Caetano Veloso – O Ciúme

Dorme o sol à flor do Chico, meio-dia
Tudo esbarra embriagado de seu lume
Dorme ponte, Pernambuco, Rio, Bahia
Só vigia um ponto negro: o meu ciúme

O ciúme lançou sua flecha preta
E se viu ferido justo na garganta
Quem nem alegre, nem triste, nem poeta
Entre Petrolina e Juazeiro canta

Velho Chico vens de Minas
De onde o oculto do mistério se escondeu
Sei que o levas todo em ti, não me ensinas
E eu sou só eu, só eu só, eu

Juazeiro, nem te lembras dessa tarde
Petrolina, nem chegaste a perceber
Mas na voz que canta tudo ainda arde
Tudo é perda, tudo quer buscar, cadê?

Tanta gente canta, tanta gente cala
Tantas almas esticadas no curtume
Sobre toda estrada, sobre toda sala
Paira, monstruosa, a sombra do ciúme.

REPUBLICAÇÃO: canção originalmente publicado na página em 27/02/2016

Gwendolyn MacEwen – A Descoberta

não fiques pensando que a exploração
termina, que ela revelou todo seu mistério
ou que o mapa que tens em mãos
inibe novas descobertas

advirto-te que desvendá-la leva anos,
séculos, e quando a vires nua,
olha de novo,
admite que há algo além, inominável,
um véu, uma película sobre a carne
que teu desejo, por si só, não pode remover

quando vires a terra nua, olha de novo
(queima teus mapas, não é disso que falo),
quero dizer, quanto tudo parecer mais evidente,
é aí que deves começar de novo

Trad.: Nelson Santander

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The Discovery

do not imagine that the exploration
ends, that she has yielded all her mystery
or that the map you hold
cancels further discovery

I tell you her uncovering takes years,
takes centuries, and when you find her naked
look again,
admit there is something else you cannot name,
a veil, a coating just above the flesh
which you cannot remove by your mere wish

when you see the land naked, look again
(burn your maps, that is not what I mean),
I mean the moment when it seems most plain
is the moment when you must begin again

Eduardo Alves da Costa – No Caminho, com Maiakóvski

Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakósvki.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos, aprendi a ter coragem.

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho e nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz:
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.

Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.

Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas no tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares,
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.

E por temor eu me calo.
Por temor, aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita – MENTIRA!

EDUARDO ALVES DA COSTA, Niterói, RJ, 1936

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 26/02/2016

Joyce Sutphen – Meu pai, morrendo

Foi um trabalho árduo, morrer, mais árduo
que qualquer coisa que ele já fizera.

Qualquer tarefa brutal, esmagadora, de arrebentar
as costas, que ele se obrigara

a suportar — nada
se comparava a isso. E levou

tanto tempo. Quando o trabalho
terminaria? Quem o chamaria

para o jantar? E foi
duro para nós (seus filhos) —

por toda vida ouvimos
nossa mãe nos dizer: vão,

ajudem seu pai, mas esta
era uma tarefa que não podíamos cumprir.

Ele já estava longe demais,
num campo inalcançável para nós.

Trad.: Nelson Santander

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My Father, Dying

It was hard work, dying, harder
than anything he’d ever done.

Whatever brutal, bruising, back-
breaking chore he’d forced himself

to endure—it was nothing
compared to this. And it took

so long. When would the job
be over? Who would call him

home for supper? And it was
hard for us (his children)—

all of our lives we’d heard
my mother telling us to go out,

help your father, but this
was work we could not do.

He was way out beyond us,
in a field we could not reach.

Carlos Drummond de Andrade – Tu? Eu?

Não morres satisfeito.
A vida te viveu
sem que vivesses nela.
E não te convenceu
nem deu motivo
para haver o ser vivo.

A vida te venceu
em luta desigual.
Era todo o passado
presente presidente
na polpa do futuro
acuando-te no beco.
Se morres derrotado,
não morres conformado.

Nem morres informado
dos termos da sentença
de tua morte, lida
antes de redigida.
Deram-te um defensor
cego surdo estrangeiro
que ora metia medo
ora extorquia amor.

