Ricardo Reis – Vem Sentar-te Comigo, Lídia, à Beira do Rio

Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
     (Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
     Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
     E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
     E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
     Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento –
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
     Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
     Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim – à beira-rio,
     Pagã triste e com flores no regaço

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 19/02/2016

Marina Tzvietáieva – Abro as veias

Abro as veias

Abro as veias: irreprimível,
Irrecuperável, a vida vaza.
Ponham embaixo vasos e vasilhas!
Todas as vasilhas serão rasas,
Parcos os vasos.
Pelas bordas — à margem —
Para os veios negros da terra vazia,
Nutriz da vida, irrecuperável,
Irreprimível, vaza a poesia.

Trad.: Augusto de Campos

John Donne – Elegia: indo para o leito

Vem, Dama, vem, que eu desafio a paz;
Até que eu lute, em luta o corpo jaz.
Como o inimigo diante do inimigo,
Canso-me de esperar se nunca brigo.
Solta esse cinto sideral que vela,
Céu cintilante, uma área ainda mais bela.
Desata esse corpete constelado,
Feito para deter o olhar ousado.
Entrega-te ao torpor que se derrama
De ti a mim, dizendo: hora da cama.
Tira o espartilho, quero descoberto
O que ele guarda, quieto, tão de perto.
O corpo que de tuas saias sai
É um campo em flor quando a sombra se esvai.
Arranca essa grinalda armada e deixa
Que cresça o diadema da madeixa.
Tira os sapatos e entra sem receio
Nesse templo de amor que é o nosso leito.
Os anjos mostram-se num branco véu
Aos homens. Tu, meu anjo, és como o céu
De Maomé. E se no branco têm contigo
Semelhança os espíritos, distingo:
O que o meu anjo branco põe não é
O cabelo mas sim a carne em pé.
Deixa que a minha mão errante adentre
Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre.
Minha América! Minha terra à vista,
Reino de paz, se um homem só a conquista,
Minha mina preciosa, meu Império,
Feliz de quem penetre o teu mistério!
Liberto-me ficando teu escravo;
Onde cai minha mão, meu selo gravo.
Nudez total! Todo o prazer provém
De um corpo (como a alma sem corpo) sem
Vestes. As jóias que a mulher ostenta
São como as bolas de ouro de Atalanta:
O olho do tolo que uma gema inflama
Ilude-se com ela e perde a dama.
Como encadernação vistosa, feita
Para iletrados, a mulher se enfeita;
Mas ela é um livro místico e somente
A alguns (a que tal graça se consente)
É dado lê-la. Eu sou um que sabe;
Como se diante da parteira, abre-
Te: atira, sim, o linho branco fora,
Nem penitência nem decência agora.
Para ensinar-te eu me desnudo antes:
A coberta de um homem te é bastante.

Trad.: Augusto de Campos

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 19/02/2016

Lisel Mueller – Monet recusa a cirurgia

Doutor, você diz que não há halos
ao redor das luzes de rua em Paris
e que o que vejo é uma aberração
causada pela velhice, um distúrbio.
Digo que levei uma vida inteira
para enxergar lampiões a gás como anjos,
para suavizar e desfocar e, por fim, banir
as bordas que você lamenta que eu não veja,
para aprender que a linha que chamei horizonte
não existe e que céu e água,
há tanto separados, são o mesmo estado de ser.
Cinquenta e quatro anos levei para ver
que a catedral de Rouen é feita
de raios de sol paralelos,
e agora você quer restaurar
meus erros juvenis: noções
fixas de topo e base,
a ilusão do espaço tridimensional,
glicínias separadas
da ponte que elas cobrem.
O que posso dizer para convencê-lo
de que as Casas do Parlamento se dissolvem
noite após noite para se tornarem
o sonho fluido do Tâmisa?
Não retornarei a um universo
de objetos que não se conhecem,
como se as ilhas não fossem os filhos perdidos
de um grande continente. O mundo
é fluxo, e a luz se torna o que toca,
torna-se água, lírios sobre a água,
acima e abaixo da água,
torna-se lâmpadas lilases e violetas e amarelas
e brancas e azuis cerúleas,
pequenos punhos passando a luz do sol
tão rapidamente uns para os outros
que seria preciso ter longas cerdas fluindo
dentro do meu pincel para capturá-la.
Pintar a velocidade da luz!
Nossas formas densas, essas verticais,
ardem para se mesclar ao ar
e transformar nossos ossos, pele e roupas
em gases. Doutor,
se ao menos pudesse ver
como o céu atrai a terra em seus braços
e como infinitamente o coração se expande
para reivindicar este mundo, vapor azul sem fim.

