Paulo Henriques Britto – O aqualouco

A verdadeira diferença
só se sente depois do frio.
Antes é só um salto, um mergulho imprudente,
como se eternidade fosse água gelada,
como se o nada não fosse mais que um rio.

Depois somem as palavras fáceis
(“eternidade” etc.; v. acima),
fica só o fundamental:
o vômito, o medo, o adeus,
a vontade de assassinar todos os recém-nascidos
do Egito, como se alguém tivesse culpa de uma coisa
que afinal foi você mesmo quem escolheu.

Depois você é obrigado a aceitar.
Não adianta pressa. Não há mais compromissos,
promessas, fiado, fé. Não.
É só um entregar-se às circunstâncias,
submeter-se às exigências da matéria,
dos elementos, “causalidade”, “aceitação”
etc., como antes. E sempre.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 14/10/2019

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Franny Choi – Pós-morte

Para responder à sua pergunta, sim,

me vejo querendo cada vez menos
transar com o rapaz morto que foi meu
antes de não ser mais nada.
Ele é nove anos mais novo do que eu agora – um garoto
que ainda fuma baseados em seu dormitório;
o que quero dizer é que ele não faz mais nada disso
porque está morto. Porque seu corpo
não é mais um corpo agora, mas terra úmida.
O que significa que, em vez disso, eu deveria desejar
os ventres das moscas. As asas das mariposas
desdobrando-se úmidas de seus casulos.
Deveria desejar o peixe que comeu
o peixe que comeu o plâncton
que levou o pó de seu outrora corpo
para a garganta. O garoto cujo corpo
foi o primeiro a entrar no meu, agora
respira por muitas bocas.
Ele tem guelras, é folhas úmidas e coral,
todas as coisas que vivem, mas não sabem disso,
não sabem que um dia foram um garoto
que arrancou meu jeans molhado,
beijou o interior das minhas coxas
na casa de seus pais, que veio até mim
uma noite, embriagado de amor, dizendo,
 escuta não importa escuta
  sumir  nunca vou

Trad.: Nelson Santander

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Afterlife



To answer your question, yes,
I find myself wanting less and less
to fuck the dead boy who was mine
before he was nothing.
He is nine years younger than me now – a boy
who still smokes blunts in his dorm room,
by which I mean he does none of that
because he is dead. Because his body
is no body now, but wet earth.
Meaning I should instead desire
the bellies of flies. Moth wings
unfolding wet from their shells.
Should hunger for the fish that ate
the fish that ate the plankton
that took his once-body dust
into its gullet. The boy whose body
was the first to enter mine is breathing
from too many mouths now.
He is gilled, wet leaves, coral,
all things that live but don’t know it,
don’t know they were once a boy
who peeled off my wet jeans,
kissed the insides of my knees
in his parents’ house, who came to me
love-addled one night, saying,
 listen no matter listen
   away   i’ll never

Wislawa Szymborska – Autotomia

Em perigo, a holotúria se divide em duas:
com uma metade se entrega à voracidade do mundo,
com a outra foge.

Desintegra-se violentamente em ruína e salvação,
em multa e prêmio, no que foi e no que será.

No meio do corpo da holotúria se abre um abismo
com duas margens subitamente estranhas.

Em uma margem a morte, na outra a vida.
Aqui o desespero, lá o alento.

Se existe uma balança, os pratos não oscilam.
Se existe justiça, é esta.

Morrer só o necessário, sem exceder a medida.
Regenerar quanto for preciso da parte que restou.

Também nós, é verdade, sabemos nos dividir.
Mas somente em corpo e sussurro interrompido.
Em corpo e poesia.

De um lado a garganta, do outro o riso,
leve, logo sufocado.

Aqui o coração pesado, lá non omnis moriar,
três palavrinhas apenas como três penas em voo.

O abismo não nos divide.
O abismo nos circunda.

