Ulisses Tavares – Religião

olhar para o alto.
tão alto que se tenha
um torcicolo eterno
e nunca mais se possa
olhar direto para o próximo.

Domingos Pellegrini – Com Brecht

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Domingos Pellegrini – Mudanças

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Paulo Henriques Britto – De “Bonbonnière”

IV

Só não dói mais porque não é preciso.
Se fosse o caso, a dor era pior.
Não há nada nisso de extraordinário:

A natureza odeia o desperdício,
tal como o vácuo. Sem tirar nem pôr.
É exatamente a conta necessária,

até que alguma solução se encontre.
O que aliás não acontece nunca.
E isso também é natural. No entanto
há sempre um tralalá, um deus, um bálsamo

pra não perder a esperança e o bonde:
A caixa de bombons. A “Marcha húngara”
de Liszt. Ou Brahms. Um dos dois. Ou não. Tanto
faz. A dor continua. Hoje é sábado.

Paulo Henriques Britto – De “Bonbonnière”

I

A seletividade da memória —
a cor exata da pele, a textura,
o odor de cada côncavo e orifício,
o lábio, a língua, o dente, o plexo

solar, a sola do pé, o suor e a
saliva, a coxa arisca, a dobra escura,
o beijo salobro, o sabor difícil,
a carne assombrada, o esperma perplexo

— falsa perfeição, mero artifício
do tempo, a desmaiar todos os tons
do que destoaria do desejo

como um menino a retirar sem pejo
da caixa que lhe deram os bombons
de que ele abre mão sem nenhum sacrifício.

Paulo Henriques Britto – De “Biographia Literária”

ii

Não volta mais, aquele voo cego
rumo ao que nunca esteve lá, porém
só surge em pleno ar. E não renego
a rota tonta que segui. Ninguém
se faz em linhas retas. Todo porto
a que se chega é a meta desejada.
E o caminho tomado, por mais torto,
acaba sempre sendo a exata estrada
a dar naquilo que, afinal, se é.
Assim, todo e qualquer passado, até
o que se esqueceria, se pudesse,
vai pouco a pouco virando uma espécie
de bala que se chupa com deleite,
mesmo se azeda. Isso, chupe. Aproveite.

Paulo Henriques Britto – De “Duas Bagatelas”

II

Então viver é isso,
é essa obrigação de ser feliz
a todo custo, mesmo que doa,
de amar alguma coisa, qualquer coisa,
uma causa, um corpo, o papel
em que se escreve,
a mão, a caneta até,
amar até a negação de amar,
mesmo que doa,
então viver é só
esse compromisso com a coisa,
esse contrato, esse cálculo
exato e preciso, esse vicio,
só isso.

Paulo Henriques Britto – Epílogo

Finda a leitura, o livro está completo
em sua solidão mais-que-perfeita
de couro falso e íntimo papel.

Lá fora, o mundo segue, arquitetando
as mesmas contingências costumeiras
que nunca esbarram numa irrefutável

conclusão que se possa resumir
em três letras letais, inalienáveis.
Que paz será possível nessa selva

sem índices, prefácios, rodapés?
indaga, da estante mais excelsa,
o livro. Porém, nada disso importa,

se todas as dúvidas se dissipam,
com tudo mais, quando o bibliotecário
apaga as luzes, sai e tranca a porta.

Paulo Henriques Britto – De “Biographia Literária”

VII

Nada disso foi do jeito que eu quis.
Se fosse como eu quis, não haveria
de ser tão sofrido, tão infeliz.
Mas eu – o eu que sou – eu não seria.

Assim, não me lamento. Até me sinto
como quem tem não o que foi pedido,
e sim o que, guiado pelo instinto,
não pelo querer, teria querido.

O que de mais duro a vida me deu
-que dura mais quanto mais me custou
dele me acostar, e torná-lo meu –

o que não escolhi, mas me escolheu,
é o que , ao fim e ao cabo, mais eu sou.
Não é o eu que eu me quis. Mas sou eu.

Paulo Henriques Britto – Balanços

II

Como saber sem tentar?
Como tentar se é tão fácil
conformar-se de saída
com a ideia de fracasso?

Pois fracassar justifica
o não se ter nem sequer
admitido não querer-se
aquilo que mais se quer.

É um beco sem saída,
mas sempre é melhor que a rua:
mais estreito. Acolhedor.
Vem, entra. A casa é tua.