Timothy Liu – Thoreau

Meu pai e eu não temos para onde ir.
Sua esposa não nos deixa entrar em casa —
medo de contrair AIDS. Ela acredita que
dormir com homens é pior do que um pecado,
meu pai diz, enquanto nos sentamos no meio-fio
em frente à casa dos vizinhos.
Sessenta e quatro anos tornaram meu pai
impotente. Raízes grisalhas e tinta preta
desbotada manchando seus cabelos o fazem parecer
quase cômico, como se sua humilhação
fosse minha também. Ontem à noite lemos
Thoreau em um restaurante ali perto
e choramos: Se um homem não consegue acompanhar o passo
de seus companheiros, deixe-o viajar
ao compasso da canção que ele ouve, por mais
lenta ou longínqua que esta pareça. Os pomares
se foram, sua aldeia perto de Xangai
foi bombardeada pelos japoneses, os arvoredos
que conheci em Almaden — damascos,
nozes, pêssegos e ameixas — foram derrubados.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Thoreau

My father and I have no place to go.
His wife will not let us in the house—
afraid of catching AIDS. She thinks
sleeping with men is more than a sin,
my father says, as we sit on the curb
in front of someone else’s house.
Sixty-four years have made my father
impotent. Silver roots, faded black
dye mottling his hair make him look
almost comical, as if his shame
belonged to me. Last night we read
Thoreau in a steak house down the road
and wept: If a man does not keep pace
with his companions, let him travel
to the music that he hears, however
measured or far away.
 The orchards
are gone, his village near Shanghai
bombed by the Japanese, the groves
I have known in Almaden—apricot,
walnut, peach and plum—hacked down.

Raymond Carver – A cabine telefônica

Ela desaba na cabine, chorando
no telefone. Perguntando uma coisa
ou outra, e chorando um pouco mais.
Seu companheiro, um camarada mais velho,
usando jeans e camiseta, aguarda em pé
a sua vez de falar, e chorar.
Ela passa o telefone para ele.
Por um minuto eles ficam juntos
na minúscula cabine, as lágrimas dele
rolando junto com as dela. Então
ela vai se encostar no para-choque
do sedan. E fica escutando
enquanto ele toma providências.

Assisto a tudo isso do meu carro.
Eu também não tenho telefone em casa.
Fico sentado atrás do volante,
fumando, esperando para tomar
as minhas próprias providências. Logo depois
ele desliga. Sai da cabine e enxuga o rosto.
Eles entram no carro e se sentam
com as janelas erguidas.
O vidro vai embaçando, enquanto
ela se ampara nele, e ele coloca
o braço em volta de seu ombro.
Os mecanismos do consolo naquele espaço apertado e público.

Eu levo meus trocados até
a cabine, e entro.
Mas deixo a porta aberta, é tão
pequeno ali dentro. O telefone ainda está quente ao toque.
Detesto usar um telefone
que acabou de dar notícias de morte.
Mas preciso, já que é o único telefone
em quilômetros, e um que pode
ouvir sem tomar partido.

Insiro as moedas e aguardo.
As pessoas no carro também aguardam.
Ele dá a partida no motor, depois desliga.
Para onde? Nenhum de nós é capaz
de imaginar. Sem saber onde
o próximo golpe poderá cair,
ou por quê. O telefone para de chamar
quando ela atende do outro lado.
Antes que eu consiga dizer duas palavras, o telefone
começa a gritar: “Eu já disse que acabou!
Está tudo terminado! Por mim
você pode muito bem ir pro inferno!”

Ponho o fone no gancho e passo a mão
pelo rosto. Fecho e abro a porta da cabine.
O casal no sedan abaixa os vidros
das janelas e observa, suas lágrimas pausadas
por um momento em face daquela distração.
Depois sobem os vidros de novo
e se recolhem no carro. Por algum tempo
não vamos a parte alguma.
Depois vamos embora.

Trad.: Cide Piquet

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 10/04/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

The phone booth

She slumps in the booth, weeping
Into the phone. Asking a question
or two, and weeping some more.
Her companion, an old fellow in jeans
and denim shirt, stands waiting
his turn to talk, and weep.
She hands him the phone.
For a minute they are together
in the tiny booth, his tears
dropping alongside hers. Then
she goes to lean against the fender
of their sedan. And listens
to him talk about arrangements.

