Depois de um dia inteiro de trabalho
voltas para casa, cansado.
Já é noite em teu bairro e as mocinhas
de calças compridas desceram para a porta
após o jantar.
Os namorados vão ao cinema.
As empregadas surgem das entradas de serviço.
Caminhas na calçada escura.
Consumiste o dia numa sala fechada,
lidando com papéis e números.
Telefonaste, escreveste,
irritações e simpatias surgiram e desapareceram
no fluir dessas horas. E caminhas,
agora, vazio,
como se nada acontecera.
De fato, nada te acontece, exceto
talvez o estranho que te pisa o pé no elevador
e se desculpa.
Desde quando
tua vida parou? Falas dos desastres,
dos crimes, dos adultérios,
mas são leitura de jornal. Fremes
ao pensar em certo filme que vista: a vida,
a vida é bela!
A vida é bela
mas não a tua. Não a de Pedro,
de Antônio, de Jorge, de Júlio,
de Lúcia, de Miriam, de Luísa…
Às vezes pensas
com nostalgia
nos anos de guerra,
o horizonte de pólvora,
o cabrito. Mas a guerra
agora é outra. Caminhas.
Tua casa está ali. A janela
acesa no terceiro andar. As crianças
ainda não dormiram.
Terá o mundo de ser para eles
este logro? Não será
teu dever mudá-lo?
Apertas o botão da cigarra.
Amanhã ainda não será outro dia.
REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 17/02/2016
Arquivos mensais: julho 2025
Nuno Júdice – Amor
Um poema, dizes, em que
o amor se exprima, tudo
resumindo em palavras.
Mas o que fica
nas palavras
daquilo que se viveu?
Um pó de sílabas,
o ritmo pobre da
gramática, rimas sem nexo…
Konstantinos Kaváfis – Míris: Alexandria, 340 d. c.
Quando eu soube da tragédia, que Míris estava morto,
fui até sua casa, embora evite
entrar nas casas dos cristãos,
principalmente em épocas de luto ou de festividades.
Fiquei no corredor. Não quis
avançar mais para dentro, porque percebi
que os parentes do morto me olhavam
com evidente surpresa e desagrado.
Tinham-no colocado num cômodo amplo
do qual, do ponto onde permaneci,
eu podia ver um pouco: todo tapetes preciosos
e vasilhas de prata e de ouro.
Fiquei de pé e chorei num canto do corredor.
E pensei em como nossas reuniões e nossas excursões
nada mais valeriam sem Míris;
e pensei em que eu não mais o veria
em nossas belas e indecentes sessões que duravam a noite toda,
divertindo-se, e rindo, e recitando versos
com o seu sentido perfeito do ritmo grego;
e pensei em como eu tinha perdido para sempre
sua beleza, em como eu perdera para sempre
o jovem que venerara tão desvairadamente.
Algumas mulheres velhas, próximas de mim, falavam com suavidade
do último dia que ele vivera –
em seus lábios continuamente o nome de Cristo,
em suas mãos uma cruz.
E então quatro sacerdotes cristãos
entraram no cômodo e fizeram preces
com fervor e orações a Jesus
ou a Maria (não conheço bem a religião deles).
Sabíamos, por certo, que Míris era cristão.
Desde o primeiro instante o soubemos, quando
no ano anterior ao último ele se juntou à nossa companhia.
Mas vivia exatamente como nós:
mais entregue ao prazer do que todos nós,
dissipava seu dinheiro prodigamente em divertimentos.
Indiferente ao apreço do mundo,
atirava-se sofregamente para as brigas noturnas,
quando acontecia de nosso bando encontrar
um bando rival.
Nunca falava de sua religião.
E uma vez nós até lhe dissemos
que íamos levá-lo conosco ao Serapião.
Mas foi como se isso lhe desagradasse,
essa nossa piada: lembro-me agora.
Ah, e agora me ocorrem duas outras ocasiões.
Quando fizemos libações a Posseidon,
ele se abstraiu de nosso círculo e olhou noutra direção.
Quando um de nós disse com entusiasmo:
“Que nossa companhia esteja
sob o favor e sob a proteção do grande,
do inteiramente belo Apolo” – Míris sussurrou
(os outros não ouviram): “Com exceção de mim”.
Os sacerdotes cristãos, em altas vozes,
rezavam pela alma do jovem.
Notei com quanta diligência
e com que cuidado intensivo
pelas formas de sua religião eles preparavam
cada coisa para o funeral cristão.
E de repente uma sensação esquisita
me veio. Senti, obscuramente,
como se Míris estivesse escapando de mim:
senti que ele, um cristão, tinha se unido
à sua própria gente, e que eu estava me tornando
um estranho, um completo estranho; e senti mesmo
uma dúvida se aproximando: que eu fora enganado
por minha paixão e tinha sido sempre um estranho para ele.
Atirei-me para fora de sua assustadora casa;
fugi depressa antes que fosse agarrada, antes que fosse alterada
pelo seu cristianismo a memória de Míris.
Trad.: Renato Suttana
REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 17/02/2016
Robert Bly – O velho cego
Não sei por que somos cercados por tanta doçura.
Nem por que o vento move as cortinas nas tardes,
Ou por que a terra murmura sobre seus filhos.
Nunca saberemos por que a neve cai noite adentro,
Nem como a garça alonga suas pernas longas,
Ou por que nos sentimos tão abandonados ao amanhecer.
Nunca compreenderemos como os pássaros podem voar,
Nem quem é o gênio que fabrica os sonhos,
Ou como céu e terra podem surgir em um poema.
Não sabemos por que a chuva cai incessantemente.
O coveiro levanta uma pá após a outra.
As garças seguem costurando os céus.
Nunca soubemos do dia em que fomos concebidos,
Nem do médico que nos trouxe ao mundo,
Ou daquele velho cego que decide quando morreremos.
É difícil compreender por que o sol nasce,
E por que nossos filhos nos amam,
E por que o vento move as cortinas à tarde.
Trad.: Nelson Santander
The Blind Old Man
I don’t know why so much sweetness hovers around us.
Nor why the wind blows the curtains in the afternoons,
Nor why the earth mutters so much about its children.
We’ll never know why the snow falls through the night,
Nor how the heron stretches her long legs,
Nor why we feel so abandoned in the morning.
We have never understood how birds manage to fly,
Nor who the genius is who makes up dreams,
Nor how heaven and earth can appear in a poem.
We don’t know why the rain falls so long.
The ditchdigger turns up one shovel after another.
The herons go on stitching the heavens together.
We’ve never heard about the day we were conceived
Nor the doctor who helped us to be born,
Nor that blind old man who decides when we will die.
It’s hard to understand why the sun rises,
And why our children are mostly fond of us,
And why the wind blows the curtains in the afternoon.
Ezra Pound – Canto LXXXI (fragmentos)
O que amas de verdade permanece,
o resto é escória.
O que amas de verdade não te será arrancado
O que amas de verdade é tua herança verdadeira
Mundo de quem, meu ou deles
Ou não é de ninguém?
Veio o visível primeiro, depois o palpável
Elísio, ainda que fosse nas câmaras do inferno,
O que amas de verdade é tua herança verdadeira
O que amas de verdade não te será arrancado
A formiga é um centauro em seu mundo de dragões.
Abaixo tua vaidade, nem coragem
Nem ordem, nem graça são obras do homem,
Abaixo tua vaidade, eu digo abaixo.
Aprende com o mundo verde o teu lugar
Na escala da invenção ou arte verdadeira,
Abaixo tua vaidade,
Paquim, abaixo!
O elmo verde superou tua elegância.
“Domina-te e os outros te suportarão”
Abaixo tua vaidade
Tu és um cão surrado e largado ao granizo,
Uma pega inchada sob um sol instável,
Metade branca, metade negra
E confundes a asa com a cauda
Abaixo tua vaidade
Que mesquinhos os teus ódios
Nutridos na mentira,
Abaixo tua vaidade
Ávido em destruir, avaro em caridade,
Abaixo tua vaidade,
Eu digo abaixo.
Mas ter feito em lugar de não fazer
isto não é vaidade
Ter, com decência, batido
Para que um Blunt abrisse
ter colhido no ar a tradição mais viva
Ou num belo olho antigo a flama inconquistada
Isto não é vaidade.
Aqui o erro todo consiste em não ter feito.
Todo: na timidez que vacilou.
Trad. Augusto e Haroldo de Campos
REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 16/02/2016 (minha primeira postagem!)
Kathleen Spivack – ele jaz imóvel na cama
ele jaz imóvel na cama
e ela
não está viva
segue respirando, como se desse um sinal
ela sabe o que anseia
mas dizer-lhe
é ainda pior:
sarcófagos,
jazem juntos formalmente,
marido e mulher.
ela quer
alguém que lhe afague os cabelos,
um sopro de pétala
como do centro das flores,
ser abraçada
e chamada meu mel
ou querida
suavemente, suavemente
morrer
será assim?
desaparecer, em completo silêncio
e sozinha:
o pálido corpo
lamentando sua fragilidade
e a alma chorando
me abraça?
Trad.: Nelson Santander
he doesn’t move in bed
he doesn’t move in bed
and she
is not alive
she keeps breathing, as if giving a sign
she knows she is wanting
but to tell
him is somehow worse:
sarcophagi,
they lie together formally,
husband and wife.
she wants
someone to stroke her hair,
a petal breath
as from the center of flowers,
to be clasped
and called my honey
or my dear
gently, gently
is this what dying
will be like?
slipping away, all silent
and alone:
the pale body
mourning its fragility
and the soul crying
hold me?
Javier Salvago – Quinta-feira Santa
A mesma lua, o mesmo
aroma de laranjeiras
perfumando as ruas,
onde a vida explode
em uma multidão de corpos
que se atraem e se buscam.
