Patricia Fargnoli – A incontornável pressão da existência

Eu vi a raposa correndo à beira da estrada
passando pelas fachadas de tijolos aparentes dos condomínios
passando pelo posto da Citco com sua fila de carros e caminhões
e ela corria, mancando, magra, pelagem opaca e embaraçada,
passando pela pizzaria do Jim, pela Wash-O-Mat,
pelo Thai Garden, seus flancos ofegando como foles
e ela correu até onde a estrada estadual
cruzava a interestadual, chegou lá e continuou correndo
sob o viaduto e além dele, passando pelas perfeitas
fileiras de sobrados, suas garagens idênticas
e seus quintais sem arroios nem florestas,
e do meu carro em movimento eu a observava,
impotente, sem poder fazer nada para ajudá-la, certa de que ela estava
além de qualquer ajuda, de qualquer desejo de salvá-la, e ela seguiu correndo,
muito distante de seu elemento, ofegante, faminta, doente,
os olhos fixos em algum ponto à sua frente,
alguma possível salvação
em toda aquela desesperança, que só ela podia ver.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

The Undeniable Pressure of Existence

I saw the fox running by the side of the road
past the turned-away brick faces of the condominiums
past the Citco gas station with its line of cars and trucks
and he ran, limping, gaunt, matted dull haired
past Jim’s Pizza, past the Wash-O-Mat,
past the Thai Garden, his sides heaving like bellows
and he kept running to where the interstate
crossed the state road and he reached it and he ran on
under the underpass and beyond it past the perfect
rows of split-levels, their identical driveways
their brookless and forestless yards,
and from my moving car, I watched him,
helpless to do anything to help him, certain he was beyond
any aid, any desire to save him, and he ran loping on,
far out of his element, sick, panting, starving,
his eyes fixed on some point ahead of him,
some possible salvation
in all this hopelessness, that only he could see.

Billy Collins – A respiração

Como naqueles filmes de terror
em que alguém descobre que as ligações
vêm de dentro da casa,

assim também percebi
que essa ternura entrelaçada
acontecia só dentro de mim.

Toda aquela doçura, o amor, o desejo —
era apenas eu ligando para mim mesmo
e seguindo o toque até o outro cômodo

para não encontrar ninguém na linha,
bem, às vezes uma leve respiração,
mas, na maioria das vezes, nada.

E pensar que esse tempo todo —
o que inclui os passeios de barco,
abraços no aeroporto e tantos brindes —

era apenas eu e os dois telefones,
o da cozinha, preso à parede,
e o ramal no quarto escuro de hóspedes, lá em cima.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 15/08/2020

The Breather

Just as in the horror movies
when someone discovers that the phone calls
are coming from inside the house

so too, I realized
that our tender overlapping
has been taking place only inside me.

All that sweetness, the love and desire —
it’s just been me dialing myself
then following the ringing to another room

to find no one on the line,
well, sometimes a little breathing
but more often than not, nothing.

To think that all this time —
which would include the boat rides,
the airport embraces, and all the drinks —

it’s been only me and the two telephones,
the one on the wall in the kitchen
and the extension in the darkened guest room upstairs.

Dorothea Grossman – As duas vezes que mais te amei no carro

Foi ideia sua
estacionar e observar os elefantes
balançando entre as árvores
como verdadeiros reis
naquele safári de faz-de-conta
perto de Laguna.
Nunca imaginei que algo tão grande
pudesse ser tão silencioso.

E certa vez, você parou
numa estrada escura no deserto
para me mostrar as estrelas
subindo umas sobre as outras
caoticamente
como insetos
como uma orquestra
avançando com força
através do tempo.
Nunca mais vi a luz daquela
maneira.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

The Two Times I Loved You the Most In a Car

It was your idea
to park and watch the elephants
swaying among the trees
like royalty
at that make-believe safari
near Laguna.
I didn’t know anything that big
could be so quiet.

And once, you stopped
on a dark desert road
to show me the stars
climbing over each other
riotously
like insects
like an orchestra
thrashing its way
through time itself
I never saw light that way
again.

Vinicius de Moraes – Ternura

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma…
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 14/08/2020

Saeed Jones – Vivos no fim do mundo

O fim do mundo foi confundido
com apenas mais um massacre ao meio-dia
nos Estados Unidos. Massa encefálica e vidro
estilhaçado, pegadas borradas de botas em poças
de sangue. Ligamos para os recém-mortos,
mas não atenderam. Enviamos mensagens,
suplicando que nos ligassem de volta, mas
os recém-mortos não sabem
ler. Nos Estados Unidos, uma reunião de pessoas
é chamada de tiro ao alvo ou funeral,
dependendo de quem sobrevive
para definir os termos. Mas por ora
estamos vivos no fim do mundo,
traumatizados pelas manchetes e pelos
despertadores, consumindo o pouco amor
que nos resta. Com o tempo, os rapazes
brancos armados se tornarão feridas que mal
nos lembraremos de ter sofrido. “Como você
conseguiu essa cicatriz no ombro?” “Ah,
um garoto que eu mal conhecia ficou triste uma vez.”

