Eavan Boland – Anna Liffey

Contava-se que Life
Era filha de Canaã,
E chegou à planície de Kildare.
Amava as planícies e as valas
E o horizonte distante.
Pediu que dessem seu nome ao lugar.
O rio herdou o nome da terra.
A terra herdou o nome de uma mulher.

Uma mulher na porta de uma casa.
Um rio na cidade onde nasceu.

Lá, nas colinas acima da minha casa,
O rio Liffey brota, é nascente.
Surgindo entre junco e urze, na turfa
Negra e nas samambaias, ganha força
Para reivindicar a cidade que narrou.
Cisnes. Quedas abruptas. Pequenas cidades.
O ar manchado e as pontes de Dublin.

O crepúsculo se aproxima.
A chuva avança do leste, vinda das colinas.

Se eu pudesse me ver,
Veria
Uma mulher na soleira,
Vestindo as cores que combinam com cabelos ruivos.
Embora meus cabelos já não sejam ruivos.

Eu louvo
As dádivas do rio.
Seu brilho errante
Seu recontar cintilante da cidade,
Sua claridade ao fluir,
Na companhia de flores rasteiras e garças,
Contornando uma curva em Islandbridge
E passando sob treze pontes até o mar.
Sua paciência ao crepúsculo –
Cisnes aninhando-se em suas margens,
Neon tremeluzindo em suas águas.

Forjador de
Lugares, memórias,
Narre para mim tais fragmentos:

Um corpo. Um espírito.
Um lugar. Um nome.
A cidade onde nasci.
O rio que a atravessa.
A nação que me escapa.

Frações de uma vida
Que levei uma vida inteira
Para reivindicar.

Cheguei aqui em um inverno frio.

Não tinha filhos. Nem país.
Eu não sabia o nome da minha própria vida.

Meu país me tomou.
Meus filhos nasceram.

Saí em um crepúsculo de verão
Para chamá-los.

Um nome. Depois o outro.
As belas vogais soando como lar.

Faça de uma nação o que quiser
Faça do passado
O que puder –

Agora há
Uma mulher na soleira.

Foi preciso
Todas as minhas forças para chegar aqui.

Tornar-me uma personagem em um poema.

Usurpar um nome e um tema.

Um rio não é uma mulher.
      Embora os nomes que encontra,
              A história que faz
E que sofre –
      as lâminas vikings1 em suas margens,
               Os mosquetes dos Casacos Vermelhos2,
                       As chamas das Four Courts3
Ardendo sobre ele –
      Sejam um sinal.
            Assim como
Uma mulher não é um rio,
      Embora o curso que toma,
            Entre cisnes cortejando-se e salgueiros desolados,
Sua paciência,
      Que é também sua impotência,
            De Callary a Isladbridge,
                  Da nascente à foz,
Seja outro.
                          E em meus quarenta e poucos anos
Já sem crer
      Que o amor irá curar
            O que a linguagem falha em conhecer
E precisa dizer –
      O que o corpo significa –
            Eu tomo este sinal
E faço esta marca:
      Uma mulher na soleira de sua casa.
            Um rio na cidade em que ela nasceu.
A verdade de uma vida sofrida.
      A foz dela.

As aves marinhas chegam da costa.
Dizem na cidade que elas trazem chuva.
Eu as observo da soleira.
Vejo nelas argumentos de origem –
Deixam uma força severa no horizonte
Apenas para encontrá-la
Inclinando-se e caindo em outro lugar.

Qual das águas –
A que deixam ou a que anunciam –
Lembra a outra?

Estou certa
De que o corpo de uma mulher que envelhece
É uma memória
E encontrar-lhe uma linguagem
É tão árduo
Quanto chorar e exigir
Que essas aves protestem como se pudessem
Reconhecer seu elemento
Relembrado e reduzido a
Uma única lágrima.

Uma mulher que envelhece
Não encontra refúgio na linguagem.
Em vez disso, descobre
Que palavras que um dia amou,
Como ‘verão’ e ‘amarelo’
E ‘sexual’ e ‘pronta’
Subitamente se tornaram moradas
Para outra pessoa –
Quartos e um teto sob o qual outro
É bem-vindo, não ela. Diga-me,
Anna Liffey,
Espírito da água,
Espírito do lugar,
O que resta nesta
Noite chuvosa de outono,
Enquanto o mar irlandês recolhe
Os nomes que você criou, os nomes
Que você concedeu, e lhe devolve
Apenas a ausência de palavras?

