Eavan Boland – Chegamos sempre tarde demais

A memória
tem duas partes.

Primeiro, a revisitação:

o modo como ainda posso ver
aqueles amantes à mesa do café. Ela chora.

Nova Inglaterra. Hora do café da manhã. Inverno. Atrás dela,
além da janela panorâmica,
um bosque de pinheiros brancos.

Neve nova cai, e a antiga,
perdendo o equilíbrio nos ramos,
se desprende em fragmentos,
acrescendo novas frações. Depois,

a reencenação. Sempre a mesma coisa.
Eu me levanto, afasto
o café. E sempre estou indo até ela.

O rubor e o ardor coram
sua fronte agora, e descem pelo pescoço.

Ergo uma das mãos. Aponto para
aquelas árvores, mostro a ela nossa necessidade dessas
belas superações do
que sofremos pelo
que sobrevive. E ela nunca sequer me vê.

Trad.: Nelson Santander

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We are always too late

Memory
is in two parts.

First, the revisiting:

the way even now I can see
those lovers at the café table. She is weeping.

It is New England, breakfast time, winter. Behind her,
outside the picture window, is
a stand of white pines.

New snow falls and the old,
losing its balance in the branches,
showers down,
adding fractions to it. Then

the reenactment. Always that.
I am getting up, pushing away
coffee. Always, I am going towards her.

The flush and scald is
to her forehead now, and back down to her neck.

I raise one hand. I am pointing to
those trees, I am showing her our needs for these
beautiful upstagings of
what we suffer by
what what survives. And she never even sees me.

Eavan Boland – Âmbar

Nunca importou que houvesse outrora um vasto lamento:

árvores nas colinas, nos bosques, chorando —
um ouro fluido vertendo

até o chão através das estações e dos séculos —
até agora.

Nesta amena tarde de setembro, da qual você está ausente,
seguro, como se minha mão pudesse retê-lo,
um ornamento de âmbar

que um dia você me deu.

A razão diz:
Os mortos não podem ver os vivos.
Os vivos nunca verão os mortos novamente.

O ar límpido de que precisávamos para nos encontrar
se perdeu para sempre, e ainda assim

esta resina um dia
recolheu sementes, folhas, e até pequenas penas, enquanto caía
e caía.

Agora, sob a luz do sol, elas parecem tão vivas quanto
sempre foram,

como se o passado se tornasse o presente e a própria memória
um mel báltico —

um desgaste nas margens do visível, uma prova do quanto
pode ser preservado

dentro de uma imperfeita translucidez.

Trad.: Nelson Santander

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Amber

It never mattered that there was once a vast grieving:

trees on their hillsides, in their groves, weeping—
a plastic gold dropping

through seasons and centuries to the ground—
until now.

On this fine September afternoon from which you are absent
I am holding, as if my hand could store it,
an ornament of amber

you once gave me.

Reason says this:
The dead cannot see the living.
The living will never see the dead again.

The clear air we need to find each other in is
gone forever, yet

this resin once
collected seeds, leaves and even small feathers as it fell
and fell

which now in a sunny atmosphere seem as alive as
they ever were

as though the past could be present and memory itself
a Baltic honey—

a chafing at the edges of the seen, a showing off of just how much
can be kept safe

inside a flawed translucence.

Eavan Boland – Brasas

Em uma noite de inverno, quando uma geada cortante
fazia as trilhas entre os tojais estalarem sob os pés,
uma desventurada mulher, olhos arregalados, cabelos em desalinho,
chegou ao lugar onde os Fianna1 haviam montado acampamento.

Tua face é de sombra. Estás lendo.
Ainda há calor na fogueira. Estou lendo:

Ela pediu a cada um deles, por sua vez,
que a levasse para sua cama, que a abrigasse com seu corpo.
Cada um a olhou — ela era velha além dos anos.
Cada um a recusou, cada um a repeliu, exceto Diarmuid.

Quando ele acordou pela manhã, ela era jovem e bela.
E era dele, para sempre, mas com uma condição:
ele não poderia dizer que ela já fora velha e abatida.
Ele não poderia dizer que ela jamais tinha sido… aqui eu levanto o olhar.

Estás de costas. Não tens interesse nisso.

Fiz essa fogueira com a primeira turfa do inverno.
Olha-me sob a última luz polida dela.
Diz-me que ainda sentes o calor.
Diz-me que nunca falarás sobre as cinzas.

