Ricardo Reis – Odes: 1 – Mestre, são placidas

Mestre, são plácidas
Todas as horas
Que nós perdemos,
Se no perdê-las,
Qual numa jarra,
Nós pomos flores.

Não há tristezas
Nem alegrias
Na nossa vida.
Assim saibamos,
Sábios incautos,
Não a viver,

Mas decorrê-la,
Tranquilos, plácidos,
Tendo as crianças
Por nossas mestras,
E os olhos cheios
De natureza…

À beira-fio,
À beira-estrada,
Conforme calha,
Sempre no mesmo
Leve descanso
De estar vivendo.

O tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.

Não vale a pena
Fazer um gesto.
Não se resiste
Ao deus atroz
Que os próprios filhos
Devora sempre.

Colhamos flores.
Molhemos leves
As nossas mãos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma também.

Girassóis sempre
Fitando o sol,
Da vida iremos
Tranquilos, tendo
Nem o remorso
De ter vivido.

Ricardo Reis – Odes – Livro I – XIII – Olho os campos, Neera,

Olho os campos, Neera,
Campos, campos e sofro
Já o frio da sombra
Em que não terei olhos.
A caveira antessinto
Que serei não sentindo,
Ou só quanto o que ignoro
Me incógnito ministre.
E menos ao instante
Choro, que a mim futuro.
Súdito ausente e nulo
Do universal destino.

Aldous Huxley – Silêncio/Música

“Depois do silêncio, o que mais se aproxima de expressar o inexprimível é a música.” – Aldous Huxley

Cassiano Ricardo – O Festim Terrestre

O olho de Polifemo
já depois de arrancado
ao gigante bêbado,
foi posto,
entre rosas carnosas
e lírios agudos,
sobre a alva mesa.

Tinha ainda a pupila
acesa.

E os doze convivas,
— doze fomes irmãs, —
todos ao mesmo tempo,
simultâneos como
figuras de uma orquestra,
vieram, graves, comer
o olho
de Polifemo,
em dourado molho.

Eram só matéria
exigindo a matéria.
Bocas rubras de vinho
num banquete com algo
de mágico
e de antropofágico.
Ah, era tanta a fome
que nem perceberam,
um minuto após,
pousar-lhes sobre o ombro
a mão de um anjo torto
que os fez diferentes
do que eram,
no banquete feroz.

De modo
que se olhassem pra dentro
do seu próprio ser,
não se conheceriam:
“quem são?”
de tão desfigurados
pela deformação.

E ao mesmo tempo iguais
uns aos outros,
era como se olhassem
num espelho morto.
Tão iguais de rosto
que já não poderiam
distinguir quais deles
eram eles mesmos
(se todos
tinham um só rosto).

Todos deformados
pela angústia, desnudos,
reduzidos a ângulos
agudos,
no instante decomposto
em que a fome era o fruto
do absoluto.

Fruto do chão bruto.

Fruto que tinha o gosto
do suor e da lágrima
que a língua bebe ao rosto.

Mas, o olho redondo,
comido alegremente,
entre rosas carnosas
e lírios agudos,
em campo de prata
(Pã ergue um brinde a Ulisses)
como comer se come
numa mesa de doidos,
continuou olhando
a todos.
Como se olhasse um bando
de doidos.

Não lhes matou a fome.

Então, na manhã clara,
como enormes figuras,
iguais e repetidas
de um baralho humano,
os doze convivas
repentinos e feéricos,
todos ao mesmo tempo,
automaticamente,
comeram — verdes potros —
uns os olhos dos outros.

Cassiano Ricardo – Evocação dos Mortos

Um dia conversarei com os meus mortos.
E todos os que morri (os muitos eus que eu fui)
reunidos inquietos sôfregos cada qual com um meu rosto na mão,
me contarão (sua) a minha história.
Não obstante a tua gélida memória.
Ah, os defuntos que ficaram atrás de mim fotograficamente,
agora juntos.
Não acredito que aquele menino fui eu…
Nem acreditarei que um dia fui menino, a não ser
[que a minha dúvida se desfaça numa lágrima de identidade.