Nem sabes se és culpado
de não ter culpa. Sabes
que morres todo o tempo
no ensaiar errado
que vai a cada instante
desensinando a morte
quanto mais a soletras,
sem que nascido, mores
onde, vivendo, morres.

Não morres satisfeito
de trocar tua morte
por outra mais (?) perfeita.
Não aceitas teu fim
como aceitaste os muitos
fins em volta de ti.

Testemunhaste a morte
no privilégio de ouro
de a sentires em vida
através de um aquário.
Eras tu que morrias
nesse, naquela; e vias
teu ser evaporado
fugir à percepção.
Estranho vivo, ausente
na suposta consciência
de imperador cativo.

Foste morrendo só
como sobremorrente
no lodoso telhado
(era prêmio, castigo?)
de onde a vista captava
o que era abraço e não
durava ou se perdia
em guerra de extermínio,
horror de lado a lado.

E tudo foi a caça
veloz fugindo ao tiro
e o tiro se perdendo
em outra caça ou planta
ou barro, arame, gruta.
E a procura do tiro
e do atirador
(nem sequer tinha mãos),
a procura, a procura
da razão da procura.

Não morres satisfeito,
morres desinformado.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 25/02/2016

Eavan Boland – Anna Liffey

Contava-se que Life
Era filha de Canaã,
E chegou à planície de Kildare.
Amava as planícies e as valas
E o horizonte distante.
Pediu que dessem seu nome ao lugar.
O rio herdou o nome da terra.
A terra herdou o nome de uma mulher.

Uma mulher na porta de uma casa.
Um rio na cidade onde nasceu.

Lá, nas colinas acima da minha casa,
O rio Liffey brota, é nascente.
Surgindo entre junco e urze, na turfa
Negra e nas samambaias, ganha força
Para reivindicar a cidade que narrou.
Cisnes. Quedas abruptas. Pequenas cidades.
O ar manchado e as pontes de Dublin.

O crepúsculo se aproxima.
A chuva avança do leste, vinda das colinas.

Se eu pudesse me ver,
Veria
Uma mulher na soleira,
Vestindo as cores que combinam com cabelos ruivos.
Embora meus cabelos já não sejam ruivos.

Eu louvo
As dádivas do rio.
Seu brilho errante
Seu recontar cintilante da cidade,
Sua claridade ao fluir,
Na companhia de flores rasteiras e garças,
Contornando uma curva em Islandbridge
E passando sob treze pontes até o mar.
Sua paciência ao crepúsculo –
Cisnes aninhando-se em suas margens,
Neon tremeluzindo em suas águas.

Forjador de
Lugares, memórias,
Narre para mim tais fragmentos:

Um corpo. Um espírito.
Um lugar. Um nome.
A cidade onde nasci.
O rio que a atravessa.
A nação que me escapa.

Frações de uma vida
Que levei uma vida inteira
Para reivindicar.

Cheguei aqui em um inverno frio.

Não tinha filhos. Nem país.
Eu não sabia o nome da minha própria vida.

Meu país me tomou.
Meus filhos nasceram.

Saí em um crepúsculo de verão
Para chamá-los.

Um nome. Depois o outro.
As belas vogais soando como lar.

Faça de uma nação o que quiser
Faça do passado
O que puder –

Agora há
Uma mulher na soleira.

Foi preciso
Todas as minhas forças para chegar aqui.

Tornar-me uma personagem em um poema.

Usurpar um nome e um tema.

Um rio não é uma mulher.
      Embora os nomes que encontra,
              A história que faz
E que sofre –
      as lâminas vikings1 em suas margens,
               Os mosquetes dos Casacos Vermelhos2,
                       As chamas das Four Courts3
Ardendo sobre ele –
      Sejam um sinal.
            Assim como
Uma mulher não é um rio,
      Embora o curso que toma,
            Entre cisnes cortejando-se e salgueiros desolados,
Sua paciência,
      Que é também sua impotência,
            De Callary a Isladbridge,
                  Da nascente à foz,
Seja outro.
                          E em meus quarenta e poucos anos
Já sem crer
      Que o amor irá curar
            O que a linguagem falha em conhecer
E precisa dizer –
      O que o corpo significa –
            Eu tomo este sinal
E faço esta marca:
      Uma mulher na soleira de sua casa.
            Um rio na cidade em que ela nasceu.
A verdade de uma vida sofrida.
      A foz dela.