Trad.: Nelson Santander

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Monet Refuses the Operation

Doctor, you say there are no haloes
around the streetlights in Paris
and what I see is an aberration
caused by old age, an affliction.
I tell you it has taken me all my life
to arrive at the vision of gas lamps as angels,
to soften and blur and finally banish
the edges you regret I don’t see,
to learn that the line I called the horizon
does not exist and sky and water,
so long apart, are the same state of being.
Fifty-four years before I could see
Rouen cathedral is built
of parallel shafts of sun,
and now you want to restore
my youthful errors: fixed
notions of top and bottom,
the illusion of three-dimensional space,
wisteria separate
from the bridge it covers.
What can I say to convince you
the Houses of Parliament dissolve
night after night to become
the fluid dream of the Thames?
I will not return to a universe
of objects that don’t know each other,
as if islands were not the lost children
of one great continent. The world
is flux, and light becomes what it touches,
becomes water, lilies on water,
above and below water,
becomes lilac and mauve and yellow
and white and cerulean lamps,
small fists passing sunlight
so quickly to one another
that it would take long, streaming hair
inside my brush to catch it.
To paint the speed of light!
Our weighted shapes, these verticals,
burn to mix with air
and change our bones, skin, clothes
to gases. Doctor,
if only you could see
how heaven pulls earth into its arms
and how infinitely the heart expands
to claim this world, blue vapor without end.

Bruno Tolentino – Via Crucis

A Via Crucis foi uma selvageria,
a Crucifixão uma brutalidade;
mas em três, quatro horas, acabou a agonia,
baixou a eternidade.

Eu vivo aqui, crucificada noite e dia,
carrego da manhã à tarde
o meu lenho de opróbrio e a noite me excrucia,
lenta, fria, covarde.

Ah, como eu preferia
que me crucificassem de uma vez, sem o alarde
de algum terceiro dia!

Mas toca-me seguir nessa monotonia,
a agonia de alçar-me do catre
e abrir de novo os braços, vazia.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 18/02/2016

Sharon Olds – Quando dizem que você tem talvez três meses de vida

Em meu sono, sonhei que visitava seu túmulo —1
e o que jazia entre nós? A bela grama intocada
e o solo fértil, como a rica
terra em que você enterrou nossos lençóis
depois que o deixei — nosso DNA — perto de onde
mais tarde você enterrou seu golden retriever.
Também entre nós o novo teto
de pinho liso, o traje de linho
com que vestiram seu corpo recém-lavado e sem respiração,
a música de câmara terrosa das selvagens
criaturas espirais do submundo,
e seu tecido que tanto amei, e dentro dele o antigo
homem primordial de seu esqueleto.
Presa de narval, marfim de elefante,
símbolo de sua potência masculina e quadris estreitos
que cavalguei, remando no éden. Mas
não era sonho, eu estava bem desperta,
e você ainda não morreu. Posso ler isso para você
em uma semana, diante do fogão a lenha,
as labaredas curvando-se nas pontas e desaparecendo,
ou junto à lagoa, a água ondulando,
ovais de tsuga e faia2 trocando de lugar nela.
Às vezes, você adormece enquanto estou falando.
E diz: quero que leia um poema para mim quando eu morrer.
E: não vamos parar de escrever um para o outro quando eu estiver morto.
E quando eu também estiver!, eu digo. Quando nos conhecemos,
embora tenhamos nos apaixonado imediata e permanentemente,
não conseguimos estabelecer uma união de duas almas,
nem quando parti — cada um de nós teve que
trabalhar, em si mesmo, por anos, para chegar lá.
E agora chegamos! Talvez isso tenha sido
morte o tempo todo! Talvez a vida seja uma
espécie de morte. Talvez isso já fosse o paraíso.

Trad.: Nelson Santander

  1. O poema “Quando dizem que você tem talvez três meses de vida” (“When They Say You Have Maybe Three Months Left”) foi publicado na mais recente coletânea de Sharon Olds, Balladz (2022), que foi finalista do National Book Award de poesia. Ele integra a seção final intitulada Elegias, dedicada a temas de perda e luto, especialmente a morte de seu parceiro, Carl Wallman. Nesse contexto, Olds reflete sobre a fragilidade da vida e a complexidade das relações humanas, questionando a essência da vida e da morte. ↩︎
  2. As árvores mencionadas pertencem às famílias das pináceas (como a tsuga) e das fagineas (como a faia), que são encontradas em diversas regiões temperadas do hemisfério norte, incluindo a Europa e a América do Norte. Os “ovais” referidos no poema são as sementes ou frutos produzidos por essas árvores, que caem ao chão e podem ser identificados como coníferas ou pinhos, dependendo da espécie. Essas estruturas apresentam formatos ovais ou arredondados, evocando a imagem de um ambiente natural dinâmico, onde folhas e sementes se misturam à superfície da água da lagoa, simbolizando continuidade e transformação na natureza. ↩︎

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When They Say You Have Maybe Three Months Left