A chuva de outono
Se espalha e goteja
Dos toldos
E das sebes podadas.
As calhas estão cheias.

Quando aqui cheguei
Não tinha
Filhos nem país.
As árvores eram braços.
As colinas eram sonhos.

Eu era livre
Para imaginar um espírito
Nos azuis e verdes,
Nas colinas e neblinas
De uma pequena cidade.

Meus filhos nasceram.
Meu país me tomou.
Uma visão em uma casa de tijolos.
É só o amor
Que faz um lugar?

Sinto-o mudar.
Meus filhos estão
Crescendo, envelhecendo.
Meu país se agarra
À sua própria dor.

Apago
A luz amarela e dura
Da varanda e
Permaneço no corredor.
Onde está meu lar agora?

Siga a chuva
Até as colinas de Dublin.
Deixe-a tornar-se o rio.
Deixe que o espírito do lugar se torne
De novo uma alma errante.

No final,
Não importará
Que eu tenha sido mulher. Estou certa disso.
O corpo é uma nascente. Nada mais.
Há um tempo para ele. Há uma certeza
No modo como busca sua própria dissolução.
Considere os rios.
Eles estão sempre a caminho
De seu próprio nada. Desde o primeiro instante,
Estão indo para casa. E assim,
Quando a linguagem não consegue fazer isso por nós,
Não pode nos fazer saber que o amor não nos diminuirá,
Há essas frases
Do oceano
Para nos consolar.
Particulares e destemidas em sua plenitude.
No final,
Tudo o que me sobrecarregou e me distinguiu
Se perderá nisto:
Eu fui uma voz.

Trad.: Nelson Santander

  1. Referem-se às espadas utilizadas pelos vikings, povos nórdicos que realizaram expedições de pilhagem e colonização por grande parte da Europa durante a Idade Média. A menção dessas lâminas no contexto do poema sugere a longa história e as violências que a Irlanda, e por extensão o rio Liffey, testemunharam ao longo dos séculos. ↩︎
  2. Uma alusão aos soldados britânicos, que eram chamados de “Casacos Vermelhos” devido ao uniforme vermelho que usavam. A presença desses mosquetes indica os conflitos entre a Irlanda e a Inglaterra, culminando em diversas guerras e revoltas, como a Rebelião Pascoal de 1798. ↩︎
  3. The Four Courts (“Quatro Tribunais”, em tradução livre): trata-se dos edifícios dos tribunais de Dublin, que foram incendiados durante a Guerra da Independência da Irlanda em 1922. Esse evento marcou um dos momentos mais violentos da luta pela independência irlandesa e causou grandes danos à cidade. ↩︎

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Anna Liffey

Life, the story goes,
Was the daughter of Canaan,
And came to the plain of Kildare.
She loved the flat-lands and the ditches
And the unreachable horizon.
She asked that it be named for her.
The river took its name from the land.
The land took its name from a woman.

A woman in the doorway of a house.
A river in the city of her birth.

There, in the hills above my house,
The river Liffey rises, is a source.
It rises in rush and ling heather and
Black peat and bracken and strengthens
To claim the city it narrated.
Swans. Steep falls. Small towns.
The smudged air and bridges of Dublin.

Dusk is coming.
Rain is moving east from the hills.

If I could see myself
I would see
A woman in a doorway
Wearing the colours that go with red hair.
Although my hair is no longer red.

I praise
The gifts of the river.
Its shiftless and glittering
Re-telling of a city,
Its clarity as it flows,
In the company of runt flowers and herons,
Around a bend at Islandbridge
And under thirteen bridges to the sea.
Its patience at twilight –
Swans nesting by it,
Neon wincing into it.

Maker of
Places, remembrances,
Narrate such fragments for me:

One body. One spirit.
One place. One name.
The city where I was born.
The river that runs through it.
The nation which eludes me.

Fractions of a life
It has taken me a lifetime
To claim.