As aves marinhas chegam da costa.
Dizem na cidade que elas trazem chuva.
Eu as observo da soleira.
Vejo nelas argumentos de origem –
Deixam uma força severa no horizonte
Apenas para encontrá-la
Inclinando-se e caindo em outro lugar.

Qual das águas –
A que deixam ou a que anunciam –
Lembra a outra?

Estou certa
De que o corpo de uma mulher que envelhece
É uma memória
E encontrar-lhe uma linguagem
É tão árduo
Quanto chorar e exigir
Que essas aves protestem como se pudessem
Reconhecer seu elemento
Relembrado e reduzido a
Uma única lágrima.

Uma mulher que envelhece
Não encontra refúgio na linguagem.
Em vez disso, descobre
Que palavras que um dia amou,
Como ‘verão’ e ‘amarelo’
E ‘sexual’ e ‘pronta’
Subitamente se tornaram moradas
Para outra pessoa –
Quartos e um teto sob o qual outro
É bem-vindo, não ela. Diga-me,
Anna Liffey,
Espírito da água,
Espírito do lugar,
O que resta nesta
Noite chuvosa de outono,
Enquanto o mar irlandês recolhe
Os nomes que você criou, os nomes
Que você concedeu, e lhe devolve
Apenas a ausência de palavras?

A chuva de outono
Se espalha e goteja
Dos toldos
E das sebes podadas.
As calhas estão cheias.

Quando aqui cheguei
Não tinha
Filhos nem país.
As árvores eram braços.
As colinas eram sonhos.

Eu era livre
Para imaginar um espírito
Nos azuis e verdes,
Nas colinas e neblinas
De uma pequena cidade.

Meus filhos nasceram.
Meu país me tomou.
Uma visão em uma casa de tijolos.
É só o amor
Que faz um lugar?

Sinto-o mudar.
Meus filhos estão
Crescendo, envelhecendo.
Meu país se agarra
À sua própria dor.

Apago
A luz amarela e dura
Da varanda e
Permaneço no corredor.
Onde está meu lar agora?

Siga a chuva
Até as colinas de Dublin.
Deixe-a tornar-se o rio.
Deixe que o espírito do lugar se torne
De novo uma alma errante.

No final,
Não importará
Que eu tenha sido mulher. Estou certa disso.
O corpo é uma nascente. Nada mais.
Há um tempo para ele. Há uma certeza
No modo como busca sua própria dissolução.
Considere os rios.
Eles estão sempre a caminho
De seu próprio nada. Desde o primeiro instante,
Estão indo para casa. E assim,
Quando a linguagem não consegue fazer isso por nós,
Não pode nos fazer saber que o amor não nos diminuirá,
Há essas frases
Do oceano
Para nos consolar.
Particulares e destemidas em sua plenitude.
No final,
Tudo o que me sobrecarregou e me distinguiu
Se perderá nisto:
Eu fui uma voz.

Trad.: Nelson Santander

  1. Referem-se às espadas utilizadas pelos vikings, povos nórdicos que realizaram expedições de pilhagem e colonização por grande parte da Europa durante a Idade Média. A menção dessas lâminas no contexto do poema sugere a longa história e as violências que a Irlanda, e por extensão o rio Liffey, testemunharam ao longo dos séculos. ↩︎
  2. Uma alusão aos soldados britânicos, que eram chamados de “Casacos Vermelhos” devido ao uniforme vermelho que usavam. A presença desses mosquetes indica os conflitos entre a Irlanda e a Inglaterra, culminando em diversas guerras e revoltas, como a Rebelião Pascoal de 1798. ↩︎
  3. The Four Courts (“Quatro Tribunais”, em tradução livre): trata-se dos edifícios dos tribunais de Dublin, que foram incendiados durante a Guerra da Independência da Irlanda em 1922. Esse evento marcou um dos momentos mais violentos da luta pela independência irlandesa e causou grandes danos à cidade. ↩︎

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Anna Liffey

Life, the story goes,
Was the daughter of Canaan,
And came to the plain of Kildare.
She loved the flat-lands and the ditches
And the unreachable horizon.
She asked that it be named for her.
The river took its name from the land.
The land took its name from a woman.

A woman in the doorway of a house.
A river in the city of her birth.

There, in the hills above my house,
The river Liffey rises, is a source.
It rises in rush and ling heather and
Black peat and bracken and strengthens
To claim the city it narrated.
Swans. Steep falls. Small towns.
The smudged air and bridges of Dublin.

Dusk is coming.
Rain is moving east from the hills.

If I could see myself
I would see
A woman in a doorway
Wearing the colours that go with red hair.
Although my hair is no longer red.

I praise
The gifts of the river.
Its shiftless and glittering
Re-telling of a city,
Its clarity as it flows,
In the company of runt flowers and herons,
Around a bend at Islandbridge
And under thirteen bridges to the sea.
Its patience at twilight –
Swans nesting by it,
Neon wincing into it.

Maker of
Places, remembrances,
Narrate such fragments for me:

One body. One spirit.
One place. One name.
The city where I was born.
The river that runs through it.
The nation which eludes me.

Fractions of a life
It has taken me a lifetime
To claim.

I came here in a cold winter.

I had no children. No country.
I did not know the name for my own life.

My country took hold of me.
My children were born.

I walked out in a summer dusk
To call them in.

One name. Then the other one.
The beautiful vowels sounding out home.

One name. Then the other one.
The beautiful vowels sounding out home.

Make of a nation what you will
Make of the past
What you can –

There is now
A woman in a doorway.

It has taken me
All my strength to do this.

Becoming a figure in a poem.

Usurping a name and a theme.

A river is not a woman.
Although the names it finds,
The history it makes
And suffers –
The Viking blades beside it,
The muskets of the Redcoats,
The flames of the Four Courts
Blazing into it
Are a sign.
Any more than
A woman is a river,
Although the course it takes,
Through swans courting and distraught willows,
Its patience
Which is also its powerlessness,
From Callary to Isladbridge,
And from source to mouth,
Is another one.
And in my late forties
Past believing
Love will heal
What language fails to know
And needs to say –
What the body means –
I take this sign
And I make this mark:
A woman in the doorway of her house.
A river in the city of her birth.
The truth of a suffered life.
The mouth of it.

The seabirds come in from the coast.
The city wisdom is they bring rain.
I watch them from my doorway.
I see them as arguments of origin –
Leaving a harsh force on the horizon
Only to find it
Slanting and falling elsewhere.

Which water –
The one they leave or the one they pronounce –
Remembers the other?

I am sure
The body of an ageing woman
Is a memory
And to find a language for it
Is as hard
As weeping and requiring
These birds to cry out as if they could
Recognise their element
Remembered and diminished in
A single tear.

An ageing woman
Finds no shelter in language.
She finds instead
Single words she once loved
Such as ‘summer’ and ‘yellow’
And ‘sexual’ and ‘ready’
Have suddenly become dwellings
For someone else –
Rooms and a roof under which someone else
Is welcome, not her. Tell me,
Anna Liffey,
Spirit of water,
Spirit of place,
How is it on this
Rainy autumn night
As the Irish sea takes
The names you made, the names
You bestowed, and gives you back
Only wordlessness?

Autumn rain is
Scattering and dripping
From car-ports
And clipped hedges.
The gutters are full.

When I came here
I had neither
Children nor country.
The trees were arms.
The hills were dreams.

I was free
To imagine a spirit
In the blues and greens,
The hills and fogs
Of a small city.

My children were born.
My country took hold of me.
A vision in a brick house.
Is it only love
That makes a place?

I feel it change.
My children are
Growing up, getting older.
My country holds on
To its own pain.

I turn off
The harsh yellow
Porch light and
Stand in the hall.
Where is home now?

Follow the rain
Out to the Dublin hills.
Let it become the river.
Let the spirit of place be
A lost soul again.

In the end
It will not matter
That I was a woman. I am sure of it.
The body is a source. Nothing more.
There is a time for it. There is a certainty
About the way it seeks its own dissolution.
Consider rivers.
They are always en route to
Their own nothingness. From the first moment
They are going home. And so
When language cannot do it for us,
Cannot make us know love will not diminish us,
There are these phrases
Of the ocean
To console us.
Particular and unafraid of their completion.
In the end
Everything that burdened and distinguished me
Will be lost in this:
I was a voice.

Jorge Luis Borges – O Suicida

Não ficará na noite uma estrela.
Não ficará a noite.
Morrerei e comigo a suma
Do intolerável universo.
Apagarei as pirâmides, as medalhas,
Os continentes e as caras.
Apagarei a acumulação do passado. 
Farei pó a história, pó o pó.
Estou olhando o último poente.
Ouço o último pássaro.
Lego o nada a ninguém.

Trad.: Antonio Cícero

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 24/02/2016

Carlito Azevedo – Vida: Efeito-V (excertos)

(...)

IV

Para além
da teoria
da genitalidade
você mantém
a mão direita
na maçaneta
sem girar
enquanto
na esquerda
— no copo d’água
que a esquerda
segura —
o comprimido
de Aspirina C
impõe seu
próprio tempo
seu próprio
ritmo
a todos
os outros
ritmos
nervosos
irracionais
do dia,
inclusive o
da mala
parada
a seus pés;
para além
dos liames
invisíveis
e dos instintos
historicamente
determinados
você começa
a lembrar
de quando
tinha 15 anos
e vagava
pelas ruas
do bairro feio
mas arborizado,
a ponta do nariz
apontando
para o chão
para o abismo
para os afogados,
o coração
transbordando
o erotismo
vulgar e potente
dos blockbusters
dos 70;

para além
dos poderes
biológicos
autorregeneradores,
do pôster de
Jim Morrison
peito nu
pendurado na
parede do
quarto de dormir
e da pluralidade
radical
das durações
foi
no fim das contas
a época Disco
que correspondeu
profundamente
a algo
dentro de você
desconhecido
primeiro,
desgovernado
depois
— sua garota
dançava
irredutível
a toda
tentativa de retratá-la
– Puck? Titânia? Oberon?
dançava
emitindo
transmitindo
os relâmpagos
sublimes do
pensamento,
sinais luminosos
de vida
sinais que
para sua surpresa
(e salvação?)
chegaram até aqui
(por quê?)
chegaram a este
aqui e agora
(como?)
da mão congelada
sobre a maçaneta,
da cabeça explodindo
de dor de cabeça,
do comprimido de
Aspirina C
ainda pela metade
parado e se
dissolvendo
dentro do
copo d’água,
em todas
as direções
por todos
os poros,
a mala
no chão,
o uber lá fora
buzinando,
oprimido
opressor.

XI

GUARDAR UM DIA PARA QUANDO NÃO HAJA

O outono está na sala e o sol é como nenhum outro.
Há também algo como um espelho onde um velho se contempla.
Um chão onde descalça os sapatos.
Um cabide onde pendura as calças.
Pelo ar flutua a baleia branca, e suas luzes gotejam seiva dourada.

Sérgio Sant'Anna se foi.

                                                                        (10 de maio de 2020)


XII

Pouco tempo antes de morrer, Sérgio postou em sua página no Facebook: "Borges, sim acho que é ele, tem um conto em que um personagem, escritor, à beira da morte, consegue de Deus que o seu tempo seja elástico o suficiente para que ele possa terminar um romance. Queria isso para a minha novelinha, e confesso que rezo todos os dias."

XIII

Na verdade, querido Sérgio, trata-se, no conto de Borges, de um poeta. E o ano extra que recebe de Deus para completar seu drama em versos, passa-o inteiro de pé, em frente ao pelotão de fuzilamento. Tudo está paralisado, até as balas disparadas pelos fuzis, até os soldados nazis que as disparam, até a mosca que voava bem diante de seus olhos, até a gota que pende de uma goteira, até seu corpo. Só sua voz interna não para nunca. Ao cabo de um ano, termina mentalmente seu poema, encontra a última rima que faltava para concluir o último verso.
E vê a gota cair.

(os poemas acima são todos da seção "Baleia Branca")

PAI

A soma das idades
do pai e do filho
dava 111
naquela tarde
no pequeno cemitério da Ilha
onde um 
dos dois
deixou para sempre
a condição de estável
(quanto a sua composição)
e de móvel
(quanto a suas posições)
e então
eu jurei:
pelo bico necrológico
do sol-corvo
que me furava os olhos,
por todos os afogados 
do Reino da Necessidade:
pai,
a guerra acaba aqui 
a dor acaba aqui 
acaba aqui o escândalo 
Jonas engole a baleia.

Nenhuma nuvem
ou voz de mulher ao redor
aliás
somos só nós dois
aqui 
(que te importaria agora 
isso ou seu contrário?)
mais três ou quatro 
funcionários desanimados 
(súbito – e a suborno – solícitos) 
e 
a poucos metros 
sob um excesso de luz suburbana 
dois cães com a língua de fora 
rosnando uma indecisão 
cheia de promessas 
e nada se conclui.

Eis nossa colheita 
pela eternidade 
intransplantável: sol dos infernos 
cães 
seus odores 
terrores 
e coitos, 
e uma municipalidade 
bem mais que 
medianamente corrupta.

Esmaguei um mosquito 
entre as páginas 
do Livro de Condolências 
uma pequena mancha 
vermelha
ao lado do meu nome 
e me fui. 
Não só a palavra escrita 
é manipulação gráfica 
do pensamento.

Segui a trilha indicada 
por setas pintadas no chão – 
agulhas sismográficas 
ou 
corda bamba e tensa 
sobre as minas ásperas das almas - 
apontando a saída. 
Saltei para dentro 
do ônibus que passava 
tremelicante 
sentido Centro.

Os caligramas de Apollinaire 
são meu real 
teste de Rorschach




Machado de Assis – Memórias Póstumas (último capítulo)

(Leia também: https://singularidadepoetica.art/2023/06/01/nelson-santander-dois-capitulos-perdidos-de-memorias-postumas-de-bras-cubas-2/)

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 25/02/2016

Sarah Russell – Se eu tivesse três vidas

Se eu tivesse três vidas

Após “Melbourne”, dos The Whitlams

Se eu tivesse três vidas, em duas me casaria com você.
E a outra? Aquela vida, sabe,
na Starbucks, sentada sozinha, escrevendo — minhas memórias,
talvez um romance, ou este poema. Provavelmente sem filhos,
um pequeno apartamento com vista para o rio,
e livros — muitos livros e tempo para ler. 
Amigos com quem rir; um homem de vez em quando,
por um fim de semana, para lembrar como é sentir
a pele viva. Sou mais magra nessa vida, vegana,
pratico ioga. Vou a filmes de artes, feiras orgânicas,
bebo martínis, usando saias rodadas e joias exuberantes. 
Tiro férias na costa do Maine e visto a camisa de flanela
que o cara do fim de semana deixou para trás, amando o cheiro de suor
e loção pós-barba mais do que a ele. Caminho pela praia
ao nascer do sol, encontro conchas em espirais perfeitas e observo
os sulcos que a água deixou na areia. E às vezes me pergunto
se algum dia haverei de encontrar você.

Trad.: Nelson Santander

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If I Had Three Lives

                 After “Melbourne” by the Whitlams

If I had three lives, I’d marry you in two.
And the other?  That life over there
at Starbucks, sitting alone, writing — a memoir,
maybe a novel or this poem.  No kids, probably,
a small apartment with a view of the river,
and books — lots of books and time to read. 
Friends to laugh with; a man sometimes,
for a weekend, to remember what skin feels like
when it’s alive.  I’m thinner in that life, vegan,
practice yoga.  I go to art films, farmers markets,
drink martinis in swingy skirts and big jewelry. 
I vacation on the Maine coast and wear a flannel shirt
weekend guy left behind, loving the smell of sweat
and aftershave more than I do him.  I walk the beach
at sunrise, find perfect shell spirals and study pockmarks
water makes in sand.  And I wonder sometimes
if I’ll ever find you.