I watch all this from my car.
I don’t have a phone at home, either.
I sit behind the wheel,
smoking, waiting to make
my own arrangements. Pretty soon
he hangs up. Comes out and wipes his face.
They get in the car and sit
with the windows rolled up.
The glass grows steamy as she
leans into him, as he puts
his arm around her shoulders.
The workings of comfort in that cramped, public place.

I take my small change over
to the booth, and step inside.
But leaving the door open, it’s
so close in there. The phone still warm to the touch
I hate to use a phone
that’s just brought news of death.
But I have to, it being the only phone
for miles, and one that might
listen without taking sides.

I put in coins and wait.
Those people in the car wait too.
He starts the engine then kills it.
Where to? None of us able
to figure it. Not knowing
where the next blow might fall,
or why. The ringing at the other end
stops when she picks it up.
Before I can say two words, the phone
begins to shout, “I told you it’s over!
Finished! You can go
to hell as far as I’m concerned!”

I drop the phone and pass my hand
across my face. I close and open the door.
The couple in the sedan roll
their windows down and
watch, their tears stilled
for a moment in the face of this distraction.
Then they roll their windows up
and sit behind the glass. We
don’t go anywhere for a while.
And then we go.

Mary Oliver – Às vezes

1.

Algo emergiu
da escuridão.
Não era nada que eu já tivesse visto antes.
Não era um animal
ou uma flor,
a menos que fosse ambos.

Algo emergiu da água,
uma cabeça do tamanho da de um gato
mas enlameada e sem orelhas.
Eu não sei o que é Deus.
Eu não sei o que é a morte.

Mas creio que eles tenham entre si
algum acordo fervoroso e necessário.

2.

Às vezes
a melancolia me corta a respiração.

3.

Mais tarde, eu estava em um campo cheio de girassóis.
Eu sentia o ápice do verão.
Eu pensava no doce e elétrico
torpor da criação,

quando tudo começou a desmoronar.

A oeste, nuvens se acumularam.
Nuvens de tempestade.
Em uma hora o céu estava cheio delas.

Em uma hora o céu se encheu
com a doçura da chuva e o clarão dos relâmpagos.
Seguido pelo profundo som dos trovões.

Água dos céus! Eletricidade da fonte!
Ambas ansiosas para criar algo!

O clarão mais luminoso do que qualquer flor.
O trovão sem um único osso sonolento no corpo.

4.

Instruções para viver uma vida:
Esteja atento.
Deixe-se surpreender.
Fale sobre isso.

5.
Duas ou três vezes em minha vida encontrei o amor.
Todas as vezes, parecia resolver tudo.
Todas as vezes, resolveu muitas coisas,
mas não tudo.
No entanto, deixou-me tão grata como se tivesse de fato – e
completamente – resolvido tudo.

6.

Deus, repouse em meu coração
e me fortaleça,
afaste de mim essa ânsia por respostas,
deixe as horas dançarem em meu corpo

como as mãos do meu amado.
Deixe que a cabeça de gato apareça novamente —
o menor de seus mistérios,
algum primo selvagem de meu próprio sangue, provavelmente —
algum primo de meu próprio sangue selvagem, provavelmente,
na escura tigela do lago.

7.

A morte me espera, eu sei, em uma
ou outra esquina.
Isso não me diverte.
Tampouco me assusta.

Depois da chuva, voltei para o campo de girassóis.
Estava frio, e eu estava longe de sentir sono.
Caminhei lentamente, e ouvi

as raízes insanas, na terra encharcada, rindo e crescendo.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Sometimes

1.

Something came up
out of the dark.
It wasn’t anything I had ever seen before.
It wasn’t an animal
or a flower,
unless it was both.

Something came up out of the water,
a head the size of a cat
but muddy and without ears.
I don’t know what God is.
I don’t know what death is.

But I believe they have between them
some fervent and necessary arrangement.

2.

Sometimes
melancholy leaves me breathless.

3.

Later I was in a field full of sunflowers.
I was feeling the head of midsummer.
I was thinking of the sweet, electric
drowse of creation,

when it began to break.

In the west, clouds gathered.
Thunderheads.
In an hour the sky was filled with them.

