Sharon Olds – Poema tardio para meu pai

De repente, você me veio à mente
como uma criança naquela casa, os cômodos escuros
e a lareira acesa com o homem diante dela,
silente. Você se movia pelo ar pesado
em sua beleza física, um menino de sete anos,
indefeso, esperto, havia coisas que o homem
fazia perto de você, e ele era seu pai,
o molde que o formou. Lá embaixo, no
porão, os barris de maçãs doces,
colhidas no topo da árvore, apodreciam e
apodreciam, e além da porta do porão
o riacho fluía e fluía, e algo não
foi dado a você, ou algo com que
você nasceu lhe foi tirado, de modo que
mesmo aos 30 e 40 anos você aplicava o
remédio oleoso nos lábios
todas as noites, a poção para ajuda-lo
a cair inconsciente. Sempre pensei que o
problema era o que você fez conosco
quando adulto, mas então me lembrei daquela
criança sendo formada diante do fogo, dos
ossos delicados dentro de sua alma,
quebrados como ramos verdes, os pequenos
tendões que mantêm o coração no lugar
rompidos. E o que fizeram com você,
você não fez comigo. Quando o amo agora,
gosto de pensar que estou dando meu amor
diretamente àquele menino na sala escaldante,
como se pudesse alcançá-lo a tempo.

Trad.: Nelson Santander

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Late Poem to My Father

Suddenly I thought of you
as a child in that house, the unlit rooms
and the hot fireplace with the man in front of it,
silent. You moved through the heavy air
in your physical beauty, a boy of seven,
helpless, smart, there were things the man
did near you, and he was your father,
the mold by which you were made. Down in the
cellar, the barrels of sweet apples,
picked at their peak from the tree, rotted and
rotted, and past the cellar door
the creek ran and ran, and something was
not given to you, or something was
taken from you that you were born with, so that
even at 30 and 40 you set the
oily medicine to your lips
every night, the poison to help you
drop down unconscious. I always thought the
point was what you did to us
as a grown man, but then I remembered that
child being formed in front of the fire, the
tiny bones inside his soul
twisted in greenstick fractures, the small
tendons that hold the heart in place
snapped. And what they did to you
you did not do to me. When I love you now,
I like to think I am giving my love
drectly to that boy in the fiery room,
as if it could reach him in time.

Ian Hamilton – Lamento

Fiz o que pude. Meus garotos correm soltos agora.
Eles buscam oportunidades enquanto a mãe deles apodrece aqui.
E rua acima, o homem,
Meu único homem, que me tocou em todos os lugares,
Desmancha-se sob a terra.

Sou triste, obtusa, velha e alienada.
À noite, sinto minhas mãos vagando sobre mim,
Sondando meus seios, meus joelhos,
As dobras do meu ventre,
Vez ou outra pressionando e às vezes,
Em sua fome, dilacerando-me.
Vivo só.

Meus garotos correm, deixando a mãe deles como se fosse um calhau
Rolando no recreio depois que tocou o sinal.
Acumulo poeira e quase desejo a sepultura.
Ter bichinhos habitando em mim já seria algo.
Mas aqui, aos oito novamente, observo os brotos desabrochando
Além deste quintal.
Eu sei como me comportar.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 07/05/2019

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Complaint

I’ve done what i could. My boys run wild now.
They seek their chances while their mother rots here.
And up the road, the man,
My one man, who touched me everywhere,
Falls to bits under the ground.

I am dumpy, obtuse, old and out of it.
At night, i can feel my hands prowl over me,
Lightly probing at my breasts, my knees,
The folds of my belly,
Now and then pressing and sometimes,
In their hunger, tearing me.
I live alone.

My boys run, leaving their mother as they would a stone
That rolls on in the playground after the bell has gone.
I gather dust and i could almost love the grave.
To have small beasts room in me would be something.
But here, at eight again, i watch the blossoms break
Beyond this gravel yard.
I know how to behave.

Ross Gay – Homem tenta cometer suicídio com uma besta

For Thomas Lux

E fracassa. Primeiro, imagine a arma
apontada para o céu, logo abaixo do queixo. Após o rápido
clique do gatilho, o seguinte: o que, para esse
não-morto, deve ter soado como o estratosférico estrondo de um foguete,
o que significa dizer que a seta
coroou sua copa (ou seja, fixou-se). Nesse ponto, com a cabeça
agora espetada, o tal não-morto conseguiu
o discernimento necessário para desrosquear a haste
do pequeno projétil alojado e removê-lo. E ir
andando até o pronto-socorro.
Gosto de pensar
que a graça assume formas estranhas: o alívio
da seta para o uivo dos neurônios.
Pensar nessa caminhada sob a noite aveludada.
Acompanhe-me. Não pense
em dor de cabeça. Em vez disso,
pense: a ancestral luz das estrelas aquecendo
seu chifre recém-brotado.

Trad.: Nelson Santander

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Man Tries to Commit Suicide With a Crossbow

For Thomas Lux

And fails. First, imagine the weapon
pointing heavenward beneath his chin. After the trigger’s
quick tick, the following: what, for said
undead, must have sounded like a rocket’s stratospheric crash,
which is to say the arrow just
crested the crown (i.e. it got stuck). At which point, the head
now a kebob, said undead had
the wherewithal to unscrew the skewer
from the little lodged missile and pull it out. To walk
to the emergency room.
I love to think
grace takes strange shapes: the arrow
balm to the howl of neurons.
To think of that walk beneath the velvet night.
Stay with me. Don’t think
headache. Think
instead: the stars’ ancient light warming
his just budding horn.

Paulo Henriques Britto – Lacrimæ rerum

É o lamento das coisas,
a desdita da matéria.
Não tem nada a ver conosco,
com nossa breve miséria,

nosso orgulho de organismo.
É uma questão de moléculas,
que antecede a biologia
por coisa de muitos séculos.

Diante dessa dor arcana
nosso entendimento pasma.
Nem tudo está a vosso alcance,
ó seres de protoplasma.

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Ursula K. Le Guin – Somos poeira

Somos poeira em sofrimento.
A luz brilha através de nós
como através do spray das ondas, poeira de líquido*
estourando, ou da chuva que cai.

Trad.: Nelson Santander

N. do T.: A escolha dos versos “poeira de líquido / estourando” nesta tradução busca, dentro do possível, preservar a ambiguidade dos versos “dust of water / breaking” no poema original. Esses versos podem ser interpretados de duas maneiras: como vapor gerado pela água que se quebra na praia, evocando imagens de ondas do mar, ou como o rompimento da bolsa de líquido amniótico, associado ao nascimento (em inglês a expressão “water break” serve para designar também o estouro do saco amniótico). Assim, os versos “poeira de líquido / estourando” buscam manter, em nosso idioma, a dualidade de significados presentes no original, destacando a vulnerabilidade e a renovação inerentes à experiência humana.

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We are dust

We are dust in pain.
The light shines through us
as through wave-spray, dust of water
breaking, or the falling rain.

Ian Hamilton – Admissão

Os lábios rachados do porteiro noturno uniformizado
Murmuram horrivelmente contra o vidro embaçado
De nossa ambulância escura.
Nossa aflição
Inspira um único olhar marcial de desdém
E logo ele nos indica o caminho, para a “Pátria”.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 18/04/2019

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Admission

The chapped lips of the uniformed night-porter
Mumble horribly against the misted glass
Of our black ambulance.
Our plight
Inspires a single, soldierly, contemptuous stare
And then he waves us on, to Blighty.

Gerard Smyth – A caminho

Estamos em um trem que segue em direção ao mar.
Os nomes das estações estão no meio do caminho
entre dois idiomas. A paisagem é austera,
como se à espera de um ataque.
Tudo está em seu devido lugar.
Tudo repousa ali sem se mover:
o lodo no fundo do lago, a areia
que alcançou a praia.
A quietude nos questiona sobre o que estamos fazendo
com nossas almas.

Uma sombra como um longo cortejo
acompanha o trem.
Vilarejos e cemitérios passam em sequência, um após o outro.

O vagão está cheio:
há muitas mãos exaustas de tanto acenar em despedida.
As faces sonhadoras na janela do vagão
ostentam olhos que deixaram seu olhar em algum outro lugar,
bem lá atrás.
A janela está aberta, permitindo a entrada
de uma liberdade com a extensão de todo o horizonte.

Trad.: Nelson Santander

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On the way

We are on a train going toward the sea.
The names of the stations are halfway
between two languages. The landscape is grim,
as if waiting for an attack.
Everything’s in place.
Everything lies there without moving:
the mud at the bottom of the lake, the sand
that has stepped ashore.
The stillness asks us what we are doing
with our souls.

A shadow like a long funeral
accompanies the train.
Villages, cemeteries go in tandem after each other.

The carriage is crowded:
there are many hands worn out from waving goodbye.
The dream-faces in the carriage window
have eyes that left their gaze somewhere else
far behind.
The window is open, letting in
a freedom the width of the whole horizon.

Manuel Halpern – Domingo de manhã

Quantos homens
se apaixonam por ti
ao sábado à tarde
enquanto passeiam os filhos
no parque
e se distraem
do balanço
do baloiço
na adivinhação
das partes do corpo
que trazes tapadas

Mal sabem que a tua solidão
não se preenche
com a desventura erótica
de um corpo
que te cubra
sem consolo
Não há falta
de quem se deite
contigo
sábado à noite
apenas quem acorde
ao teu lado
domingo de manhã

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 17/04/2029

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Ross Gay – Como aprender a amar o seu pai

Coloque suas mãos sob as axilas dele, dobre os joelhos,
aguarde o encaixe de seus braços que afinam; o melhor abraço
é face a face. Movimente-se devagar. Procure não se lembrar,
neste momento, das formas que ele traçou ontem
em suas costas, momentos antes de ser levado para a cirurgia.
Não finja que a ansiosa caligrafia do toque
era um sinal além de algum inexprimível gaguejo animal. Não
retorne ao cenário de silêncio que ambos
cultivaram, com corpo e respiro, até quase ocultar tudo,
exceto a gravidade genética entre vocês.
E não imagine o vento agora soprando aquele cenário
em um rio que deságua no mar. Porque não é assim que acontece.
Este não é um poema de amor. Neste poema de amor,
o filho se treina para a tarefa à mão,
que é simples, que é, em última instância, a única tarefa
que alguma vez teve: a de colocar
seu pai em pé.

Trad.: Nelson Santander

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How To Fall in Love With Your Father

Put your hands beneath his armpits, bend your knees,
wait for the clasp of his thinning arms; the best lock
cheek to cheek. Move slow. Do not, right now,
recall the shapes he traced yesterday
on your back, moments before being wheeled to surgery.
Do not pretend the anxious calligraphy of touch
was sign beyond some unspeakable animal stammer. Do not
go back further into the landscape of silence you both
tended, with body and breath, until it nearly obscured all
but the genetic gravity between you.
And do not imagine wind now blowing that landscape
into a river which spills into a sea. Because it doesn’t.
That’s not this love poem. In this love poem
the son trains himself on the task at hand,
which is simple, which is, finally, the only task
he has ever had, which is lifting
the father to his feet.

Ángel González – Aniversário

Eu percebo: como estou me tornando
mais incerto, confuso,
dissolvendo-me no ar
cotidiano, bruto
pedaço de mim, desgastado
e em frangalhos.

Eu compreendo: vivi
mais um ano, e isso é muito duro.
Pulsar o coração todos os dias
quase cem vezes por minuto!

Viver um ano requer
morrer muito muitas vezes.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 15/04/2019

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Cumpleaños

Yo lo noto: cómo me voy volviendo
menos cierto, confuso,
disolviéndome en aire
cotidiano, burdo
jirón de mí, deshilachado
y roto por los puños.

Yo comprendo: he vivido
un año más, y eso es muy duro.
¡Mover el corazón todos los días
casi cien veces por minuto!

Para vivir un año es necesario
morirse muchas veces mucho.