Trad.: Nelson Santander

  1. O poema faz referência a uma lenda do ciclo mitológico irlandês conhecido como Ciclo Feniano (ou Ciclo Ossiânico). Diarmuid Ua Duibhne era um guerreiro dos Fianna, um grupo de heróis liderados por Fionn mac Cumhaill na Irlanda antiga. A passagem alude ao encontro de Diarmuid com uma mulher idosa e miserável que pede abrigo aos guerreiros, sendo rejeitada por todos, exceto por ele. Em algumas interpretações, essa figura pode ser associada ao motivo mitológico da Soberania — uma personificação da terra da Irlanda, que testa os heróis aparecendo primeiro como uma velha horrenda (cailleach) antes de revelar sua verdadeira forma como uma jovem bela. Esse padrão narrativo, comum na mitologia celta, simboliza a aliança entre o herói digno e a terra/soberania. A condição imposta a Diarmuid — nunca mencionar sua aparência anterior — representa a lealdade e discrição exigidas em relações de confiança. No poema de Boland, essa história mítica serve como metáfora para relacionamentos contemporâneos, sugerindo as complexidades da memória, do envelhecimento e da intimidade. ↩︎

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Embers

One night in winter when a bitter frost
made the whin-paths crack underfoot,
a wretched woman, eyes staring, hair in disarray,
came to the place where the Fianna had pitched camp.

Your face is made of shadow. You are reading.
There is heat from the fire still. I am reading:

She asked every one of them in turn
to take her to his bed, to shelter her with his body.
Each one looked at her — she was old beyond her years.
Each one refused her, each spurned her, except Diarmuid.

When he woke in the morning she was young and beautiful.
And she was his, forever, but on one condition.
He could not say that she had once been old and haggard.
He could not say that she had ever … here I look up.

You are turned away. You have no interest in this.

I made this fire from the first peat of winter.
Look at me in the last, burnished light of it.
Tell me that you feel the warmth still.
Tell me you will never speak about the ashes.

Eavan Boland – Anna Liffey

Contava-se que Life
Era filha de Canaã,
E chegou à planície de Kildare.
Amava as planícies e as valas
E o horizonte distante.
Pediu que dessem seu nome ao lugar.
O rio herdou o nome da terra.
A terra herdou o nome de uma mulher.

Uma mulher na porta de uma casa.
Um rio na cidade onde nasceu.

Lá, nas colinas acima da minha casa,
O rio Liffey brota, é nascente.
Surgindo entre junco e urze, na turfa
Negra e nas samambaias, ganha força
Para reivindicar a cidade que narrou.
Cisnes. Quedas abruptas. Pequenas cidades.
O ar manchado e as pontes de Dublin.

O crepúsculo se aproxima.
A chuva avança do leste, vinda das colinas.

Se eu pudesse me ver,
Veria
Uma mulher na soleira,
Vestindo as cores que combinam com cabelos ruivos.
Embora meus cabelos já não sejam ruivos.

Eu louvo
As dádivas do rio.
Seu brilho errante
Seu recontar cintilante da cidade,
Sua claridade ao fluir,
Na companhia de flores rasteiras e garças,
Contornando uma curva em Islandbridge
E passando sob treze pontes até o mar.
Sua paciência ao crepúsculo –
Cisnes aninhando-se em suas margens,
Neon tremeluzindo em suas águas.

Forjador de
Lugares, memórias,
Narre para mim tais fragmentos:

Um corpo. Um espírito.
Um lugar. Um nome.
A cidade onde nasci.
O rio que a atravessa.
A nação que me escapa.

Frações de uma vida
Que levei uma vida inteira
Para reivindicar.

Cheguei aqui em um inverno frio.

Não tinha filhos. Nem país.
Eu não sabia o nome da minha própria vida.

Meu país me tomou.
Meus filhos nasceram.

Saí em um crepúsculo de verão
Para chamá-los.

Um nome. Depois o outro.
As belas vogais soando como lar.

Faça de uma nação o que quiser
Faça do passado
O que puder –

Agora há
Uma mulher na soleira.

Foi preciso
Todas as minhas forças para chegar aqui.

Tornar-me uma personagem em um poema.

Usurpar um nome e um tema.

Um rio não é uma mulher.
      Embora os nomes que encontra,
              A história que faz
E que sofre –
      as lâminas vikings1 em suas margens,
               Os mosquetes dos Casacos Vermelhos2,
                       As chamas das Four Courts3
Ardendo sobre ele –
      Sejam um sinal.
            Assim como
Uma mulher não é um rio,
      Embora o curso que toma,
            Entre cisnes cortejando-se e salgueiros desolados,
Sua paciência,
      Que é também sua impotência,
            De Callary a Isladbridge,
                  Da nascente à foz,
Seja outro.
                          E em meus quarenta e poucos anos
Já sem crer
      Que o amor irá curar
            O que a linguagem falha em conhecer
E precisa dizer –
      O que o corpo significa –
            Eu tomo este sinal
E faço esta marca:
      Uma mulher na soleira de sua casa.
            Um rio na cidade em que ela nasceu.
A verdade de uma vida sofrida.
      A foz dela.