I came here in a cold winter.

I had no children. No country.
I did not know the name for my own life.

My country took hold of me.
My children were born.

I walked out in a summer dusk
To call them in.

One name. Then the other one.
The beautiful vowels sounding out home.

One name. Then the other one.
The beautiful vowels sounding out home.

Make of a nation what you will
Make of the past
What you can –

There is now
A woman in a doorway.

It has taken me
All my strength to do this.

Becoming a figure in a poem.

Usurping a name and a theme.

A river is not a woman.
Although the names it finds,
The history it makes
And suffers –
The Viking blades beside it,
The muskets of the Redcoats,
The flames of the Four Courts
Blazing into it
Are a sign.
Any more than
A woman is a river,
Although the course it takes,
Through swans courting and distraught willows,
Its patience
Which is also its powerlessness,
From Callary to Isladbridge,
And from source to mouth,
Is another one.
And in my late forties
Past believing
Love will heal
What language fails to know
And needs to say –
What the body means –
I take this sign
And I make this mark:
A woman in the doorway of her house.
A river in the city of her birth.
The truth of a suffered life.
The mouth of it.

The seabirds come in from the coast.
The city wisdom is they bring rain.
I watch them from my doorway.
I see them as arguments of origin –
Leaving a harsh force on the horizon
Only to find it
Slanting and falling elsewhere.

Which water –
The one they leave or the one they pronounce –
Remembers the other?

I am sure
The body of an ageing woman
Is a memory
And to find a language for it
Is as hard
As weeping and requiring
These birds to cry out as if they could
Recognise their element
Remembered and diminished in
A single tear.

An ageing woman
Finds no shelter in language.
She finds instead
Single words she once loved
Such as ‘summer’ and ‘yellow’
And ‘sexual’ and ‘ready’
Have suddenly become dwellings
For someone else –
Rooms and a roof under which someone else
Is welcome, not her. Tell me,
Anna Liffey,
Spirit of water,
Spirit of place,
How is it on this
Rainy autumn night
As the Irish sea takes
The names you made, the names
You bestowed, and gives you back
Only wordlessness?

Autumn rain is
Scattering and dripping
From car-ports
And clipped hedges.
The gutters are full.

When I came here
I had neither
Children nor country.
The trees were arms.
The hills were dreams.

I was free
To imagine a spirit
In the blues and greens,
The hills and fogs
Of a small city.

My children were born.
My country took hold of me.
A vision in a brick house.
Is it only love
That makes a place?

I feel it change.
My children are
Growing up, getting older.
My country holds on
To its own pain.

I turn off
The harsh yellow
Porch light and
Stand in the hall.
Where is home now?

Follow the rain
Out to the Dublin hills.
Let it become the river.
Let the spirit of place be
A lost soul again.

In the end
It will not matter
That I was a woman. I am sure of it.
The body is a source. Nothing more.
There is a time for it. There is a certainty
About the way it seeks its own dissolution.
Consider rivers.
They are always en route to
Their own nothingness. From the first moment
They are going home. And so
When language cannot do it for us,
Cannot make us know love will not diminish us,
There are these phrases
Of the ocean
To console us.
Particular and unafraid of their completion.
In the end
Everything that burdened and distinguished me
Will be lost in this:
I was a voice.

Sarah Russell – Se eu tivesse três vidas

Se eu tivesse três vidas

Após “Melbourne”, dos The Whitlams

Se eu tivesse três vidas, em duas me casaria com você.
E a outra? Aquela vida, sabe,
na Starbucks, sentada sozinha, escrevendo — minhas memórias,
talvez um romance, ou este poema. Provavelmente sem filhos,
um pequeno apartamento com vista para o rio,
e livros — muitos livros e tempo para ler. 
Amigos com quem rir; um homem de vez em quando,
por um fim de semana, para lembrar como é sentir
a pele viva. Sou mais magra nessa vida, vegana,
pratico ioga. Vou a filmes de artes, feiras orgânicas,
bebo martínis, usando saias rodadas e joias exuberantes. 
Tiro férias na costa do Maine e visto a camisa de flanela
que o cara do fim de semana deixou para trás, amando o cheiro de suor
e loção pós-barba mais do que a ele. Caminho pela praia
ao nascer do sol, encontro conchas em espirais perfeitas e observo
os sulcos que a água deixou na areia. E às vezes me pergunto
se algum dia haverei de encontrar você.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

If I Had Three Lives

                 After “Melbourne” by the Whitlams

If I had three lives, I’d marry you in two.
And the other?  That life over there
at Starbucks, sitting alone, writing — a memoir,
maybe a novel or this poem.  No kids, probably,
a small apartment with a view of the river,
and books — lots of books and time to read. 
Friends to laugh with; a man sometimes,
for a weekend, to remember what skin feels like
when it’s alive.  I’m thinner in that life, vegan,
practice yoga.  I go to art films, farmers markets,
drink martinis in swingy skirts and big jewelry. 
I vacation on the Maine coast and wear a flannel shirt
weekend guy left behind, loving the smell of sweat
and aftershave more than I do him.  I walk the beach
at sunrise, find perfect shell spirals and study pockmarks
water makes in sand.  And I wonder sometimes
if I’ll ever find you.

Lucille Clifton – Cântico de Louvor

para minha tia blanche
que rolou do gramado para a caçada
e dali para a rua em uma manhã de domingo.
eu tinha dez anos. nunca havia visto
uma mulher humana arremessar seu corpo
como uma bola de basquete no tráfego do mundo.
Louvados sejam os motoristas que frearam a tempo.
Louvada seja a fé com que ela se ergueu
após alguns instantes e então caminhou lentamente
suspirando de volta para sua família.
Louvados os braços que mal
compreendiam o significado daquilo,
mas a acolheram sem julgamentos,
aceitando tudo como crianças fariam,
como Deus.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Praise Song

to my aunt blanche
who rolled from grass to driveway
into the street one sunday morning.
i was ten. i had never seen
a human woman hurl her basketball
of a body into the traffic of the world.
Praise to the drivers who stopped in time.
Praise to the faith with which she rose
after some moments then slowly walked
sighing back to her family.
Praise to the arms which understood
little or nothing of what it meant
but welcomed her in without judgment,
accepting it all like children might,
like God.

Timothy Liu – Melhor não deixar vestígios

Começo a compreender
por que hindus se reúnem nos ghats1

para incinerar seus mortos —

as águas sagradas do Ganges
levando as cinzas para longe.