Um dia conversarei com os meus mortos.
Com todos os que fui sucessivos.
Tão mortos que não os sinto mais, nem reconheço
senão por uma cicatriz.
Mas todos presos ao meu ainda estar vivo.
Como uma estranha multidão de mim mesmo.
Como figuras trágicas de uma comitiva obrigatória.
Como comparsas de uma mesma cena continuada
que os faz um só quando uns atrás dos outros,
cinematicamente.

Cemitério de plena e rútila perspectiva
por onde espio o outro lado das coisas.
Por onde me vejo, e vejo as coisas que conversam
atrás de mim, que estou defronte do teu horizonte.

Há uma hora em que o teu refúgio é o meu subterfúgio.
O meu desesperado subterfúgio.
Não só a certeza límpida que me dás de que ninguém me agredirá pelas costas.

A dor que sinto é de hoje
não as que senti ontem e morreram comigo.
O meu lamento de ontem é histórico e desbotado.
Um pássaro empalhado, ou um couro curtido.
Uma dor que passou cristaliza-se, por arte
da natureza, passou a ser um simples material para espelho.
Uma fotografia não sente a mais mínima dor.
Mesmo que doa em nós quando mais dói…
Os meus mortos já se esqueceram destas coisas.
Prova de que estão mortos e pra sempre enterrados
No teu cemitério que só é mais frio do que os outros
por ser de cristal.

(De cristal como é o copo onde a água é mais pura
porque adquire uma cintilação de estrela)

Abismo de onde vim, deixando atrás de mim
os outros que virão conversar comigo, mas de frente,
na tua inversão prodigiosa.

Não me será preciso o ritual que Ulisses observou
quando para invocar as cabeças dos mortos
degolou suas rezes e fez o sangue rubro escorrer numa cova
desembainhando a espada para conter tantas sombras
que lhe queriam falar a um só tempo.

(O primeiro foi Elpenor que ainda não tinha sido sepultado)
Antes, diante do teu cemitério,
não sou mais que Elpenor – um corpo por chorar e insepulto.

Dia virá em que a ciência cristalizará certo pranto para
[a fabricação de um espelho.
Então o parentesco lágrima com espelho
terá sua explicação.

Os mortos me trazem, cada um (sua) a cabeça,
que foi minha, na mão.
A multidão está reunida agora, como peixes
no fundo de uma primavera sub-marinha.

Titãs – O Pulso

O PULSO

O pulso ainda pulsa

O pulso ainda pulsa

Peste bubônica câncer pneumonia

Raiva rubéola tuberculose anemia

Rancor cisticercose caxumba difteria

Encefalite faringite gripe leucemia

O pulso ainda pulsa

O pulso ainda pulsa

Hepatite escarlatina estupidez paralisia

Toxoplasmose sarampo esquizofrenia

Úlcera trombose coqueluche hipocondria

Sífilis ciúmes asma cleptomania

O corpo ainda é pouco

O corpo ainda é pouco

Reumatismo raquitismo cistite disritmia

Hérnia pediculose tétano hipocrisia

Brucelose febre tifoide arteriosclerose miopia

Catapora culpa cárie câimbra lepra afasia

O pulso ainda pulsa

O corpo ainda é pouco

Compositor: Arnaldo Antunes

Marina Colasanti – Sexta-feira à noite

Sexta-feira à noite
Os homens acariciam o clitóris das esposas
Com dedos molhados de saliva.
O mesmo gesto com que todos os dias
Contam dinheiro, papéis, documentos
E folheiam nas revistas
A vida dos seus ídolos.

Sexta-feira à noite
Os homens penetram suas esposas
Com tédio e pénis.
O mesmo tédio com que todos os dias
Enfiam o carro na garagem
O dedo no nariz
E metem a mão no bolso
Para coçar o saco.

Sexta-feira à noite
Os homens ressonam de borco
Enquanto as mulheres no escuro
Encaram seu destino
E sonham com o príncipe encantado.