         In memoriam Halina Poświatowska

Trad.: Regina Przybycien

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 12/10/2019

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Autotomia

W niebezpieczeństwie strzykwa dzieli się na dwoje:
jedną siebie oddaje na pożarcie światu,
drugą sobą ucieka.

Rozpada się gwałtownie na zgubę i ratunek,
na grzywnę i nagrodę, na co było i będzie.

W połowie ciała strzykwy roztwiera się przepaść
o dwóch natychmiast obcych sobie brzegach.

Na jednym brzegu śmierć, na drugim życie.
Tu rozpacz, tam otucha.

Jeśli istnieje waga, szale się nie chwieją.
Jeśli jest sprawiedliwość, oto ona.

Umrzeć ile konieczne, nie przebrawszy miary.
Odrosnąć ile trzeba z ocalonej reszty.

Potrafimy się dzielić, och prawda, my także.
Ale tylko na ciało i urwany szept.
Na ciało i poezję.

Po jednej stronie gardło, śmiech po drugiej,
lekki, szybko milknący.

Tu ciężkie serce, tam non omnis moriar,
trzy tylko słówka jak trzy piórka wzlotu.

Przepaść nas nie przecina.
Przepaść nas otacza.

         Pamięci Haliny Poświatowskiej

Rosemerry Wahtola Trommer – Observando minha amiga fingir que seu coração não está partido

Na Terra, apenas uma colher de chá de uma estrela de nêutrons
pesaria seis bilhões de toneladas. Seis bilhões de toneladas
equivalem ao peso total de todos os animais
da Terra. Incluindo os insetos. Vezes três.

Seis bilhões de toneladas parecem impossíveis
até que eu considere como é digerir a dor —
apenas uma colher de chá e seria como consumir
uma estrela de nêutrons. Como é densa,
como carrega em si a memória do colapso.
Como é difícil se mover depois disso.
Como é impossível acreditar que algo
possa levantar esse peso.

Há muitas razões para tratarmos uns aos outros
com grande ternura. Uma delas
é o puro milagre de estarmos aqui lado a lado
em um planeta cercado por estrelas moribundas.
Outra é o fato de não podermos ver o que
os outros engoliram.

Trad.: Nelson Santander

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Watching My Friend Pretend Her Heart Isn’t Breaking

On Earth, just a teaspoon of neutron star
would weigh six billion tons. Six billion tons
equals the collective weight of every animal
on earth. Including the insects. Times three.

Six billion tons sounds impossible
until I consider how it is to swallow grief—
just a teaspoon and one might as well have consumed
a neutron star. How dense it is,
how it carries inside it the memory of collapse.
How difficult it is to move then.
How impossible to believe that anything
could lift that weight.

There are many reasons to treat each other
with great tenderness. One is
the sheer miracle that we are here together
on a planet surrounded by dying stars.
One is that we cannot see what
anyone else has swallowed.

Roger Wolfe – O Copo

Senta-te
à mesa.
Bebe de um copo
d’água. Saboreia
cada trago.
E lembra
todo o tempo
que perdeste.
O tempo que estás perdendo.
O tempo
que ainda tens para perder.

Trad.: Nelson Santander

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El vaso

Siéntate
a la mesa.
Bebe un vaso
de agua. Saborea
cada trago.
Y piensa
en todo el tiempo
que has perdido.
El que estás perdiendo.
El tiempo
que te queda por perder.

Edward Thomas – Adlestrop

Sim, lembro-me bem de Adlestrop —
Do nome, porque num certo dia
De calor o trem ali parou
Do nada. Junho se consumia.

O trem sibilou. Alguém tossiu.
Ninguém saiu daquela estação
Nem ali entrou. O que vi foi
Adlestrop — a denominação,

E salgueiros, epilóbios, grama,
E erva-ulmeira, seca forragem,
Não menos calmos e solitários
Do que as nuvens altas na paisagem.