Os agentes funerários erraram

com meu pai, minha madrasta chorando
pela forma da boca

dele — uma cavidade preenchida

com algodão, lábios esticados
demais, de lado a lado,

pintados, fazendo-o parecer

o Coringa. Pergunto-me quem
está deitado ali, exposto, e quais

papéis nos cabem interpretar hoje —

cidadãos de um reino
sem nome reunidos

para uma última despedida, minha madrasta

perguntando em mandarim: posso
tocá-lo?
Eu havia chegado

uma hora antes do que disseram,

uma hora antes do que disseram

que ele estaria pronto. Queria
um tempo sozinho, algum espaço

para sentir seja lá o que fosse

sentir, droga, se
ela não fosse me sabotar

uma última vez. Eu contava

os dias desde que meu pai deixou
seu corpo, me perguntando quanto tempo

o Bardo2 o manteria

antes de despachar nosso pequeno
general enfeitado com medalhas

de volta a outra forma — humana

ou não. Ela pousa a mão
sobre a dele no mesmo lugar

onde eu já tinha posto a minha antes

dela chegar — o orgulho fugaz
de ter chegado

primeiro, abrindo o zíper da capa

que guardava sua bíblia toda marcada
de vermelho, passagens várias

que eu nunca mais teria que ouvir

ele ler enquanto remexia
suas últimas coisas — um desenho

feito por uma neta, um cartão

assinado pelo próprio filho deles.
Uma hora antes, o agente funerário

brincou que ele também tivera

uma madrasta terrível que vendeu
o negócio da família para

uma corporação para lucrar

sem se importar com os quatro
enteados deixados para trás,

todos treinados na fina arte

de embalsamar o próprio pai.
Meu pai havia encolhido

três tamanhos de terno, nada

realmente servia, minha madrasta
reclamando sobre quanto

custaria um terno novo,

dinheiro que preferia gastar
consigo mesma, embora a ideia

parecesse boa no início,

quando o cadáver ainda estava quente.
O que restava

do cabelo grisalho do meu pai

tinha laquê, a pele
amarelada em seu crânio e rosto

surpreendentemente macia para

um nonagenário — ainda parecia
ele, se não o olhassem

muito de perto. Eu tinha sentimentos contraditórios

sobre todos aqueles produtos químicos
usados para conservá-lo,

mas fiquei aliviado por ele não cheirar mal

quando pressionei meus lábios contra
sua testa quando ninguém

estava olhando, até tirei

uma selfie que me fez
explodir em lágrimas —

última chance de foto, ensaiada

e não, peguei uma caneta
e rabisquei na bíblia do meu

pai, rasurando qualquer menção

ao meu homônimo Timothy —
“meu verdadeiro filho na fé!”

antes que minha madrasta chegasse,

os vestígios kármicos
de tudo que fiz

selados dentro de um caixão se fechando.

Trad.: Nelson Santander

  1. Os ghats são escadarias que descem até margens de rios, comumente encontradas na Índia. São frequentemente usados como espaços sagrados para cerimônias religiosas, como oferendas e cremações. Os ghats do rio Ganges, em particular, possuem um significado especial no hinduísmo, pois acredita-se que as cinzas dos mortos lançadas em suas águas sagradas promovem a purificação espiritual e a libertação do ciclo de renascimentos (moksha). ↩︎
  2. A referência ao “Bardo” vem do budismo tibetano, especificamente do conceito exposto no Bardo Thodol (Livro Tibetano dos Mortos). O “Bardo” seria um estado intermediário entre a morte e o renascimento, onde a alma, segundo essa tradição, enfrenta experiências que determinam sua próxima existência. ↩︎

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Best to Leave No Evidence Behind

I’m starting to understand
why Hindus gather on ghats

to set their corpses on fire—

sacred waters of the Ganges
washing away the ashes.

The morticians got my father

wrong, my stepmom sobbing
over the shape of my father’s

mouth—the cavity stuffed

with cotton, lips stretched
too wide from side to side

and painted, making him look

like the Joker. I wonder who
that is lying in state and what

roles we get to play today—

citizens of an unnamed
kingdom gathering around

for a last hurrah, my stepmom

asking in Mandarin: can I
touch him? I had gotten there

an hour before they said

an hour before they said

he’d be ready. I wanted
some time alone, some space

to feel whatever it was I was

going to feel, goddamn it if
she were going to cockblock me

one last time. I was counting

the days since my dad had left
his body, wondering how long

the Bardo would have him

before dispatching our little
general bedecked with medals

back into another form—human

or not. She puts her hand
on top of his in the same place

I had put mine own before

she came—the tiny pride
I took in having gotten there

first, unzipping the case

that held his Bible all marked
in red, sundry passages

I’d never have to hear him

read again as I snooped
around last things—a drawing

made by a granddaughter, a card

their own son had signed, made.
An hour before, the mortician

joked that he too had had

an awful stepmom who sold off
the family business to

a corporation so she could

cash in with no regard
for her four leftover stepsons

all trained in the fine art

of embalming their own father.
My own dad having shrunk

three suit sizes, nothing

really fit, my stepmom
bitching about how much

a brand-new suit would cost

that she’d just as soon spend
on herself though at first

it sounded like a good idea

when his corpse was still warm
to the touch. What was left

of my father’s gray hair

had hairspray on it, the yellowed
skin on his skull and face

remarkably supple for

a nonagenerian—still looked
like my dad if one refused

to look head on. I felt mixed

about all those chemicals
they used to pickle him

but was glad he didn’t stink

when I pressed my lips against
his forehead when no one

was looking, even snapped

a selfie which actually
made me burst out crying—

final photo op both staged

and not, I grabbed a pen
and scribbled in my daddy’s

Bible, crossed out any mention

of my namesake Timothy—
“my true son in the faith!”

before my stepmom arrived

on the scene, the karmic
traces of everything I’d done

sealed inside a casket closing.

William Stafford – Sim

Pode acontecer a qualquer momento, tornado,
terremoto, Armageddon. Pode acontecer.
Ou luz solar, amor, salvação.

Pode acontecer, você sabe. É por isso que despertamos
e olhamos para fora – não há garantias
nesta vida.

Apenas alguns bônus: a manhã,
este instante, o meio-dia,
o entardecer.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Yes

It could happen any time, tornado,
earthquake, Armageddon. It could happen.
Or sunshine, love, salvation.

It could, you know. That’s why we wake
and look out – no guarantees
in this life.

But some bonuses, like morning,
like right now, like noon,
like evening.

Sean Thomas Dougherty – O Segundo O do Sofrimento

De alguma forma, ainda estou aqui, muito depois
dos rádios transístores, das fitas que meu pai tocava alto

dirigindo de cidade em cidade por Ohio,
vendendo coisas, a música que dançávamos

apenas para nos mantermos vivos. Percebo agora que não
deveria ter partido tão cedo, meio século

uma espécie de rocha que empurrei morro acima
& agora, por um momento, como Sísifo,

observo-a rolar.
Caminho pela neve.

Respiro o vento sujo do East Side
passando pela igreja russa, o odor

de peixes & cargueiros & da refinaria
preenchendo o vazio em meu peito — quantos anos

se acumularam desde que pela última vez cambaleei sobre o gelo
& me sentei para morrer?

Apenas para erguer os olhos para a geometria
do céu — & me levantar

para encarar quem quer que precisasse de mim —

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

The Second O of Sorrow

Somehow, I am still here, long after
transistor radios, the eight-tracks my father blared

driving from town to town across Ohio
selling things, the music where we danced

just to keep alive. I now understand I was not
supposed to leave so soon, half a century

a kind of boulder that I’ve pushed up the hill
& now for a moment, like Sisyphus

I watch it roll.
I walk through the snow.

I breathe the dirty East Side wind
pushing past the Russian church, the scent

of fish & freighters & the refinery
filling the hole in my chest—how many years

have piled since I last stumbled out onto the ice
& sat down to die.

Only to look up at the geometry
of sky—& stood

to face whoever might need me—

T. S. Eliot – Quatro Quartetos (Excertos): East Coker

Em meu princípio está meu fim. Uma após outras
As casas se levantam e tombam, desmoronam, são ampliadas,
Removidas, destruídas, restauradas, ou em seu lugar
Surgem um campo aberto, uma usina ou um atalho.
Velhas pedras para novas construções, velhas lenhas para novas chamas,
Velhas chamas em cinzas convertidas, e cinzas sobre a terra semeada,
Terra agora feita carne, pele e fezes,
Ossos de homens e bestar, trigais e folhas.
As casas vivem e morrem: há um tempo para construir
E um tempo para viver e conceber
E um tempo para o vento estilhaçar as trêmulas vidraças
E sacudir o lambril onde vagueia o rato silvestre
E sacudir as tapeçarias em farrapos tecidas com a silente legenda.

Em meu princípio está meu fim. Agora a luz declina
Sobre o campo aberto, abandonando a recôndita vereda
Cerrada pelos ramos, sombra na tarde,
Ali, onde te encolhes junto ao barranco, quando passa um caminhão,
E a recôndita vereda insiste
Rumo à aldeia, ao aquecimento elétrico
Hipnotizada. Na tépida neblina, a luz abafada
É absorvida, irrefratada, pela rocha cinzenta.
As dálias dormem no silêncio vazio.
Aguarda a coruja prematura.

A este campo aberto
Se não vieres muito perto, se muito perto não vieres,
À meia-noite de verão, poderás ouvir a música
Da tíbia flauta e do tambor pequenino
E vê-los a dançar ao redor do fogo
Homem e mulher ajuntados
Bailando na dança que celebra o matrimônio,
Esse dino e commodo sacramento.
Dous e dous, necessaria comunhãao,
Huus aos outros enleados pollo braço ou polla mãao,
Na dança que anumçia a comcordia. Girando e girando ao
redor do fogo
Saltando por entre as chamas, ou reunidos em círculos,
Rusticamente solenes ou em rústico alvoroço
Erguendo os pesados pés que rudes sapatos calçam
Pés de terra pés de barro, suspensos em campestre alegria,
Alegria dos que há muito repousam sob a terra
Nutrindo o trigo. Mantendo o ritmo
Mantendo o ritmo da sua dança
Como em suas vidas nas estações da vida
O tempo das estações e das constelações
O tempo da ordenha e o tempo da colheita
O tempo da cópula entre homem e mulher
E o das bestas. Pés para cima, pés para baixo,
Comendo e bebendo. Bosta e morte.