As aves marinhas chegam da costa.
Dizem na cidade que elas trazem chuva.
Eu as observo da soleira.
Vejo nelas argumentos de origem –
Deixam uma força severa no horizonte
Apenas para encontrá-la
Inclinando-se e caindo em outro lugar.

Qual das águas –
A que deixam ou a que anunciam –
Lembra a outra?

Estou certa
De que o corpo de uma mulher que envelhece
É uma memória
E encontrar-lhe uma linguagem
É tão árduo
Quanto chorar e exigir
Que essas aves protestem como se pudessem
Reconhecer seu elemento
Relembrado e reduzido a
Uma única lágrima.

Uma mulher que envelhece
Não encontra refúgio na linguagem.
Em vez disso, descobre
Que palavras que um dia amou,
Como ‘verão’ e ‘amarelo’
E ‘sexual’ e ‘pronta’
Subitamente se tornaram moradas
Para outra pessoa –
Quartos e um teto sob o qual outro
É bem-vindo, não ela. Diga-me,
Anna Liffey,
Espírito da água,
Espírito do lugar,
O que resta nesta
Noite chuvosa de outono,
Enquanto o mar irlandês recolhe
Os nomes que você criou, os nomes
Que você concedeu, e lhe devolve
Apenas a ausência de palavras?

A chuva de outono
Se espalha e goteja
Dos toldos
E das sebes podadas.
As calhas estão cheias.

Quando aqui cheguei
Não tinha
Filhos nem país.
As árvores eram braços.
As colinas eram sonhos.

Eu era livre
Para imaginar um espírito
Nos azuis e verdes,
Nas colinas e neblinas
De uma pequena cidade.

Meus filhos nasceram.
Meu país me tomou.
Uma visão em uma casa de tijolos.
É só o amor
Que faz um lugar?

Sinto-o mudar.
Meus filhos estão
Crescendo, envelhecendo.
Meu país se agarra
À sua própria dor.

Apago
A luz amarela e dura
Da varanda e
Permaneço no corredor.
Onde está meu lar agora?

Siga a chuva
Até as colinas de Dublin.
Deixe-a tornar-se o rio.
Deixe que o espírito do lugar se torne
De novo uma alma errante.

No final,
Não importará
Que eu tenha sido mulher. Estou certa disso.
O corpo é uma nascente. Nada mais.
Há um tempo para ele. Há uma certeza
No modo como busca sua própria dissolução.
Considere os rios.
Eles estão sempre a caminho
De seu próprio nada. Desde o primeiro instante,
Estão indo para casa. E assim,
Quando a linguagem não consegue fazer isso por nós,
Não pode nos fazer saber que o amor não nos diminuirá,
Há essas frases
Do oceano
Para nos consolar.
Particulares e destemidas em sua plenitude.
No final,
Tudo o que me sobrecarregou e me distinguiu
Se perderá nisto:
Eu fui uma voz.

Trad.: Nelson Santander

  1. Referem-se às espadas utilizadas pelos vikings, povos nórdicos que realizaram expedições de pilhagem e colonização por grande parte da Europa durante a Idade Média. A menção dessas lâminas no contexto do poema sugere a longa história e as violências que a Irlanda, e por extensão o rio Liffey, testemunharam ao longo dos séculos. ↩︎
  2. Uma alusão aos soldados britânicos, que eram chamados de “Casacos Vermelhos” devido ao uniforme vermelho que usavam. A presença desses mosquetes indica os conflitos entre a Irlanda e a Inglaterra, culminando em diversas guerras e revoltas, como a Rebelião Pascoal de 1798. ↩︎
  3. The Four Courts (“Quatro Tribunais”, em tradução livre): trata-se dos edifícios dos tribunais de Dublin, que foram incendiados durante a Guerra da Independência da Irlanda em 1922. Esse evento marcou um dos momentos mais violentos da luta pela independência irlandesa e causou grandes danos à cidade. ↩︎

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Anna Liffey

Life, the story goes,
Was the daughter of Canaan,
And came to the plain of Kildare.
She loved the flat-lands and the ditches
And the unreachable horizon.
She asked that it be named for her.
The river took its name from the land.
The land took its name from a woman.