In an hour the sky was filled
with the sweetness of rain and the blast of lightning.
Followed by the deep bells of thunder.

Water from the heavens! Electricity from the source!
Both of them mad to create something!

The lighting brighter than any flower.
The thunder without a drowsy bone in its body.

4.

Instructions for living a life:
Pay attention.
Be astonished.
Tell about it.

5.
Two or three times in my life I discovered love.
Each time it seemed to solve everything.
Each time it solved a great many things
but not everything.
Yet left me as grateful as if it had indeed, and
thoroughly, solved everything.

6.

God, rest in my heart
and fortify me,
take away my hunger for answers,
let the hours play upon my body

like the hands of my beloved.
Let the cathead appear again—
the smallest of your mysteries,
some wild cousin of my own blood probably—
some cousin of my own wild blood probably,
in the black dinner-bowl of the pond.

7.

Death waits for me, I know it, around
one corner or another.
This doesn’t amuse me.
Neither does it frighten me.

After the rain, I went back into the field of sunflowers.
It was cool, and I was anything but drowsy.
I walked slowly, and listened

to the crazy roots, in the drenched earth, laughing and growing.

Joan Margarit – O ano em que ela morreu

Na fotografia em sépia
és jovem e sorri. Faz-me lembrar
as mulheres dos filmes de guerra
da minha infância:
barcos na neblina, trens noturnos
e grandes cidades sob o alarme aéreo.
Na lápide está escrito que ela se foi
no inverno de 44,
aos vinte anos, quando me apaixonava
pela sufocante escuridão
cruzada por um raio de luz, a heroína
dos sonhos de amor de minha meninice.
A dura pedra
tem uma cavidade com água de chuva
onde os pássaros vão beber quando,
de casaco e cabelos grisalhos
desgrenhados pelo vento,
o narrador se afasta.
Tem o mesmo sonho nos olhos, em uma cidade,
em um cinema onde agora está só.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 09/04/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

El año em que murió

En la fotografía color sepia
es joven y sonríe. Me recuerda
a las muchachas de las películas de guerra
de mi infancia:
barcos entre la niebla, trenes nocturnos
y grandes ciudades bajo la alarma aérea.
En la losa está escrito que murió
en el invierno del cuarenta y cuatro,
a los veinte años, cuando me enamoraba
desde la bochornosa oscuridad
cruzada por un foco, la heroína
de los sueños de amor de mi niñez.
La dura piedra
tiene un hueco con agua de lluvia
donde beberán los pájaros cuando,
abrigo largo y pelo gris
desordenado por el viento,
se aleje el narrador.
Tiene el mismo sueño en los ojos, en una ciudad,
en un cine donde ahora está solo.

Tomas Tranströmer – Postais Pretos

I

O calendário está repleto; o futuro é incerto.
Os fios entoam uma canção folclórica apátrida.
A neve cai sobre o mar cinzento. Sombras
combatem no cais.

II

No meio da vida, eis que a morte chega
e tira nossas medidas. Essa visita logo
é esquecida, e seguimos com a vida. Mas a veste
segue sendo silenciosamente cosida.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Svarta vykort

I

Almanackan fullskriven, framtid okänd.
Kabeln nynnar folkvisan utan hemland.
Snöfall i det blystilla havet. Skuggor
brottas på kajen.

II

Mitt i livet händer det att döden kommer
och tar mått på människan. Det besöket
glöms och livet fortsätter. Men kostymen
sys i det tysta.

Manuel António Pina – Corpo Presente

Toda a casa suspendera
a respiração
incapaz de conter
tamanha desproporção,

e eu próprio desaparecera
algures na sala, entre a tua vida e a tua morte.
Atenderam o telefone
falando baixo,

temendo que regressasse
cada coisa do teu lugar
sem estar prontos ainda
para a tua solidão.

Faltava muito
para podermos perceber,
muitos passos para chegarmos
aonde sempre estivéramos:

mais perto do tédio do que da esperança,
da parte do que do todo,
vagueando ainda na tua ausência,
longe do céu e da ideia da morte.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 08/04/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Jan Heller Levi – Nada mal, pai, nada mal

Acho que você é mais você mesmo quando está nadando;
fatiando a água a cada braçada,
a maneira engraçada como respira, a boca arqueada
como se estivesse bocejando.

