Ivan Junqueira – A tua data

Alguém só morre em sua data,
que é única, ôntica, enfática.
Nunca depende de quem vai
nem de quem fica ao pé da lápide.

É quando o corpo, enfim, se acaba,
e, se dele a alma se aparta,
não cabe a ninguém afirmá-lo,
nem se a tinha, em vida, o finado.

É quando as lâmpadas se apagam
e trocam-se então os cenários,
as máscaras, as personagens
e tudo o que havia no palco.

Não mais as luzes da ribalta,
nem da plateia o eco das palmas
ou, no teu caso, as duras vaias
pois que pífio foi o espetáculo.

É quando, tudo terminado,
já não te servem as palavras,
e muito menos as metáforas,
algo impróprias aos epitáfios

ou aos prosaicos obituários
em que tua vida é louvada,
não toda, é claro, pois de lado
ficam os crimes e as trapaças.

Até que vem teu centenário.
Frases, fotos, toda uma farta
recordação do que deixaste:
poemas, ensaios, prefácios,

talvez uma obra laureada,
mas de que hoje ninguém mais fala.
Há quem se lembre de um parágrafo,
de um pobre verso desgarrado.

E o resto – teus feitos, as pálidas
mulheres que amaste, as medalhas,
os troféus – se esvai rumo ao nada
ao som das fanfarras da praça.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 14/12/2018

Joan Kwon Glass – Novembro

Estamos no início de novembro
e minha filha não se
impressiona mais com as folhas que caem.
Ela me diz que, a partir de agora,
devo pedir permissão para abraça-la,
e a resposta costuma ser não.
As nozes se espalham pelo pátio da escola
ao lado de nossa casa e os esquilos
executam sua corrida frenética,
perseguindo-se uns aos outros nos carvalhos,
parecendo desafiar a gravidade,
regozijando-se e festejando
apesar do céu escuro.
Um carvalho pode produzir
até 10.000.000 de nozes
durante sua vida. Imagine
mil novembros,
seus filhos se afastando.
Observando como eles são transformados,
esmagados ou consumidos,
quase perto o bastante
para você tocar.

Trad.: Nelson Santander

November

It is early November
and my daughter is no longer
impressed by falling leaves.
She tells me that from now on
I should ask if I can hug her
and the answer is usually no.
Acorns litter the schoolyard
next to our house and squirrels
perform their manic dash,
chasing each other up the oak trees,
seeming to defy gravity,
rejoicing and feasting
in spite of the darkening sky.
One oak tree can bear
up to 10,000,000 acorns
in its lifetime. Imagine
a thousand Novembers,
your young dropping away.
Watching as they are transformed
crushed or consumed,
almost close enough
for you to touch.

Paulo Henriques Britto – Nenhum Mistério

I

Não chega a ser desespero,
mas não por haver esperança.
Falta a ênfase, o tempero,
o sal da intemperança,

sem o qual não é iguaria
à altura de grandes gestos.
É mais da categoria
das migalhas, dos restos.

Pois dessa matéria escassa
há que se tirar sustância.
(Até mesmo na desgraça
é pra poucos a abundância.)

II

Não há nenhum mistério nesta história
em que o culpado se anuncia
ainda na primeira hora,

e são tão copiosas as pistas
quanto inúteis, e o final
– que, é claro, já se sabia

desde o início – é banal,
melancólico, besta
e isento de moral.

Mesmo assim, esta
é a história lida
até por quem detesta

toda a inútil narrativa,
até por não haver alternativa.

III

Seria igual se fosse diferente,
seria – sendo outro – mais do mesmo.
Tome-se alguma alternativa, a esmo,
e a leva adiante: tente o que se tente,

acaba-se chegando sempre ao ponto
exato de onde se partiu (o nada).
E o mais é igual, qualquer que seja a estrada,
não por ser o planeta tão redondo,

e sim por ser estreito o repertório
de mundos disponíveis, porque a margem
é tão parca nas bordas do papel.

Assim, qualquer desvio aleatório
por fim se reduz a mera miragem,
um nada – nada novo – sob o céu.

IV

A posição de tudo ao seu redor
(a pele de uma bolha):
resultado final (desolador)
de mil acasos, mil escolhas,

todas suas. Aranha em sua teia,
olho de furacão
que tudo vê e de tudo se alheia:
só consciência e solidão.

V

É, sem tirar nem pôr, exatamente
como no pesadelo. É o lugar
onde se está agora. O presente.

Impossível fugir desta presença,
e impensável. Estar aqui é pensar,
e pensar é sempre ser o que pensa,

e o que pensa dispensa o sonho, certo
de que só o estar onde se está importa.
E no entanto este teto tão perto

da cabeça, este chão frio demais,
estas paredes pensas, esta porta
que fecha como quem não se abre mais –

como não reconhecer isso, ao vê-lo?
É tudo tal como no pesadelo.

VI

Permanecer aqui,
apesar e além.
Estar, mesmo assim,
mesmo sem.

Efeito talvez
da inércia de ser:
mesmo não querendo,
não poder.

Ou então um símile
cru e exato:
como comer após cuspir
no prato.

VII

Chega um momento em que as mãos
já não querem cumprir ordens.
Não pegam mais, não apertam,
e sim mordem.

Os olhos se cansam da luz,
os pés desprezam os pisos,
a mente rejeita todo e
qualquer juízo.

E o rosto – este velho disfarce
velhaco, por trás do qual
não há outra coisa senão
uma máscara igual,

o rosto nem mesmo se esforça
pra parecer que não é outro.
(Já, já não será mais preciso
fingir-se de morto.)

VIII

Zelosamente se procura
o mal preciso tão sonhado
de que o remédio já encontrado
seria a cura.

Pois é mister que se aproveite
o que se tem, por mais daninho,
que da pedra que há no caminho
se extraia o leite.

Caso contrário, há que abrir mão
do pouco que ao menos parece
real e sólido,

o que seria catastrófico
(mas também seria uma espécie
de solução).

IX

Cada objeto está em seu lugar,
menos um.
Cada ser tem razão de ser ou estar,
menos um.
Todos têm uma causa e uma razão,
menos um.
Nenhum deles requer explicação,
menos um.
E saberão o quanto são pequenos?
(Mais é menos.)

X

Dentro da noite por fim construída
há tempo para tudo, e muito espaço.
Longas janelas. Cortinas corridas.
Nos armários vazios, grandes chumaços

de algodão a preencher cada centímetro
cúbico de cada compartimento
e gaveta. Na parede, um termômetro
no qual ninguém dá corda há muito tempo.

Nas prateleiras, livros entulhados
de palavras que escorrem devagar,
formando umas poças ralas no chão.

É uma espécie de véspera. Calados,
os cômodos esperam o raiar
de alguma coisa como um dia. Ou não.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 13/12/2018

Mary Ruefle – Desconstrução

Acho que as sereias de A Odisseia cantaram A Odisseia,
pois não há nada mais atraente, mais terrível,
do que a história de nossa própria vida, aquela que não
queremos ouvir e faremos de tudo para escutar.

Trad.: Nelson Santander

Deconstruction

I think the sirens in The Odyssey sang The Odyssey,
for there is nothing more seductive, more terrible,
than the story of our own life, the one we do not
want to hear and will do anything to listen to.

Amalia Bautista – Nu de Mulher

Para ti nunca passei de um bloco
de mármore. Esculpiste nele o meu corpo,
um corpo de mulher branco e formoso,
em que não viste nada a não ser pedra
e o orgulho, isso sim, do teu trabalho.
Nunca imaginaste que eu te amava
e que tremia quando, docemente,
me modelavas os seios e os ombros,
ou alisavas as coxas e o ventre.
Hoje, estou num jardim, onde suporto
os rigores do frio pelo Inverno,
e no Verão aqueço de tal modo
que nem sequer os pardalitos vêm
pousar nas minhas mãos pois estas queimam.
Mas, de tudo isto, o que mais me dói
é baixar a cabeça e ver a placa:
”Nu de mulher”, como há tantas outras.
Nem te lembraste de me dar um nome.

Trad.: Inês Dias

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 11/12/2018

Amalia Bautista – Desnudo de Mujer

Para ti nunca fui más que un pedazo
de mármol. Esculpiste en él mi cuerpo,
un cuerpo de mujer blanco y hermoso,
en el que nunca viste más que piedra
y el orgullo, eso sí, de tu trabajo.
Jamás imaginaste que te amaba
y que me estremecía cuando, dulce,
moldeabas mis senos y mis hombros,
o alisabas mis muslos y mi vientre.
Hoy estoy en un parque, donde sufro
los rigores del frío en el invierno,
y en verano me abraso de tal modo
que ni siquiera los gorriones vienen
a posarse en mis manos porque queman.
Pero, de todo, lo que más me duele
es bajar la cabeza y ver la placa:
«Desnudo de mujer», como otras muchas.
Ni de ponerme un nombre te acordaste.

Randall Jarrell – O rosto

O Rosto

          Die alte Frau, die alte Marschallin!*

Não é mais agradável, tampouco belo,
Nem mesmo jovem.
Este não é o meu.
Onde está o antigo, os anteriores?
Aqueles eram os meus.

É assim: eu tenho fotos,
Mas não tão antigas; as pessoas se comportavam
De forma diferente antigamente… quando me encontram hoje, dizem:
Você não mudou.
Eu quero responder: é você que não notou.

Isso é o que acontece com todos.
No início, você cresce, você sabe mais,
Então algo dá errado.
Você é, e você diz: Eu sou —
E você era… Eu fui por muito tempo.

Eu sei, não tem como dizer não.
Mas mesmo assim você o diz. Não.
Apontarei para mim mesmo e direi: eu não sou assim.
Por dentro, sou o mesmo de sempre.
— E mesmo isso não é verdade.

Eu pensava: se nada acontecer…
e nada aconteceu.

Aqui estou eu.
                Mas isso não está certo.
Se apenas viver pode fazer isso,
Viver é mais perigoso do que tudo:

É terrível estar vivo.

Trad.: Nelson Santander

* N. do T.: “Die alte Frau, die alte Marschallin!” é uma citação da ópera “O Cavaleiro da Rosa”, de Richard Strauss, e pode ser traduzida livremente como “A velha senhora, a velha marechala!”. A ópera conta a história da Marschallin, uma mulher nobre que percebe que seu amante Octavian está apaixonado por outra mulher mais jovem, Sophie. A frase é uma observação de Marschallin, que está envelhecendo e percebe que não é mais jovem e bela como antes.

The Face

               Die alte Frau, die alte Marschallin!

Not good any more, not beautiful—
Not even young.
This isn’t mine.
Where is the old one, the old ones?
Those were mine.

It’s so: I have pictures,
Not such old ones; people behaved
Differently then…when they meet me they say:
You haven’t changed.
I want to say: You haven’t looked.

This is what happens to everyone.
At first you get bigger, you know more,
Then something goes wrong.
You are, and you say: I am—
And you were…I’ve been too long.

I know, there’s no saying no.
But just the same you say it. No.
I’ll point to myself and say: I’m not like this. 
I’m the same as always inside.
—And even that’s not so.

I thought: if nothing happens…
and nothing happened.

Here I am.
                But it’s not right.
If just living can do this,
Living is more dangerous than anything:

It is terrible to be alive.

América, Aztecas – O rio passa, passa

O rio passa, passa
e nunca cessa.
O vento passa, passa
e nunca cessa.
A vida passa:
nunca regressa.

Versão: Herberto Helder

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 10/12/2018

Sharon Olds – Destino

Finalmente desisti e me tornei meu pai,
sua face oleosa e abatida, brilhando para
qualquer pessoa que eu olhasse, seus olhos castanhos-lodo
em meu rosto, cintilando como chão molhado em que
as coisas que amamos caíram,
e se perderam para sempre. Não mais tentei
não ter o mau hálito dele,
sua postura derrotada de fracasso, seu triste
sexo pendurado entre suas coxas, seu estômago
inchado e vazio. Entreguei-me
ao meu verdadeiro eu, encarei o mundo
através da sua perspectiva amarga, de sua visão acre e
turva, flutuei em suas lágrimas.
Vi o mundo inteiro brilhar
com o êxtase da sua dor, e eu
mesma, ele, eu, brilhei,
minhas porosas e oleosas bochechas, glaucas
como tulipas, a rica textura das pétalas,
o bulbo oculto no solo escuro,
preso, enraizado, seguro de seu lugar de direito.

Trad.: Nelson Santander

Fate

Finally I just gave up and became my father,
his greased, defeated face shining toward
anyone I looked at, his mud-brown eyes
in my face, glistening like wet ground that
things you love have fallen onto
and been lost for good. I stopped trying
not to have his bad breath,
his slumped posture of failure, his sad
sex dangling on his thigh, his stomach
swollen and empty. I gave in
to my true self, I faced the world
through his sour mash, his stained acrid
vision, I floated out on his tears.
I saw the whole world shining
with the ecstasy of his grief, and I
myself, he, I, shined,
my oiled porous cheeks glaucous
as tulips, the rich smear of the petal,
the bulb hidden in the dark soil,
stuck, impacted, sure of its rightful place.

Ian Hamilton – Memorial

Quatro lápides gastas apoiam-se na parede
do teu asilo Vitoriano.
Além dos limites, ajoelhas-te na grama alta
Decifrando nomes apagados:
Velhos lunáticos que aqui morreram.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO com alterações na tradução: poema publicado anteriormente na página originalmente em 09/12/2018

Ian Hamilton – Memorial

Four weathered gravestones tilt against the wall
Of your Victorian asylum.
Out of bounds, you kneel in the long grass
Deciphering obliterated names:
Old lunatics who died here.

Ellen Bryant Voigt – A cúspide

Tão poucos pássaros — os que passam o inverno
e os gansos migrando pelos campos vazios,
atravessando as hastes retorcidas de milho cortado:
ao nosso redor, tudo o que é verde é suprimido,
e na melancólica floresta, as árvores nuas,
despidas de folhas ou quase sem elas,
formam uma morada sombria entre nuvens baixas
que têm o aspecto de neve obstinada.

Em um exercício puramente científico —
digamos que você veio da lua, ou, como
Lázaro, retornou piscando da caverna —
você não saberia se o inverno já passou ou se está apenas começando.
A margem se eleva, a margem desce em direção à vala.
Seria útil se eu dissesse que o luto tem um fim?
Faria diferença se eu dissesse que estamos na primavera?

Trad.: Nelson Santander

The Cusp

So few birds—the ones that winter through
and the geese migrating through the empty fields,
fording the cropped, knuckled stalks of corn:
all around us, all that’s green’s suppressed,
and in the brooding wood, the bare trees,
shorn of leaves or else just shy of leaves,
make a dark estate between low clouds
that have the look of stubborn snow.

In a purely scientific exercise—
say you came from the moon, or returned
like Lazarus, blinking from the cave—
you wouldn’t know if winter’s passed or now beginning.
The bank slopes up, the bank slopes down to the ditch.
Would it help if I said grieving has an end?
Would it matter if I told you this is spring?