Desponta a aurora, e um novo dia
Para o silêncio e o calor se apresta. O vento da aurora
Desliza e ondula no mar alto. Estou aqui,
Ou ali, ou mais além. Em meu princípio.

(…)

III

Ó escuro escuro escuro. Todos mergulham no escuro,
Nos vazios espaços interestelares, no vazio que o vazio inunda,
Capitães, banqueiros, eminentes homens de letras,
Generosos mecenas de arte, estadistas e governantes,
Ilustres funcionários públicos, presidentes de vários comitês,
Magnatas da indústria e pequenos empreiteiros, todos
mergulham no escuro,
E escuros o Sol e a Lua, o Almanaque de Gotha,
A Gazeta da Bolsa, o Anuário dos Diretores,
E frio o sentido e perdido o fundamento da ação,
E todos os seguimos no silente funeral,
Funeral de ninguém, pois a ninguém há que enterrar.
Eu disse à minh’alma, fica tranquila, e deixa baixar o escuro sobre ti,
Pois que aí tudo será treva divina. Como num teatro,
As luzes se apagam para a troca de cenários
Com um côncavo ribombo de asas, com um movimento e
treva sobre treva,
E sabemos que as colinas e as árvores, o distante panorama
E a soberba fachada altiva estão sendo arrastados para longe
– Ou quando, no metrô, um trem se demora entre duas estações
E as conversas se animam e lentamente tombam no vazio
E vês por detrás de cada rosto aprofundar-se o vazio mental
Que semeia apenas o crescente terror de nada haver em que pensar;
Ou quando, sob o éter, o pensamento é consciente, mas
consciente de nada –
Eu disse à minh’alma, fica tranquila, e espera sem esperança
Pois a esperança seria esperar pelo equívoco; espera sem amor
Pois o amor seria amar o equívoco; contudo ainda há fé
Mas a fé, o amor e a esperança permanecem todos à espera.
Espera sem pensar, pois que pronta não estás para pensar:
Assim a treva em luz se tornará, e em dança há de o repouso se tornar.
Murmúrio de águas velozes e relâmpagos de inverno.
O irrevelado tomilho selvagem e os morangos silvestres.
O riso no jardim, êxtase repetido pelo eco
Jamis perdido, mas que reclama e persegue a agonia
Da morte e do nascimento.
Dirás que estou a repetir
Alguma coisa que antes já dissera. Tornarei a dizê-lo
Tornarei a dizê-lo? Para chegares até lá,
Para chegares onde estás, para saíres de onde não estás,
Deves seguir por um caminho onde o êxtase não medra.
Para chegares ao que não sabes
Deves seguir por um caminho que é o caminho da ignorância.
Para possuíres o que não possuis
Deves segur pelo caminho do despojamento.
Para chegares ao que não és
Deves cruzar pelo caminho em que não és.
E o que não sabes é apenas o que não sabes
E o que possuis é o que não possuis
E onde estás é onde não estás.

Trad.: Ivan Junqueira

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 23/02/2016

Rosemerry Wahtola Trommer – Névoa

E às vezes, quando me vejo
à margem de uma imensidão —
um lago, um mar, uma encosta de montanha —

minha pequenez me extasia
e a maior de minhas tristezas
diminui e fica menor que o espaço

entre grãos de areia,
e nesse instante,
conhecendo meu lugar,

surge em mim um amor tão grande
que posso amar qualquer pessoa, qualquer pessoa,
até a mim mesma.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Misty

And sometimes when I move
at the edge of a greatness—
a lake or a sea or a mountainside—

my insignificance thrills me
and the largest of my sadnesses
dwindles smaller than the space

between grains of sand
and in that moment,
knowing my place,

comes a love so enormous
I can love anyone, anyone,
even myself.

