Antonia Pozzi – Pausa

Parecia-me que este dia
sem ti
devia ser inquieto,
escuro. Em vez disso está repleto
de uma estranha doçura, que aumenta
com o passar das horas –
quase como a terra
após um aguaceiro,
que fica sozinha no silêncio a beber
a água caída
e pouco a pouco
nas veias mais profundas se sente
penetrada.

A alegria que ontem foi angústia,
tempestade –
regressa agora em rápidas
golfadas ao coração,
como um mar amansado:
à luz suave do sol reaparecido brilham,
inocentes dádivas,
as conchas que a onda
deixou sobre a praia.

Trad.: Inês Dias

Marcelo Montenegro – Três Pensatos

1.
penso naquela única gota
gelada do chuveiro quente.
Nas ilíadas clandestinas
que a febre percorre
até virar suor. Penso nas caretas
que os músicos fazem
quando estão solando.
No meu pai me dizendo
que tudo isso aqui era mato.
Penso na imagem exata
de uma aurora indecisa.
Penso em calços de papelão
para pianos mancos.

2.
penso em alguém que, na manhã
do dia de sua morte, desiste
de usar a camisa que mais gosta,
preferindo guardá-la para uma festa
que terá na noite seguinte.

3.
penso em você, por exemplo,
largando o controle
remoto e dizendo —
do jeito mais lindo
do mundo — que adora
quando consegue pegar
um filme do começo.

Ana Martins Marques – História

Tenho 39 anos.
Meus dentes têm cerca de 7 anos a menos.
Meus seios têm cerca de 12 anos a menos.
Bem mais recentes são meus cabelos
e minhas unhas.
Pela manhã como um pão.
Ele tem um história de 2 dias.
Ao sair do meu apartamento,
que tem cerca de 40 anos,
vestindo uma calça jeans de 40 anos
e uma camiseta de não mais do que 3,
troco com meu vizinho
palavras
de cerca de 800 anos
e piso sem querer numa poça
com 2 horas de história
desfazendo
uma imagem
que viveu
alguns segundos.

Charles Bukowski – Um poema de amor

todas as mulheres
todos os beijos delas as
formas variadas como amam e
falam e carecem.
suas orelhas elas todas têm
orelhas e
gargantas e vestidos
e sapatos e
automóveis e ex-
maridos.
principalmente
as mulheres são muito
quentes elas me lembram a
torrada amanteigada com a manteiga
derretida
nela.
há uma aparência
no olho: elas foram
tomadas, foram
enganadas. não sei mesmo o que
fazer por
elas.
sou
um bom cozinheiro, um bom
ouvinte
mas nunca aprendi a
dançar — eu estava ocupado
com coisas maiores.
mas gostei das camas variadas
lá delas
fumar um cigarro
olhando pro teto. não fui nocivo nem
desonesto. só um
aprendiz.
sei que todas têm pés e cruzam
descalças pelo assoalho
enquanto observo suas tímidas bundas na
penumbra. sei que gostam de mim algumas até
me amam
mas eu amo só umas
poucas.
algumas me dão laranjas e pílulas de vitaminas;
outras falam mansamente da
infância e pais e
paisagens; algumas são quase
malucas mas nenhuma delas é
desprovida de sentido; algumas amam
bem, outras nem
tanto; as melhores no sexo nem sempre
são as melhores em
outras coisas; todas têm limites como eu tenho
limites e nos aprendemos
rapidamente.
todas as mulheres todas as
mulheres todos os
quartos de dormir
os tapetes as
fotos as
cortinas, tudo mais ou menos
como uma igreja só
raramente se ouve
uma risada.
essas orelhas esses
braços esses
cotovelos esses olhos
olhando, o afeto e a
carência me
sustentaram, me
sustentaram.

Trad.: Jorge Wanderley

A Love Poem

all the women
all their kisses the
different ways they love and
talk and need.
they ears, they all have
ears and
throats and dresses
and shoes and
automobiles and ex
husbands.
mostly
the women are very
warm they remind me of
buttered toast with the butter
melted
in.
there is a look in the
eye: they have been
taken they have been
fooled. I don’t quite know what to
do for
them.
I am
a fair cook a good
listener
but I never learned to
dance – I was busy
then with larger things.
but I’ve enjoyed their different
beds
smoking cigarettes
staring at the
ceilings. I was neither vicious nor
unfair. only
a student.
I know they all have these
feet and barefoot they go across the floor as
I watch their bashful buttocks in the
dark. I know that they like me, some even
love me
but I love very
few.
some give orange and vitamin pils;
others talk very quietly of
childhood and fathers and
landscapes; some are almost
crazy but none of them are without
meaning; some love
well, others not
so; the best at sex are not always the
best in order
ways; each has limits as I have
limits and we learn
each other quickly.
all the women all the
women all the
bedrooms
the rugs the
photos the
curtains, it’s
something like a church only
at times there’s
laughter.
those ears those
arms those
elbows those eyes
looking, the fondness and
the wanting I have been
held have been
held.