E de repente, um melro cantou
Perto dali, e de todo lado,
De Oxfordshire e Gloucestershire,
Outros responderam ao chamado.

Trad.: Nelson Santander

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Adlestrop

Yes. I remember Adlestrop—
The name, because one afternoon
Of heat the express-train drew up there
Unwontedly. It was late June.

The steam hissed. Someone cleared his throat.
No one left and no one came
On the bare platform. What I saw
Was Adlestrop—only the name

And willows, willow-herb, and grass,
And meadowsweet, and haycocks dry,
No whit less still and lonely fair
Than the high cloudlets in the sky.

And for that minute a blackbird sang
Close by, and round him, mistier,
Farther and farther, all the birds
Of Oxfordshire and Gloucestershire.

Adam Zagajewski – Véspera de Ano Novo, 2004

Estás em casa ouvindo
gravações de Billie Holiday,
que canta sonolenta e melancolicamente.
Contas as horas que ainda
faltam para a meia-noite.
Por que os mortos cantam em paz
enquanto os vivos não conseguem se libertar do medo?

Trad.: Nelson Santander, a partir da versão do poema em inglês traduzido por Clare Cavanagh

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New Year’s Eve, 2004

You’re at home listening
to recordings of Billie Holiday,
who sings on, melancholy, drowsy.
You count the hours still
keeping you from midnight.
Why do the dead sing peacefully
while the living can’t free themselves from fear?

Antonio Colinas – Envio

Lembras-te ainda do débil canto
do rouxinol perdido na ramagem?
Viste farfalhar comigo naquela noite
a copa do cipreste.
       Desfez-se
o céu em fios de luar sobre teu rosto.
Mas depois do pássaro e da lua
apagaram-se os astros.
       Vi passar
não sei que brisa estranha pelo teu corpo.
Lembras-te das nossas mãos na água?
Lembras-te do silêncio sobre o campo
e, como um deus exangue, do novo dia
incendiando as torres, as pombas?

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 11/10/2019

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Envío

¿Recuerdas todavía el débil canto
del ruiseñor perdido en la enramada?
Viste temblar conmigo aquella noche
la copa del ciprés.
       Desmadejó
el cielo hilos de luna por tu rostro.
Pero después del pájaro y la luna
se apagaron los astros.
       Vi pasar
no sé qué brisa extraña por tu cuerpo.
¿Recuerdas nuestras manos en el agua?
¿Recuerdas el silencio sobre el campo
y, como un dios sangrante, el nuevo día
incendiando las torres, las palomas?

Fatimah Asghar – Divisão

você é caxemire1 até que queimem sua casa. tomem seus pomares. finquem uma bandeira diferente. até que ninguém se lembre do caminho que traz você de volta. você é indiana até que tracem uma fronteira através do punjab. até que os capitães britânicos cuspam paki2 enquanto tomam seu chai e adicionem tanta espuma que você não consiga sentir o sabor de casa. você fala seraiki3 até que sua boca se encha de inglês. você é paquistanesa até que seus colegas perguntem o que é isso. então você volta a ser indiana. ou algum tipo de espanhola. você fala uma língua até que não fale mais. até que só a reconheça entre os lábios de sua tia. seu pai era fluente em quatro línguas. você é analfabeta nas línguas de seu pai. seu avô escrevia poesia persa em vidros. talvez. você não se lembra. você inventou. alguém mentiu. você é a filha até enterrarem sua mãe. até não ser convidada para o funeral de seu pai. você é virgem até ficar bêbada demais. você é muçulmana até não ser mais virgem. você é paquistanesa até começarem a jogar ácido. você é muçulmana até ser perigosa demais. você está a salvo até estar sozinha. você é americana até as torres caírem. até que haja uma fronteira nas suas costas. 