A woman in the doorway of a house.
A river in the city of her birth.

There, in the hills above my house,
The river Liffey rises, is a source.
It rises in rush and ling heather and
Black peat and bracken and strengthens
To claim the city it narrated.
Swans. Steep falls. Small towns.
The smudged air and bridges of Dublin.

Dusk is coming.
Rain is moving east from the hills.

If I could see myself
I would see
A woman in a doorway
Wearing the colours that go with red hair.
Although my hair is no longer red.

I praise
The gifts of the river.
Its shiftless and glittering
Re-telling of a city,
Its clarity as it flows,
In the company of runt flowers and herons,
Around a bend at Islandbridge
And under thirteen bridges to the sea.
Its patience at twilight –
Swans nesting by it,
Neon wincing into it.

Maker of
Places, remembrances,
Narrate such fragments for me:

One body. One spirit.
One place. One name.
The city where I was born.
The river that runs through it.
The nation which eludes me.

Fractions of a life
It has taken me a lifetime
To claim.

I came here in a cold winter.

I had no children. No country.
I did not know the name for my own life.

My country took hold of me.
My children were born.

I walked out in a summer dusk
To call them in.

One name. Then the other one.
The beautiful vowels sounding out home.

One name. Then the other one.
The beautiful vowels sounding out home.

Make of a nation what you will
Make of the past
What you can –

There is now
A woman in a doorway.

It has taken me
All my strength to do this.

Becoming a figure in a poem.

Usurping a name and a theme.

A river is not a woman.
Although the names it finds,
The history it makes
And suffers –
The Viking blades beside it,
The muskets of the Redcoats,
The flames of the Four Courts
Blazing into it
Are a sign.
Any more than
A woman is a river,
Although the course it takes,
Through swans courting and distraught willows,
Its patience
Which is also its powerlessness,
From Callary to Isladbridge,
And from source to mouth,
Is another one.
And in my late forties
Past believing
Love will heal
What language fails to know
And needs to say –
What the body means –
I take this sign
And I make this mark:
A woman in the doorway of her house.
A river in the city of her birth.
The truth of a suffered life.
The mouth of it.

The seabirds come in from the coast.
The city wisdom is they bring rain.
I watch them from my doorway.
I see them as arguments of origin –
Leaving a harsh force on the horizon
Only to find it
Slanting and falling elsewhere.

Which water –
The one they leave or the one they pronounce –
Remembers the other?

I am sure
The body of an ageing woman
Is a memory
And to find a language for it
Is as hard
As weeping and requiring
These birds to cry out as if they could
Recognise their element
Remembered and diminished in
A single tear.

An ageing woman
Finds no shelter in language.
She finds instead
Single words she once loved
Such as ‘summer’ and ‘yellow’
And ‘sexual’ and ‘ready’
Have suddenly become dwellings
For someone else –
Rooms and a roof under which someone else
Is welcome, not her. Tell me,
Anna Liffey,
Spirit of water,
Spirit of place,
How is it on this
Rainy autumn night
As the Irish sea takes
The names you made, the names
You bestowed, and gives you back
Only wordlessness?

Autumn rain is
Scattering and dripping
From car-ports
And clipped hedges.
The gutters are full.

When I came here
I had neither
Children nor country.
The trees were arms.
The hills were dreams.

I was free
To imagine a spirit
In the blues and greens,
The hills and fogs
Of a small city.

My children were born.
My country took hold of me.
A vision in a brick house.
Is it only love
That makes a place?

I feel it change.
My children are
Growing up, getting older.
My country holds on
To its own pain.

I turn off
The harsh yellow
Porch light and
Stand in the hall.
Where is home now?

Follow the rain
Out to the Dublin hills.
Let it become the river.
Let the spirit of place be
A lost soul again.

In the end
It will not matter
That I was a woman. I am sure of it.
The body is a source. Nothing more.
There is a time for it. There is a certainty
About the way it seeks its own dissolution.
Consider rivers.
They are always en route to
Their own nothingness. From the first moment
They are going home. And so
When language cannot do it for us,
Cannot make us know love will not diminish us,
There are these phrases
Of the ocean
To console us.
Particular and unafraid of their completion.
In the end
Everything that burdened and distinguished me
Will be lost in this:
I was a voice.

