ante la valla, la princesa
aún está barriendo la hojarasca
de un palacio sin ecos y sin nadie.
Reuniones en escuelas vacías por la noche.
Madrugadas velándote la fiebre.
Un tiempo de columpios y castillos de arena,
días de zoológico y Walt Disney,
horas pensando en ti, hablando de ti.
La noche que estuviste al borde de la muerte
no ha terminado: mi mirada abrió
el más desolador de sus lugares.
Hoy que hablas tantas lenguas
desconocidas, tu potente vuelo
te ha alejado de mí, pero de pronto
estoy oyendo aquella misma voz
con la que me llamaste tantas veces.
Desde qué monstruos de la adolescencia
vienen la indiferencia y el desprecio.
Detrás de ti quizá me está llamando
la niña que olvidé y que, a pesar de ello,
sé que tuve en mis brazos. Quizá deba
decirle adiós. Mi tienda es el insomnio:
duro como un soldado monto guardia
bajo el capote, entre desiertos nidos
en las desnudas ramas invernales.
La vida nunca cuida de nosotros.