Calor de primavera
na pele e no ar.
Jovens incansáveis,
como nós naquela época,
percorrem a cidade
bêbados de desejo
— jovens com invernos
de abstinência, que sentem,
como Ele, que também
seu reino não é deste mundo —.
Os tambores lembram
que estão indo para o patíbulo.
Diante de virgens chorosas,
com despudor, os deuses
que vão morrer se beijam
— como os deuses que ontem fomos —,
sem remédio nem culpa,
na cruz dos anos.
Trad.: Nelson Santander
Jueves Santo
La misma luna, el mismo
perfume del naranjo
aromando las calles,
donde la vida estalla
en multitud de cuerpos
que se atraen y se buscan.
Calor de primavera
en la piel y en el aire.
Jóvenes incansables,
como entonces nosotros,
recorren la ciudad
borrachos de deseo
— jóvenes con inviernos
de abstinencia, que sienten,
como Aquél, que tampoco
su reino es de este mundo —.
Los tambores recuerdan
que se marcha al patíbulo.
Ante llorosas vírgenes,
con descaro, se besan
dioses que morirán
— como el dios que ayer fuimos —,
sin remedio ni culpa,
en la cruz de los años.
Helen Dunmore – O caule da minha vida foi cortado
O caule da minha vida foi cortado,
Mas rápida e amorosamente
Fui erguida,
Ouvi o fluir da torneira
E fui posta na água,
No vaso azul, belo
Em bordas e curvas,
E eis-me aqui,
Desabrochando uma pétala
À medida que o chá esfria.
Espero enquanto o sol se move
E as abelhas findam sua dança,
Sei que estou morrendo,
Mas por que não seguir florescendo
Enquanto eu puder
Do meu caule cortado?
Trad.: Nelson Santander
My life’s stem was cut
My life’s stem was cut,
But quickly, lovingly
I was lifted up,
I heard the rush of the tap
And I was set in water
In the blue vase, beautiful
In lip and curve,
And here I am
Opening one petal
As the tea cools.
I wait while the sun moves
And the bees finish their dancing,
I know I am dying
But why not keep flowering
As long as I can
From my cut stem?
Miller Williams – Poema de amor com torrada
Parte do que fazemos, fazemos
para que as coisas aconteçam,
o despertador para nos acordar, o café para coar,
o carro para dar partida.
O resto do que fazemos, fazemos
tentando impedir que algo aconteça,
a pele de envelhecer, a enxada de enferrujar,
a verdade de vir à tona.
Com o sim e o não como polos de uma bateria
impulsionando nossa travessia pelos dias,
seguimos em frente, como gostamos de dizer,
querendo ser queridos,
querendo que a floresta tropical não desapareça,
querendo que a água ferva,
querendo não ter câncer,
querendo chegar em casa antes de escurecer,
querendo não ficar sem gasolina,
como cada um de nós quer o outro
velando no final,
como ambos querem não deixar o outro sozinho,
como querendo amar para além desta carne e osso,
nos olhamos sobre o café da manhã e fingimos.
Trad.: Nelson Santander
REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 28/09/2020
Love Poem With Toast
Some of what we do, we do
to make things happen,
the alarm to wake us up, the coffee to perc,
the car to start.
The rest of what we do, we do
trying to keep something from doing something
the skin from aging, the hoe from rusting,
the truth from getting out.
With yes and no like the poles of a battery
powering our passage through the days,
we move, as we call it, forward,
wanting to be wanted,
wanting not to lose the rain forest,
wanting the water to boil,
wanting not to have cancer,
wanting to be home by dark,
wanting not to run out of gas,
as each of us wants the other
watching at the end,
as both want not to leave the other alone,
as wanting to love beyond this meat and bone,
we gaze across breakfast and pretend.
Sam Illingworth – Quando desapareceram os manguezais
Nas profundezas das dunas,
raízes fossilizadas sussurram
áureas lembranças
de lagoas esmeraldas.
Quando mares safira
lambiam ternamente
pés emaranhados,
banhando caules submersos
na maré crescente
de seu abraço salobro.
Dragados ao lado
de tesouros enterrados,
reflexos escuros se agitam.
Feridas expostas que cantam
sua traição –
águas lodacentas e movediças
sufocando com
solos secos e estéreis.
Até que suas ondas
quebraram silenciosamente
nas areias mortas
e escaldantes.
Trad.: Nelson Santander
When the Mangroves Disappeared
Deep beneath the dunes
fossilised roots whisper
golden memories
of emerald lagoons.
When sapphire seas
lapped tenderly
at knotted feet,
bathing sunken stems
with the tidal surge
of their brackish embrace.
Dredged up alongside
buried treasures,
dark reflections stir.
Open wounds that sing
of their betrayal –
silted, shifting waters
suffocating with
dry and barren soils.
Until their waves
broke in silence
upon the dead
and burning sands.