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Alive at the End of the World

The end of the world was mistaken
for just another midday massacre
in America. Brain matter and broken
glass, blurred boot prints in pools
of blood. We dialed the newly dead
but they wouldn’t answer. We texted,
begging them to call us back, but
the newly dead don’t know how to
read. In America, a gathering of people
is called target practice or a funeral,
depending on who lives long enough
to define the terms. But for now, we
are alive at the end of the world,
shell-shocked by headlines and alarm
clocks, burning through what little love
we have left. With time, the white boys
with guns will become wounds we won’t
quite remember enduring. “How did you
get that scar on your shoulder?” “Oh,
a boy I barely knew was sad once.”

Javier Salvago – Retrato

Fala pouco, e a bem poucos
se permite chamar de amigos,
segue adiante se há tumulto,
não visita os vizinhos,

cruza a rua fumando,
sempre voltado para dentro,
vendo o mundo de fora
como quem lê um livro,

enredado – sem saída –
no próprio labirinto,
mas nem surdo nem cego
nem indiferente nem frio:

um solitário que vive
com uma mulher e um filho.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 13/08/2020

Retrato

Habla poco, y a muy pocos
se atreve a llamar amigos,
pasa de largo si hay bulla,
no visita a sus vecinos,

cruza la calle fumando,
siempre dentro de sí mismo,
viendo el mundo desde fuera
igual que quien lee un libro,

atrapado — sin salida —
en su propio laberinto,
pero ni sordo ni ciego
ni indiferente ni frío:

un solitario que vive
con una mujer y un niño.

Linda Gregg – Sem saber as regras

Os dois antílopes de barriga branca não se mexeram
quando me aproximei pela estrada da fazenda ao entardecer,
e três pássaros voaram para longe. O ar estava límpido
como no deserto após a chuva,
o céu radiante. Eu me perguntava por que,
além da beleza, eu estava lá. E quão perto
eu me sentia da morte. Esperando o coração
reviver. Entre objetos e desejo.
Atravessei a luz brilhante
que chega antes de escurecer. Reluzindo
na grama à minha frente, vinda de trás.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Not Knowing the Rules

The two white-bellied antelope stood still
as I approached on the farm road at evening,
and three birds flew away. The air was clear
the way it is on the desert after rain,
the sky bright. I was wondering why,
besides the beauty, I was there. And how close
I felt to death. Waiting for the heart
to revive. Between objects and desire.
I waded on through the brilliant light
that comes here just before dark. Shining
on the grass in front of me from the back.

Carlos Drummond de Andrade – Mãos dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, do tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 12/08/2020

Catherine Pond – Chegada

Eu era tão tola. Achei que seu sofrimento fosse algo
que eu pudesse resolver ou pelo menos esconder,
como o falcão morto que encontramos na floresta e levamos
de volta para casa, sob a noite azul-aço, para enterrar.

Achei que a morte seria uma história que contaríamos depois,
e riríamos. Em vez disso, você parou de compartilhar
suas coisas comigo, exceto os poemas, que eu nem
sabia que você estava escrevendo. Eu era sua única

leitora. Naquele verão em High Peaks seus rascunhos
se empilhavam na mesa de piquenique, sob um peso de papel,
bordas tremeluzindo ao vento como longas asas prateadas.
Você tinha acabado de completar treze anos. Eu estava com

onze e meio. Comecei a escrever de volta. Achei que
poderíamos viver assim, lado a lado,
sem falar, observando a tinta fluir como ondas pela
página. Como poderíamos saber

o que a água faria conosco, que a pressão da profundeza
nos afastaria, que o tempo viria
em nossa direção como um barco a motor, silencioso, amorfo?
Que o amor é uma agonia que temos que enfrentar sozinhos?

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Arrival

I was so dumb. I thought your suffering was something
I could solve, or at least push out of sight,
like the dead falcon we found in the forest and carried
back home under steel-blue night to bury.

I thought death was a story we'd tell ourselves later,
and laugh. Instead, you stopped sharing
things with me, except the poems, which I didn't even
know you'd been writing. I was your only

reader. That summer in the High Peaks your drafts
piled up on the picnic table under a paper-weight,
edges shimmering in the wind like long, silver wings.
You were newly thirteen. I was half-way

through eleven. I began to write back. I thought we
could live together this way, side by side,
not speaking, watching ink run like waves across the
page. How could we have known

what the water would do, that the depth pressure would
pull us apart, that time would come
towards us like a motorboat, soundless, amorphous.
That love is an agony we have to enter alone.

Miguel Torga – Rogo

Não, não rezes por mim.
Nenhum deus me perdoa a humanidade.
Vim sem vontade
E vou desesperado.
Mas assinei a vida que vivi.
Doeu-me o que sofri.
Fui sempre o senhorio do meu fado.

Por isso, quero a morte que mereço.
A morte natural,
Solitária e maldita
De quem não acredita
Em nenhuma oração
De salvação.
De quem sabe que nunca ressuscita.

Coimbra, 16 de Abril de 1979

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 09/08/2020