Trad.: Nelson Santander

N. do T.: 1. Fatimah Asghar é uma poeta, roteirista e educadora nascida em 1991 em Chicago, EUA, com raízes paquistanesas e kashmiris. Suas origens culturais influenciam profundamente sua poesia, que muitas vezes explora questões de identidade, pertencimento, diáspora e as interseções de diferentes culturas e identidades. Ela é uma voz importante na cena literária contemporânea, especialmente por sua exploração de temas de marginalização, trauma e resiliência. 2. “Paki”: gíria depreciativa e ofensiva usada para se referir a pessoas de origem ou descendência sul-asiática, especialmente do Paquistão. 3. Seraiki: língua indo-ariana falada predominantemente na região de Punjab, no Paquistão, além de partes do nordeste do Afeganistão e da Índia.

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Partition

you’re kashmiri until they burn your home. take your orchards. stake a different flag. until no one remembers the road that brings you back. you’re indian until they draw a border through punjab. until the british captains spit paki as they sip your chai, add so much foam you can’t 
taste home. you’re seraiki until your mouth fills with english. you’re pakistani until your classmates ask what that is. then you’re indian again. or some kind of spanish. you speak a language until you don’t. until you only recognize it between your auntie’s lips. your father was fluent in four languages. you’re illiterate in the tongues of your father.  your grandfather wrote persian poetry on glasses. maybe. you can’t remember. you made it up. someone lied. you’re a daughter until they bury your mother. until you’re not invited to your father’s funeral. you’re a virgin until you get too drunk. you’re muslim until you’re not a virgin. you’re pakistani until they start throwing acid. you’re muslim until it’s too dangerous. you’re safe until you’re alone. you’re american until the towers fall. until there’s a border on your back. 

Meira Delmar – Hóspede sem sombra

Nada deixam meus passos sobre a terra.
No momento do último passeio
hei de levar o que ao nascer me veio:
o rosto em paz e o coração em guerra.

Nenhuma voz repetirá a minha
de saudoso ardor e fiel espanto.
A voz estremecida com que canto
o mar, a rosa, a melancolia.

Não ressuscitará minha visão
da noite para a vida sempre ilesa,
a beber como um vinho a beleza
da iluminada e mágica amplidão.

Este sangue ébrio por formosura
não se tributará a outras veias.
Não tomarão, en passant, mãos alheias
a viva luz que em minhas mãos perdura.

Nem face que meu sonho mutilado
recolha e realize, triunfante.
Une o meu existir tempo presente
sem futuro depois do seu passado.

Conclusão de mim mesma, me rodeio
com o anel ofuscante do canto.
Inútil maré de paixão e pranto
Em mim naufraga o quanto vejo e creio.

Não lego minha solidão. Comigo
ela torna à orla do medo, ignota.
Meço em silêncio a última derrota.
Estremeço de dia. Mas não digo.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 10/10/2019

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Huésped sin sombra

Nada deja mi paso por la tierra.
En el momento del callado viaje
he de llevar lo que al nacer me traje:
el rostro en paz y el corazón en guerra.

Ninguna voz repetirá la mía
de nostálgico ardor y fiel asombro.
La voz estremecida con que nombro
el mar, la rosa, la melancolía.

No volverán mis ojos renacidos
de la noche a la vida siempre ilesa,
a beber como un vino la belleza
de los mágicos cielos encendidos.

Esta sangre sedienta de hermosura
por otras venas no será cobrada.
No habrá manos que tomen, de pasada,
la viva antorcha que en mis manos dura.

Ni frente que mi sueño mutilado
recoja y cumpla victoriosamente.
Conjuga mi existir tiempo presente
sin futuro después de su pasado.

Término de mí misma, me rodeo
con el anillo cegador del canto.
Vana marea de pasión y llanto
en mí naufraga cuanto miro y creo.

A nadie doy mi soledad. Conmigo
vuelve a la orilla del pavor, ignota.
Mido en silencio la final derrota.
Tiemblo del día. Pero no lo digo.