T. S. Eliot – Quatro Quartetos (Excertos): Burnt Norton

                                    I

O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo tempo é eternamente presente
Todo tempo é irredimível.
O que poderia ter sido é uma abstração
Que permanece, perpétua possibilidade,
Num mundo apenas de especulação.
O que poderia ter sido e o que foi
Convergem para um só fim, que é sempre presente.
Ecoam passos na memória
Ao longo das galerias que não percorremos
Em direção à porta que jamais abrimos
Para o roseiral. Assim ecoam minhas palavras
Em tua lembrança. 

Mas com que fim

Perturbam elas a poeira sobre uma taça de pétalas.
Não sei.

Outros ecos

Se aninham no jardim. Seguiremos?
Depressa, disse o pássaro, procura-os, procura-os
Na curva do caminho. Pela primeira porta,
Aberta ao nosso mundo primeiro, aceitaremos
A trapaça do tordo? Em nosso mundo primeiro.
Lá estavam eles, dignificados e invisíveis,
Movendo-se imponderáveis sobre as folhas mortas,
No calor do outono, através do ar vibrante,
E o pássaro cantou, em resposta
À inaudita música oculta na folhagem.
E um radiante olhar impressentido trespassou o espaço,
porque as rosas
Tinham aparência de flores contempladas.
Lá estavam eles, como nossos hóspedes, acolhidos e acolhedores.
Assim, caminhamos, lado a lado, em solene postura,
Ao longo da alameda deserta, rumo à cerca de bruxos,
Para mergulhar os olhos no tanque agora seco.
Seco o tanque, concreto seco, calcinados bordos,
E o tanque inundado pela água da luz solar,
E os lótus se erguiam, docemente, docemente,
A superfície flamejou no coração da luz,
E eles atrás de nós, refletidos no tanque.
Passou então uma nuvem, e o tanque esvaziou.
Vai, disse o pássaro, porque as folhas estão cheias de crianças,
Maliciosamente escondidas, a reprimir o riso.
Vai, vai, vai, disse o pássaro: o gênero humano
Não pode suportar tanta realidade.
O tempo passado e o tempo futuro,
O que poderia ter sido e o que foi,
Convergem par aum só fim, que é sempre presente.

(…)

Trad.: Ivan Junqueira

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 23/02/2016

Ada Limón – Resgate

No cume do Monte Pisgah, na encosta
oeste das Mayacamas, há uma madrone,
meio queimada pelas chamas, meio viva
pela urgência natural de perpetuar-se. Um lado
é cinza escuro, e em sua raiz há o que
parece ser uma cavidade escavada pelo fogo.
Do outro lado, brotos verde-prateados de folhas largas
ascendem em direção à luz invernal
e sua casca é uma mescla entre o cavalo-baio
e o alazão, vermelha e aveludada
como o pescoço do animal que ela evoca.
Fitando a árvore demoradamente, lembro-me
da integridade que tinha antes de ser queimada
pelo tempo. Sinto falta de quem eu era, de quem todos éramos
antes de sermos isso: meio vivos para o céu que clareia,
mas já meio mortos. Pouso minha mão sobre a casca
sem cicatrizes, fresca e intocada, e porque não posso
pedir desculpas à árvore, a mim mesma digo: lamento.
Lamento ter sido tão imprudente com sua vida.

Trad.: Nelson Santander Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Salvage

On the top of Mount Pisgah, on the western
slope of the Mayacamas, there’s a madrone
tree that’s half-burned from the fires, half-alive
from nature’s need to propagate. One side
of her is black ash, and at her root is what
looks like a cavity hollowed out by flame.
On the other side, silvery-green broadleaf
shoots ascend toward the winter light
and her bark is a cross between a bay
horse and a chestnut horse, red and velvety
like the animal’s neck she resembles. Staring
at the tree for a long time now, I am reminded
of the righteousness I had before the scorch
of time. I miss who I was. I miss who we all were,
before we were this: half-alive to the brightening sky,
half-dead already. I place my hand on the unscarred
bark that is cool and unsullied, and because I cannot
apologize to the tree, to my own self I say, I am sorry.
I am sorry I have been so reckless with your life.