Waly Salomão – A Fábrica do Poema

do livro: Algaravias:

FÁBRICA DO POEMA

in memoriam Donna Lina Bo Bardi

sonho o poema de arquitetura ideal
cuja própria nata de cimento encaixa palavra por
palavra,
tornei-me perito em extrair faíscas das britas
e leite das pedras.
acordo.
e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.
acordo.
o prédio, pedra e cal, esvoaça
como um leve papel solto à mercê do vento
e evola-se, cinza de um corpo esvaído
de qualquer sentido.
acordo,
e o poema-miragem se desfaz
desconstruído como se nunca houvera sido.
acordo!
os olhos chumbados
pelo mingau das almas e os ouvidos moucos,
assim é que saio dos sucessivos sonos:
vão-se os anéis de fumo de ópio
e ficam-se os dedos estarrecidos.

sinédoques, catacreses,
metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros
sumidos no sorvedouro.
não deve adiantar grande coisa
permanecer à espreita no topo fantasma
da torre de vigia.
nem a simulação de se afundar no sono.
nem dormir deveras.
pois a questão-chave é:
sob que máscara retornará o recalcado?

(mas eu figuro meu vulto
caminhando até a escrivaninha
e abrindo o caderno de rascunho
onde já se encontra escrito
que a palavra “recalcado” é uma expressão
por demais definida, de sintomatologia cerrada:
assim numa operação de supressão mágica
vou restaurá-la daqui do poema.)

pois a questão-chave é:
sob que máscara retornará?

***

A letra do cd A Fábrica do poema:

sonho o poema de arquitetura ideal
cuja própria nata de cimento encaixa palavra por
palavra,
tornei-me perito em extrair faíscas das britas
e leite das pedras.
acordo.
e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.
acordo.
o prédio, pedra e cal, esvoaça
como um leve papel solto à mercê do vento
e evola-se, cinza de um corpo esvaído
de qualquer sentido.
acordo,
e o poema-miragem se desfaz
desconstruído como se nunca houvera sido.
acordo!
os olhos chumbados
pelo mingau das almas e os ouvidos moucos,
assim é que saio dos sucessivos sonos:
vão-se os anéis de fumo de ópio
e ficam-me os dedos estarrecidos.

metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros
sumidos no sorvedouro.
não deve adiantar grande coisa
permanecer à espreita no topo fantasma
da torre de vigia.
nem a simulação de se afundar no sono.
nem dormir deveras.
pois a questão-chave é:
sob que máscara retornará o recalcado?

sob que máscara retornará?
sob que máscara?

Adriana Calcanhotto – A Fábrica do Poema

Ferreira Gullar – Galo Galo

O galo
no saguão quieto.

Galo galo
de alarmante crista, guerreiro,
medieval.

De córneo bico e
esporões, armado
contra a morte,
passeia.

Mede os passos. Pára.
Inclina a cabeça coroada
dentro do silêncio:
— que faço entre coisas ?
— de que me defendo ?

Anda

No saguão.
O cimento esquece
o seu último passo.

Galo: as penas que
florescem da carne silenciosa
e o duro bico e as unhas e o olho
sem amor. Grave
solidez.
Em que se apóia
tal arquitetura ?

Saberá que, no centro
de seu corpo, um grito
se elabora ?

Como, porém, conter,
uma vez concluído,
o canto obrigatório ?

Eis que bate as asas, vai
morrer, encurva o vertiginoso pescoço
donde o canto rubro escoa

Mas a pedra, a tarde,
o próprio feroz galo
subsistem ao grito.

Vê-se: o canto é inútil.

O galo permanece — apesar
de todo o seu porte marcial —
só, desamparado,
num saguão do mundo.
Pobre ave guerreira!

Outro grito cresce
agora no sigilo
de seu corpo; grito
que, sem essas penas
e esporões e crista
e sobretudo sem esse olhar
de ódio,

não seria tão rouco

e sangrento

Grito, fruto obscuro

e extremo dessa árvore: galo.
Mas que, fora dele,
é mero complemento de auroras.

Manuel Bandeira – Profundamente

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes, cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

*

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?

— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.