Eavan Boland – A douradora

Ela amava prata, ela amava ouro,
minha mãe. Ela falava sobre a influência
dos metais, a congruência dos átomos,
as aulas de arte onde aprendera
essas coisas: imagine só
ela me dizia ao contar
que, para dourar qualquer superfície, um mestre artesão
precisava fundir ouro com mercúrio,
aquecer os dois para que um se tornasse volátil,
o outro não,
e para fazer direito
tinha que separá-los e então
queimar, queimar, queimar o mercúrio
até que desaparecesse, deixando para trás
uma camada de luz. O único problema, acrescentou —
mas o que disse depois eu esqueci.

O que ela passou uma vida esquecendo
poderia ser meu tema:
as aldeotas muradas de Leinster,
os vilarejos costeiros onde a linguagem
do mar era transmitida,
frases feridas por tormentas,
por naufrágios. Mas não é.
Meu tema é o papel do desejo
na forma como os vilarejos são feitos
para desaparecer, na forma como aprendi
a separar memória de conhecimento,
então um era volátil, o outro não,
e como comecei a escrever,
luz ardente,
gerando calor até que de repente
eu era a douradora
pronta para espalhar esplendor,
pronta para decorar aconteceu
com nunca aconteceu quando
de repente lembro o que foi
que ela disse: o único problema é que
é extremamente perigoso.

Trad.: Nelson Santander

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The Fire Gilder

She loved silver, she loved gold,
my mother. She spoke about the influence
of metals, the congruence of atoms,
the art classes where she learned
these things: think of it
she would say as she told me
to gild any surface a master craftsman
had to meld gold with mercury,
had to heat both so one was volatile,
one was not
and to do it right
had to separate them and then
burn, burn, burn mercury
until it fled and left behind
a skin of light. The only thing, she added—
but what came after that I forgot.

What she spent a lifetime forgetting
could be my subject:
the fenced-in small towns of Leinster,
the coastal villages where the language
of the sea was handed on,
phrases bruised by storms,
by shipwrecks. But isn’t.
My subject is the part wishing plays in
the way villages are made
to vanish, in the way I learned
to separate memory from knowledge,
so one was volatile, one was not
and how I started writing,
burning light,
building heat until all at once
I was the fire gilder
ready to lay radiance down,
ready to decorate it happened
with it never did when
all at once I remember what it was
she said: the only thing is
it is extremely dangerous.

Eavan Boland – Quarentena

Na pior hora da pior estação
do pior ano de todo um povo
um homem partiu do internato com a mulher
Ele andava – ambos andavam – para o norte

Ela tinha a febre da fome e não se aguentava.
Ele a ergueu e a pôs nas costas.
Andou assim para oeste e oeste e norte. Até que
ao anoitecer sob estrelas congeladas chegaram.

De manhã ambos foram encontrados mortos.
De frio. De fome. Das toxinas de toda uma história.
Mas os pés dela estavam aninhados no peito dele.
O calor final de sua carne foi seu presente para ela.

Nunca deixe um poema de amor chegar a esse fim.
Não há lugar aqui para o inexato
Elogio à graça leve e sensual do corpo.
Há tempo apenas para esse impiedoso inventário:

Sua morte juntos no inverno de 1847.
Também o que sofreram. Como viveram.
E o que há entre um homem e uma mulher.
E em qual treva se pode provar melhor.

Trad.: Mario Sergio Conti

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 12/05/2020

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Sobre o poema e sua autora:

Da Folha: Conheça ‘Quarentena’, poema de Eavan Boland, sobre a Grande Fome

“Eavan Boland ensinou inglês na Universidade Stanford por 21 anos. Com a pandemia, ela quis ficar perto das filhas e netos. Voltou no mês passado da Califórnia para a Irlanda e, pelo computador, continuou a dar aulas sobre literatura irlandesa. Até a segunda-feira passada.

Acordou, teve um infarto e morreu à tarde, em Dublin. Tinha 75 anos. Do presidente do país aos meios literários, houve comoção. Ela não é popular porque nenhum poeta o é mais: poesia virou arte de elite.

Mas foi uma voz incisiva, sensível à história e à condição feminina no presente.

Não é pouco. Sobretudo numa terra de escritores arquiconhecidos —Swift, Sterne, Yeats, Shaw, Wilde, Joyce, Beckett, Heaney. Todos eles tensionados pela história da Irlanda, por sua vez marcada pela posição subalterna e atritos com o Reino Unido. Todos eles homens.

Eavan Boland começou a escrever cedo e sua poesia amadureceu devagar. Filha de diplomata, teve uma infância cosmopolita em Londres e Nova York. A volta à Irlanda, insular, foi um estranhamento.

Frequentava rodas literárias em Dublin, mas casou e foi morar num subúrbio pacato.

Teve duas filhas e, como todas as suas vizinhas, cuidava da casa e da família. Contudo, professora, ensaísta e poeta, não era bem como elas. Os terremotos dos anos 1960 não a tiraram do prumo. O primeiro feminismo, um pouco. E a obra de Sylvia Plath, totalmente.

Sua poesia adquiriu aos poucos contundência. Fez versos sobre casamento, menstruação, criar as filhas, mastectomia. Em “Violência Doméstica” e “Uma Mulher sem País”, fez algo meio impossível: foi crítica e convencional, sentimental e seca, evidente e elíptica.

“Quarentena”, de 2001, seu poema mais conhecido, embebe em ácido uma chaga aberta da história irlandesa. E, na forma, se insurge contra a imagem feminina na poesia romântica. É singular, estranho, belo.

Nele, a pior hora é a noturna. A estação letal, o inverno. O ano horrível, 1847. Foi o auge da Grande Fome. Uma praga dizimou todas as plantações de batata da Irlanda, alimento básico dos camponeses empobrecidos e endividados. Ou seja, da maioria acachapante do povo.

Explorados pela aristocracia e hostilizados pela Coroa, durante anos os irlandeses padeceram de fome, frio, epidemias várias. Mais de 1 milhão de pessoas pereceram, 20% da população. Outro milhão emigrou.

A ilha de esmeralda regrediu à treva medieval da peste negra.

Foi o maior desastre sanitário, demográfico e humanitário do século 19. O crítico literário Terry Eagleton —neto de imigrantes irlandeses— chamou-o de “Auschwitz irlandês”, mas pré-moderno. As raízes do nacionalismo, da religiosidade fanática e da luta violenta pela independência estão fincadas na Grande Fome.

“Quarentena” começa com um casal que foge das autoridades. A mulher teve tifo (“famine fever”) e o marido a carrega pela noite gelada até que chegam —e o poema não diz onde. São encontrados enregelados, paralisados num último gesto: ele tenta aquecer os pés dela em seu peito.

Eavan Boland aí se insurge contra poemas de amor, contra o romantismo galante que põe a mulher no pedestal de musa. Seu impiedoso inventário registra a fuga, a dor, o frio. Monossílabos sincopados politizam o amor mudo de um casal, sua busca inútil por calor na escuridão.

Em “Quarentena”, o que sobrevive ao homem e à mulher não é apenas o amor —como em “An Arundel Tomb”, de Philip Larkin. É a Grande Fome, a sociedade que a produziu, da história irlandesa que vem de 1847 e molda o presente. Cinco estrofes condensam a catástrofe.

Eavan Boland reviveu e deu forma ao passado. Inspirou-se em meia dúzia de frases de uma memória da Grande Fome, escrita por um padre no início do século 20. “Minha Própria História”, o livro, dá até o nome dos jovens do poema, Kit e Patrick.

Há uma longa discussão na Irlanda acerca da representação da Grande Fome. Tem-se como assente que ela foi sub-representada: existem poucos romances, peças, poesias, filmes a seu respeito. A sub-representação se estenderia à historiografia, à economia e à sociologia.

Parece ser verdade. Porque a Grande Fome é pouco conhecida fora de lá. Isso se deve mais ao presente que ao passado. Na indústria cultural, por exemplo, Hollywood venceu a Segunda Grande Guerra. Para cada Svetlana Aleksiévitch há cem Spielbergs.

Há infindáveis imagens da peste que hoje engolfa o Brasil. Boa parte delas é chocante, mas vazia. A poesia política pode representar as toxinas de toda uma história?”

Quarantine

In the worst hour of the worst season
of the worst year of a whole people
a man set out from the workhouse with his wife.
He was walking—they were both walking—north.

She was sick with famine fever and could not keep up.
He lifted her and put her on his back.
He walked like that west and west and north.
Until at nightfall under freezing stars they arrived.

In the morning they were both found dead.
Of cold. Of hunger. Of the toxins of a whole history.
But her feet were held against his breastbone.
The last heat of his flesh was his last gift to her.

Let no love poem ever come to this threshold.
There is no place here for the inexact
praise of the easy graces and sensuality of the body.
There is only time for this merciless inventory:

Their death together in the winter of 1847.
Also what they suffered. How they lived.
And what there is between a man and woman.
And in which darkness it can best be proved.

Eavan Boland – Atlântida – Um soneto perdido

Como diabos aconteceu, eu costumava me perguntar,
de uma cidade inteira – arcos, pilares, colunatas,
isso sem falar nos veículos e animais – ter-se,
um belo dia, afundado?

Ou melhor, eu disse a mim mesma, o mundo era pequeno então.
É sem dúvida que uma grande cidade possa ter-se perdido?
Sinto falta de nossa velha cidade –

pimenta branca, pudim branco, você e eu nos reunindo
sob os vitrais em arco e o céu baixo para voltar para casa. Talvez
o que realmente aconteceu foi

o seguinte: os velhos fabricantes de fábulas procuraram arduamente por uma palavra
que transmitisse que o que se foi se foi para sempre, e
nunca a encontraram. E assim, nas melhores tradições de

onde viemos, eles deram um nome à sua dor e a afogaram.

Atlantis – A Lost Sonnet

How on earth did it happen, I used to wonder
that a whole city – arches, pillars, colonnades,
not to mention vehicles and animals – had all
one fine day gone under?

I mean, I said to myself, the world was small then.
Surely a great city must have been missed?
I miss our old city –

white pepper, white pudding, you and I meeting
under fanlights and low skies to go home in it. Maybe
what really happened is

this: the old fable-makers searched hard for a word
to convey that what is gone is gone forever and
never found it. And so, in the best traditions of

where we come from, they gave their sorrow a name and drowned it.

Eavan Boland – Cartas aos mortos

I

Estudiosos do Império Antigo encontraram cerâmicas
gravadas por toda parte com marcas e sinais.

II

Escritos em louças de lodo. Nas bordas dos vasos.
Colocados na entrada dos túmulos.
O vermelho do ferro de um mundo.
Postado no limiar de outro.
Chamaram-nas de cartas aos mortos.

III

Eles não choravam ou se lamentavam por meio destas marcas e sinais.
Eles eram intimistas, suplicantes, desesperados, locais.

IV

Aqui, no limiar de uma primavera irlandesa
que você não pode mais ver,
arbustos de espinheiros com suas
pequenas flores de marfim
em breve ganharão vida em cada vento. Em breve,
cada encosta será uma noiva distante.

V

Se eu pudesse escreve-la de uma maneira diferente,
a história secreta de um lugar,
como se fosse uma história de águas ocultas, percebidas apenas
pela estranha acústica de um riacho sob os pés
na grama baixa
seria esta –
esta história.

VI

Eu queria trazer-lhe prendas da ilha,
o espinheiro da última semana de abril,
a vista do Liffey acima de Leixlip.
Os salgueiros ali poderiam ser meninas,
seus cabelos ainda molhados depois de um mergulho.
Em vez disso, trouxe-lhe indagações.

VII

Quantas filhas ficaram sozinhas em um túmulo,
e pensaram isto das vidas de suas mães?
Que elas eram jovens em um país que odiava o corpo da mulher.
Que envelheceram em um país que odiava o corpo da mulher.

VIII

Eles pediam conselhos aos mortos.
Eles pediam poder aos mortos.
Estas são as minhas cartas aos mortos.

Trad.: Nelson Santander

N. do T.: Letters to the Dead foi publicado na obra Domestic Violence (2007), e integra a Seção com o mesmo nome, da qual faz parte também, dentre outros, o poema And Soul, já traduzido e publicado neste blog (E alma).

Letters to the Dead

I

In the Old Kingdom scholars found pottery
written round and around with signs and marks.

II

Written in silt ware. On the rims of bowls.
Laid at the entrance to tombs.
Red with the iron of one world.
Set at the threshold of another.
They called them letters to the dead.

III

They did not mourn or grieve these signs or marks.
They were intimate, imploring, local, desperate.

IV

Here at the threshold of an Irish spring
you can no longer see,
hawthorn bushes with their
small ivory flowers
will soon come alive in every wind. Soon,
every hillside will be a distant bride.

V

If I could write it differently,
the secret history of a place,
as if it were a story of hidden water, known only
through the strange acoustic of a stream underfoot
in shallow grass
it would be this –
this story.

VI

I wanted to bring you the gifts of the island,
the hawthorn in the last week of April,
the sight of the Liffey above Leixlip.
The willows there could be girls,
their hair still wet after a swim.
Instead, I have brought you a question.

VII

How many daughters stood alone at a grave,
and thought this of their mothers’ lives?
That they were young in a country that hated a woman’s body.
That they grew old in a country that hated a woman’s body.

VIII

They asked for the counsel of the dead.
They asked for the power of the dead.
These are my letters to the dead.

Eavan Boland – E alma

Minha mãe morreu em um verão —
o mais úmido nos registros do Estado.
Safras apodreciam no oeste.
Toalhas de mesa xadrez dissolviam-se nos jardins.
Cadeiras de praia vazias recolhiam a chuva.
Enquanto eu me dirigia até ela
no trânsito, por entre lilases que gotejavam sombriamente
atrás das casas
e nas calçadas, para prestar-lhe
a última homenagem de uma filha, pensei em algo
que lembrei de
ter ouvido uma vez, que o corpo é, ou
diz-se ser, quase todo feito de
água e ao virar para o sul, ao qual
pertence nossa cidade,
na qual
todo santo dia os elementos começam
uma jornada uns em direção aos outros que nunca,
dado o nosso clima,
falha —
o oceano visível nas bordas recortadas por ele,
a cor da nuvem alcançando a atmosfera,
o Liffey* armazenando um e convocando a outra,
o sal saudando a falta disso no North Wall** e,
como se isso não fosse o suficiente, tudo
terminando quase todas as noites
no centro de nossas conversas —
costa canal oceano rio corrente e agora
mãe e eu seguimos em frente e, embora
a mente não seja confiável no luto, no
aguaceiro próximo quase parecia
que eles poderiam ser a sombra um do outro
do mesmo modo que o corpo é
de cada qual, mas agora
eles estavam novamente em movimento — a névoa na neblina,
a neblina na maresia e ambos no esmalte oleoso
que jazia nas grades
da casa onde ela estava morrendo
quando entrei.

Trad.: Nelson Santander

* O Liffey é um rio no leste da Irlanda que atravessa o centro da cidade de Dublin até sua foz, na Baía daquela cidade.

** Nort Wall: bairro situado do lado norte de Dublin, ao longo do rio Liffey.

And Soul

My mother died one summer—
the wettest in the records of the state.
Crops rotted in the west.
Checked tablecloths dissolved in back gardens.
Empty deck chairs collected rain.
As I took my way to her
through traffic, through lilacs dripping blackly
behind houses
and on curbsides, to pay her
the last tribute of a daughter, I thought of something
I remembered
I heard once, that the body is, or is
said to be, almost all
water and as I turned southward, that ours is
a city of it,
one in which
every single day the elements begin
a journey towards each other that will never,
given our weather,
fail—
the ocean visible in the edges cut by it,
cloud color reaching into air,
the Liffey storing one and summoning the other,
salt greeting the lack of it at the North Wall and,
as if that wasn’t enough, all of it
ending up almost every evening
inside our speech—
coast canal ocean river stream and now
mother and I drove on and although
the mind is unreliable in grief, at
the next cloudburst it almost seemed
they could be shades of each other,
the way the body is
of every one of them and now
they were on the move again—fog into mist,
mist into sea spray and both into the oily glaze
that lay on the railings of
the house she was dying in
as I went inside.

Eavan Boland – O barógrafo

Encontrei-o no cais,
um retângulo de madeira,
um barógrafo, a pena de sua haste rabiscando o papel.

Eu o trouxe para casa para ser
um registro dos ventos,
da pressão crescente,

apto a escrever a sina barométrica
do nosso cotidiano
em um mundo onde

carrinhos de livros levados pelo vento junto ao rio
prometiam palavras selvagens
mas obedeciam ao censor.

Os Bancos em College Green
registravam as Libras nos livros-caixa,
e os centavos à margem.

Enquanto isso, caminhávamos
por estradas velhas,
os olmos morrendo sobre nós. Então,

um outro tempo chegou: nossas telas
se encheram de ceias fúnebres
que assistimos em silêncio,

cada um de nós sentindo
que o que foi mudado
foi mudado para sempre. Ainda assim,

todos os dias a página era riscada,
a pena sempre pronta para ser
o que sempre foi:

escriba de nosso clima irlandês,
sem conhecer sofrimentos, apenas
o tempo que abria, fechava,

abria. Incapaz de compreender os eventos,
apenas o clima
em que eles se desenrolavam.

Trad.: Nelson Santander

The Barograph

I found it on the quays,
a rectangle of wood,
a barograph, its pen arm inking paper.

I brought it home to be
a register of winds,
of rising pressure,

able to write the barometric fate
of our dailyness
back in a world where

windblown book carts by the river
promised wild words
but obeyed the censor.

Banks in College Green
recorded pounds in ledgers,
pennies in the margin.

Meanwhile we were walking
the old roads,
the elms dying over us. Then

another time came: our screens
filled with supper funerals
we watched in silence,

each of us thinking
what was changed
was changed forever. Yet

every day the page was inked,
the pen still ready to be
what it had always been:

scribe of our Irish climate,
knowing no suffering, just
the hours as they opened, closed,

opened. Unable to understand events,
only the weather
in which they happened.