Você não é incrível nem péssimo
indo daqui para lá.
Você não ganharia nenhuma medalha, pai,
mas não se afogaria.

Penso em como tudo poderia ter sido diferente se eu
tivesse julgado seu amor
como julgo seu nado lateral, seu borboleta,
seu crawl.

Mas sempre pensei que estava me afogando
naquele oceano gelado entre nós,
sempre achei que você se movia muito devagar para me salvar,
quando você estava indo o mais rápido que podia.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Not Bad, Dad, Not Bad

I think you are most yourself when you’are swimming;
slicing the water with each stroke,
the funny way you breathe, your mouth cocked
as though you’re yawning.

You’re neither fantastic nor miserable
at getting from here to there.
You wouldn’t win any medals, Dad,
but you wouldn’t drown.

I think how different everything might have been
had I judged your loving
like I judge your sidestroke, your butterfly,
your Australian crawl.

But I always thought I was drowning
in that icy ocean between us,
I always thought you were moving too slowly to save me,
when you were moving as fast as you can.

Luís García Montero – Resumo dos fatos

Falei com a morte por telefone
e recebi e-mails de amor que foram apagados
sem deixar uma única lágrima em papel amarelo.
Ninguém esqueça os tempos, mas ninguém se engane:
no final, apenas o amor e a morte importam.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 05/04/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Resumen de los hechos

He hablado con la muerte por teléfono
y he recibido e-mails de amor que se borraron
sin dejar una lágrima de papel amarillo.
Nadie olvide los tiempos, pero nadie se engañe:
al final sólo importan el amor y la muerte.

Paul Guest – 2020

Talvez seja preciso abraçar a decepção.
Da maneira como você não consegue dormir à noite,
sonhando com a poeira nos móveis
e o agradável odor de madeira compensada
e como é a sensação de descascar a pele
do polegar. Talvez você deva começar
aquele romance perfeito que irá
salvá-lo. Livrar você das rubras garras
de um monstro que está bem ali
além de sua visão falha. Não hoje,
Satã, ou Ronald Reagan —
você aprende que muitas vezes o mal não é uma questão de
nuance. Estava chovendo
no dia em que nasci,
e anos depois, eu não aprendi muito mais
sobre as estrelas: fogo
e luz fria flutuando na escuridão do cosmos.
Na noite passada, li sobre
os médicos que removeram 526 dentes
da mandíbula de um menino moribundo:
por um tempo, eles temeram que aquilo não tivesse fim.
Que a dor dele fosse infinita.
Suas mãos estavam presas.
Fragmentos de ossos brancos dispostos em espiral
ao lado de seu rosto adormecido
e era lindo e uma prova do divino.
Bem, não exatamente. Talvez você
não seja real, não esteja ouvindo o vento
que percorre a noite
como uma triste prece sob o céu pontilhado.
Talvez. Só talvez as coisas melhorem.
Espere um ano.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

2020

Maybe you need to embrace disappointment.
The way you don’t sleep at night,
dreaming of dry dust on furniture
and the pleasant odor of plywood
and what it feels like to peel skin off
of your thumb. Maybe you should begin
that perfect novel which will
save you. Pluck you from the ruddy jaws
of a monster that is right there
beyond your failing sight. Not today,
Satan, or Ronald Reagan—
you learn that often enough evil is not about
nuance. It was raining
the day I was born
and years later I haven’t learned much more
about the stars: fire
and cold light afloat in the murk of the cosmos.
Last night I read about
the doctors who removed 526 teeth
from a boy’s dying jaw:
hours in they feared there was no end to it.
That his pain was infinite.
Their hands trapped.
Bits of white bone arrayed in a spiral
beside his sleeping face
and it was lovely and an evidence of the divine.
Well, not really. Maybe you
aren’t real, aren’t listening to the wind
as it goes through the night
like a sad prayer beneath the stippled sky.
Maybe. Just maybe things will get better.
Give it a year.

Carlos Poças Falcão – A luz coada num pano negro

Lamenta-te, pois já não é alegre
o vento sobre os campos.
Não há descoberta nem transfiguração
quando o calendário vem com as primícias.

Lamenta-te, lamenta-te.
Já não tens a nudez certa
nem a fragrância antiga.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 03/04/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog