Paulo Henriques Britto – “Da metafísica”

Ser parte de alguém ou algo
tão grande que não se entenda:
toda crença, ao fim e ao cabo,
se resume a essa lenda –

o mais rematado dislate,
coisa jamais entendida,
que eleva ao sumo quilate
o caco mais reles de vida.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 04/11/2018

A. E. Stallings – Lógica de conto de fadas

Os contos de fadas estão repletos de tarefas irreais:
Juntar os pelos do queixo de uma cabra que os homens devora,
Ou cruzar um lago sulfúrico em uma danificada igara,
Escolher o príncipe de uma fila de máscaras iguais,
Caminhar na ponta dos pés até onde se aquece um dragão
E roubar-lhe um osso; contar partículas de areia, grão por grão,
Ou uma lista telefônica inteira memorizar.
Sempre será impossível o que alguém irá requisitar —

Você tem que combater a magia com magia. Crer
Que traz consigo algo escondido impossível de se ver,
A linguagem das serpentes, talvez, uma capa de invisibilidade,
Um exército de formigas à sua disposição, uma letal jocosidade,
A vontade de fazer o que tem que ser feito:
Casar com um monstro. Dar em sacrifício o primogênito.

Trad.: Nelson Santander

Fairy-tale Logic

Fairy tales are full of impossible tasks:
Gather the chin hairs of a man-eating goat,
Or cross a sulphuric lake in a leaky boat,
Select the prince from a row of identical masks,
Tiptoe up to a dragon where it basks
And snatch its bone; count dust specks, mote by mote,
Or learn the phone directory by rote.
Always it’s impossible what someone asks—

You have to fight magic with magic. You have to believe
That you have something impossible up your sleeve,
The language of snakes, perhaps, an invisible cloak,
An army of ants at your beck, or a lethal joke,
The will to do whatever must be done:
Marry a monster. Hand over your firstborn son.

Miguel-Manso – Na morte da avó

não bastasse a humilhação pública de morrer
espera-se do corpo que cumpra com indiscutível
pompa o intolerável protocolo de ausentar-se

a penosa execução circular e noturna do velório
a presença inconveniente dos agentes funerários
os adereços lutuosos a obscena maquiagem

no dia seguinte, o inventário das orações, a concisa
cerimônia (não há muito a dizer, sejamos honestos
e soa até a insulto que se pronuncie o nome de

Lázaro) o caixão é fechado, o dia põe-se bonito
– é quase tão imoral como alguém ter trazido uma
gravata com motivos facetos, uma camisa florida –

depois, em casa, parece que as vozes ressoam como numa
sala a que tivessem subtraído os móveis e houvesse, por isso
a estranheza de uma extensão desprovida, dissemelhante

o avô vai buscar as memórias da infância (por que
razão obscura omite ele as lembranças de casado?) há
na sua voz qualquer coisa de paciente melancolia

como se aceitasse, com constrangedora submissão, que
o tempo não se detenha nunca, que os anos nos empurrem
para um buraco na terra, nos sujeitem a tão bruta descortesia

a prontidão da morte, a ligeireza do tempo, a estupidez
da vida que nunca vai encontrar cura e razão para ela própria
contra tudo isso eu alardeio o poema, antecipo a derrota

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 02/11/2018

James Tate – A volta para casa

Eu disse ao médico que nunca mais o veria. “Não, acho
que não”, ele disse. Saí pela porta me sentindo realmente bem.
Claro, eu sabia que ia morrer, mas ainda assim o dia parecia claro
para mim. Caminhei até o lago. Patos circulavam ao redor por ali.
Vi um veleiro passar. Prossegui ao longo da margem. O sol batia
em meu corpo. Senti como se pudesse viver para sempre. Sentei-me em um banco
e fiquei observando as pessoas que passavam. Uma loira bonita passou e eu disse:
“Olá”. Ela olhou para mim e disse olá. Passou também um homem
com um galgo na coleira. Levantei-me e continuei a caminhada. Um pica-pau
bicava uma árvore. Um avião sobrevoava o céu, deixando um denso rastro de
fumaça atrás de si. Deixei o lago para trás e subi a estrada. Atravessei nos
semáforos e cruzei a ponte. Um carro desviou para não me atingir.
Pensei que poderia ter sido o meu fim ali mesmo, mas continuei caminhando,
esquivando-me bravamente dos carros. Quando cheguei à área residencial,
senti-me aliviado. Havia grandes olmos e carvalhos pendendo sobre a rua,
e pessoas empurrando carrinhos de bebê. Cães corriam soltos por toda parte. Um homem
me parou e perguntou se eu sabia onde ficava a Walnut Street, 347. Respondi
que não sabia, e ele disse: “Bem, de qualquer forma, não importa”. “Por quê?”, perguntei.
Ele disse que era um velório. Continuei caminhando, e esbarrei em uma senhora gorda
com muitas compras. Pedi desculpas. Ela continuou andando, deixando cair
um saco de toranjas. Então, mais adiante, houve uma explosão gigante do outro lado
da rua. A polícia e os bombeiros chegaram imediatamente. Aparentemente,
foi um cano de gás embaixo da loja. Não havia ninguém lá, felizmente, mas os
bombeiros ficaram muito ocupados. Parti antes que eles saíssem. A loja
estava praticamente destruída. Quando cheguei em casa, estava cansado. Preparei
uma xícara de chá para mim mesmo e sentei no sofá. Pensei em ligar
para a minha mãe, mas ela estava no céu. Liguei para ela mesmo assim. “Mãe, como você
está?”, eu disse. “Estou entendiada. Não venha para cá. Não tem nada para
fazer”, ela disse. “Não há anjos?”, perguntei. “Sim, mas eles são chatos”,
ela respondeu. “Mas eu estava indo vê-la”, falei. “Vá para o inferno, é
mais emocionante”, ela disse. Eu tinha adormecido com a xícara de chá na
mão. Quando acordei, percebi que havia pensado que ela era um telefone. Minha
mãe nunca seria tão sarcástica sobre o céu.

Trad.: Nelson Santander

The Walk Home

I told the doctor I wouldn’t be seeing him again. “No, I guess
you won’t,” he said. I walked out the door feeling really good. Of
course I knew I was going to die, but still the day looked bright to
me. I walked down to the water. Ducks were circling around and about.
A sailboat sailed by. I walked along the shore. The sun beat down
on me. I felt as though I might live forever. I sat down on a bench
and watched the joggers pass. A pretty blonde walked by and I said,
“Hello.” She looked at me and said hello. A man with a greyhound
on a leash walked by. I got up and started to walk. A woodpecker
was pounding on a tree. An airplane flew over, leaving a thick trail of
smoke. I left the lake and walked on up the road. I crossed at the
streetlights and crossed the bridge. A car swerved to miss me. I
thought, that could have been it, the end right there, but I walked on,
bravely dodging the cars. When I got to the residential district, I
felt relieved. There were large elms and maples overhanging the street,
and people pushing baby carriages. Dogs ran loose everywhere. A man
stopped me and asked if I knew where 347 Walnut Street was. I said
I didn’t. He said, “Oh well, it didn’t matter anyway.” I said, “Why?”
He said it was a funeral notice. I walked on, bumping into a fat lady
with a load of groceries. I said I was sorry. She kept going, dropping
a load of grapefruit. Then, further on, there was a giant explosion across
the street. Police and firemen were there right away. It appears it
was a gas main beneath the shop. No one was there, luckily, but the
firetrucks had their hands full. I left before it was out. The shop
was pretty much destroyed. When I got home I was tired. I made
myself a cup of tea and sat down on the couch. I thought about calling
my mother, but she was in heaven. I called her anyway. “Mom, how are
you doing?” I said. “I’m bored. Don’t come here. There’s nothing to
do,” she said. “Aren’t there angels?” I said. “Yes, but they’re boring,”
she said. “But I was going to come see you,” I said. “Go to hell, it’s
more exciting,” she said. I had fallen asleep with my teacup in my
hand. When I awoke I realized I had thought it was a phone. My
mother would never be so sarcastic about heaven.

Paulus Silentiarius – da “Antologia Grega”

Zeus, em chuva de ouro, atravessou o bronze
que guardava Danae e roubou-lhe a virgindade.
Moral da história: o ouro tudo domina – paredes
e grilhetas de bronze, fechaduras e peias.
Foi o ouro que subjugou Danae. Não é necessário
rezar a Afrodite; só é preciso dinheiro.

Versão: José Alberto Oliveira

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 30/10/2018

Dorianne Laux – De qualquer forma

Se estamos fraturados,
assim o estamos
como estrelas
feitas para brilhar
em todas as direções,
por qualquer dimensão,
bilhões de anos
desde então.

Não lamentarei
o humano, ainda não.
Há algo mais
por vir, nossos corações
são como uma mina de ouro
inexplorada,
um mar desconhecido.

Nada se foi para sempre.
Se viemos do pó
e ao pó voltaremos,
então podemos descobrir o
caminho para qualquer coisa.

Ainda não se sabe
do que somos capazes,
por isso, agora mesmo, eu nos elogio
antecipadamente.

Trad.: Nelson Santander

In Any Event

If we are fractured
we are fractured
like stars
bred to shine
in every direction,
through any dimension,
billions of years
since and hence.

I shall not lament
the human, not yet.
There is something
more to come, our hearts
a gold mine
not yet plumbed,
an uncharted sea.

Nothing is gone forever.
If we came from dust
and will return to dust
then we can find our way
into anything.

What we are capable of
is not yet known,
and I praise us now,
in advance.

Páladas – da “Antologia Grega”

Nascidos nus. Enterrados nus.
Qual a azáfama? Toda a vida
conduz à primeira nudez.

Versão: José Alberto Oliveira

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 29/10/2018

Maya C. Popa – O que não foi dito

Com que frequência, dirigindo por aquelas estradas,
receávamos não bater em algo,
as cabras pelas quais passamos naquela manhã
pastoreadas àquela hora para que os chacais
não as matassem mais rapidamente,
a gema vermelha rompendo sobre os picos
enquanto corríamos contra a luz, descendo a montanha?

Apenas uma vez um javali irrompeu do bosque
como uma pergunta rapidamente retirada.
Depois ficamos sozinhos outra vez com tudo
o que não dissemos, os parques eólicos girando
suas grandes pás através do nada,
de um lugar longe demais para ser ouvido.

Trad.: Nelson Santander

What’s Unsaid

How often driving down those roads
we hoped we wouldn’t hit something,
the goats we’d passed that morning
herded by that hour so the jackals
wouldn’t make quick work of them,
red yolk rupturing over peaks
as we raced the light down the mountain.

Only once did a boar burst out of the woods
like a question just as soon retracted.
Then we were alone again with everything
we didn’t say, the wind farms winding
their great arms through nothing,
turning from a place too far to hear.

Lucilius – da “Antologia Grega”

Eutychides, o poeta lírico, morreu.
Fugi, ó moradores do Hades! – ele transporta odes
e ordenou que consigo queimassem
vinte liras e vinte e cinco pautas de música,
que Caronte terá de transportar.
Onde se poderá encontrar refúgio,
agora que Eutychides canta pela eternidade?

Versão: José Alberto Oliveira

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 28/10/2018

Natasha Trethewey – Blues do Cemitério

Choveu o tempo todo enquanto a deitávamos no chão;
Choveu da igreja ao túmulo quando a enterramos no chão.
A sucção da lama em nossos pés: uma murmuração.

Quando o pregador conclamou, eu levantei a minha mão;
Quando ele pediu uma testemunha, ergui a minha mão —
A morte detém a lida do corpo, a alma do artesão.

O sol apareceu quando me virei para ir embora,
Brilhou forte sobre mim quando eu me virei e fui embora —
De costas, e deixando minha mãe onde ela está agora.

A estrada de volta pra casa era toda esburacada,
Aquela estrada de volta está sempre esburacada;
Desacelerei, mas gira a roda do tempo sem parada.

Ando agora entre os nomes dos mortos: o nome de minha
Mãe, travesseiro de pedra onde minha cabeça se aninha.

Trad.: Nelson Santander

Graveyard Blues

It rained the whole time we were laying her down;
Rained from church to grave when we put her down.
The suck of mud at our feet was a hollow sound.

When the preacher called out I held up my hand;
When he called for a witness I raised my hand—
Death stops the body’s work, the soul’s a journeyman.

The sun came out when I turned to walk away,
Glared down on me as I turned and walked away—
My back to my mother, leaving her where she lay.

The road going home was pocked with holes,
That home-going road’s always full of holes;
Though we slow down, time’s wheel still rolls.

I wander now among names of the dead:
My mother’s name, stone pillow for my head.

Trad.: Nelson Santander

Graveyard Blues

It rained the whole time we were laying her down;
Rained from church to grave when we put her down.
The suck of mud at our feet was a hollow sound.

When the preacher called out I held up my hand;
When he called for a witness I raised my hand—
Death stops the body’s work, the soul’s a journeyman.

The sun came out when I turned to walk away,
Glared down on me as I turned and walked away—
My back to my mother, leaving her where she lay.

The road going home was pocked with holes,
That home-going road’s always full of holes;
Though we slow down, time’s wheel still rolls.

I wander now among names of the dead:
My mother’s name, stone pillow for my head.