In my sleep, I dreamed that I came to your grave—
and what lay between us? The beautiful uncut
hair of the grass, and topsoil like the rich
dirt in which you buried our sheets
after I left you—our DNA—near where
you later buried your golden dog.
Also between us the new ceiling
of plain pine, and the linen garment
your fresh-washed unbreathing body had been clothed in,
and the earthen chamber music of wild,
underworld, spiral creatures,
and your tissue I have loved, and within it the ancient
primordial man of your skeleton.
Narwhal tusk, elephant ivory,
icon of your narrow-hipped male power
I rode, rowing in eden. But
it was no dream, I lay broad waking,
and you have not died yet. I can read this to you
in a week, in front of the woodstove,
the flames curving up to points and disappearing,
or beside the pond, the water rippling,
ovals of hemlock and beech changing places in it.
Sometimes you fall asleep as I’m talking to you.
And you’ve said: I want you to be reading me a poem when I die.
And, Let’s not stop writing to each other when I’m dead.
And when I’m dead too! I said. When we met,
though we fell in love immediate and permanent,
we could not make a two-soul union,
nor when I left—each of us had to
work, on ourselves, for years, to get there.
And now we are there! Maybe this has been
death all along! Maybe life is a
kind of dying. Maybe this has been heaven.

Catulo – Vivamus, mea Lésbia, ataque amemus

Vivamos minha Lésbia, e amemos,
e as graves vozes velhas
– todas –
valham para nós menos que um vintém.
Os sóis podem morrer e renascer:
quando se apaga nosso fogo breve
dormimos uma noite infinita.
Dá-me pois mil beijos, e mais cem,
e mil, e cem, e mil, e mil e cem.
Quando somarmos muitas vezes mil
misturaremos tudo até perder a conta:
que a inveja não ponha o olho de agouro
no assombro de uma tal soma de beijos.

Trad.: Haroldo de Campos

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 18/02/2016

Margaret Hasse – Primeiro dia de Jardim de Infância

Os degraus do ônibus são altos, mas William escala-os com bravura.
As portas se fecham. Ele espia por uma janela marcada de digitais.
Aceno da rua, nostálgica como noiva de soldado,
enquanto o ônibus se afasta e dobra a esquina.

Ao meio-dia, o ônibus amarelo o traz de volta
ao mesmo lugar onde estou novamente.
Ele pensa que fiquei ali a manhã toda, esperando sua volta.
Quando descobre que saí para jogar tênis,

sua testa se enruga como papel na lixeira.
Agora ele sabe que posso me mover sem ele.
Lágrimas do poço do abandono se formam em seus olhos.
Sou seu primeiro amor e sua maior decepção.

Trad.: Nelson Santander

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First Day of Kindergarten

The bus steps are high, but William clambers up gamely.
Doors shut. He peers out a print-marked window.
From the street corner, I wave, wistful as a soldier’s bride
as his bus pulls away and turns a corner.

At noon the yellow bus returns him
to the same place where I’m standing again.
He thinks I stood there all day, waiting in his absence.
When he finds out I left to play tennis,

his forehead crumples like paper in a wastebasket.
Now he knows I can move on my own without him.
Tears drawn from the well of desertion form in his eyes.
I’m his first love and his greatest disappointment.

Olavo Bilac – Nel Mezzo Del Camin…

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha…

E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje, segues de novo… Na partida
Nem o pranto teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 18/02/2016

John Yau – “E Pluribus Unum”

Salivando, um insano sibilo;
como um Setter Irlandês trancado no porão
e então solto, o amanhecer
tenta estar em todos os lugares ao mesmo tempo.

Curvados solenemente sobre uma tigela de
cereais, cada qual se lembrava
de algum outro incidente.

Não é mais necessário que a luz do sol
chegue aqui, nesta cozinha com seu
piso de linóleo; suas rosas desgastadas.

De fato, nenhuma luz é necessária.
A luz esteve aqui o tempo todo, esperando
que você se estenda em direção a ela,
como um peixe tingido pelo oceano.

Trad.: Nelson Santander

N. do T.: O título "E Pluribus Unum" é uma frase em latim que significa "de muitos, um", e é um lema que remonta à época da fundação dos Estados Unidos, representando a união das treze colônias originais em uma única nação. Este lema é frequentemente associado à ideia de unidade e integração a partir de uma diversidade de partes. No contexto do poema, o título pode ser interpretado como uma reflexão sobre a convergência de múltiplas experiências, memórias e emoções em um único momento de introspecção e revelação.

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“E Pluribus Unum”

Slobbering, a manic wheeze;
like an Irish Setter locked in the basement,
and then let loose, dawn
tries to go everywhere at once.

Bent solemnly over a bowl of
cornflakes, each remembered
some other incident.

It is no longer necessary for sunlight
to reach here, this kitchen with its
linoleum floor; its scuffed roses.

In fact no light is needed
The light has been here all along,
waiting for you to reach toward it,
like a fish tinged by the ocean.