Sophia de Mello Breyner Andresen – Os Erros

A confusão a fraude os erros cometidos 
A transparência perdida — o grito 
Que não conseguiu atravessar o opaco 
O limiar e o linear perdidos 
Deverá tudo passar a ser passado 
Como projecto falhado e abandonado 
Como papel que se atira ao cesto 
Como abismo fracasso não esperança 
Ou poderemos enfrentar e superar 
Recomeçar a partir da página em branco 
Como escrita de poema obstinado?

Ricardo Domeneck – Doentes

Doentes.
Nós, todos

doentes. Há tanto
doentes

todos. Nós.
Pungidos, conquanto
impunes.

Não,
não impunes.
Não

se constrói impune
a casa

sobre covas.
Não se ergue

o prédio
em grão-cemitério.

Não
sem

velar e lavar

carinhosos
e doridos

os ossos
e os dentes.

Não impunes.
Doentes

de cada gota
derramada.

Por nós
ou avós.

Os parentes
doentes
em cada gota

que corre.
A casa

abala-se. O sangue
embebe

os alicerces.
A mola

mestre afrouxa.
O reboco

despenca.
Não

se constrói
república impune

nas costas
de escravos

e depois se mente
impune, mente,

finge-se fraterno,

diz irmão,
diz irmã,

mas mente impune.

Não sente
na pele,

não cose
as costas,

não pede
perdão

e bença
a irmão, a irmã

pela construção
impune

da casa
sobre suas covas,

do prédio
sobre suas costas

em frangalhos.

Punidos
não fomos,

mas não

estamos impunes.
Estamos doentes.

Nossas costas
destrinchadas.

Entre
trincheiras.

Nossas casas
ensangüentadas.

E o Omo
não lava.

Os ossos.
E o sangue.
O Omo
não lava.

SOS
SOS

tele-
grafam os ossos.

Doentes. De cada
mãe
de pele tonalizada.

De rubro, de negro.

Cada mãe
roubada,

sequestrada
e violentada.

E morta. O Omo
não lava
os sequestros,

não desmancha
as mortes.

De mães. De filhos
doentes.

As manchas
que a família merece.

Todos
nós, uns doentes

de beber
sangue e comer
carne,

nós que moemos
gente,

todos nós
uns Pôncios Pilatos

nesta Jerusalém
infernal.

Não há Cristo
que baste.

Não há Cristo
que lave

com sangue o sangue.

Basta de lavar
o sangue com sangue.
Basta.

Doentes.
Basta a doença

já sangrada,
diagnosticada

e sem bula.

Doentes pilhamos,
pilhados e doentes.

E a aula de Pilates
não cura

os doentes,

e a aula de Yoga
não cura

os doentes,

e os ovos
orgânicos

não pagam
os ossos

orgânicos

ainda
que em cálcio.

E os docentes
não adoçam

o amargo
em

nós.
Cauterizados,
nós
calcificados.

SOS SOS
tele
-grafam os ossos.

A nós,
uns doentes,
nós,
os doentes.

*

[in memoriam Marielle Franco]

Ana Martins Marques – a parte que me cabe

a parte do teu corpo
que procura pelo sol
como os gatos pela casa

a parte que permanece imóvel
quando cantas, aquela que se move
quando estás parado

a parte que apenas a mim
e de relance, por descuido
revelaste

a parte onde guardas as memórias
de infância, a parte que ainda anseia
pelo futuro

a parte que demora
a acordar
depois que acordaste

a parte que discorda
ainda de mim
quando já cedeste

aquela que adere
mais fortemente
ao teu nome

a parte que guarda
silêncio enquanto
falas

a parte que
quando estás cansado
ainda não se cansou

a parte ainda noturna
quando é dia, diurna
quando é noite

a parte que
tem parte
com o mar

Charles Bukowski – Os Gênios da Raça

não há nada a
discutir
não há nada a
lembrar
não há nada a
esquecer

é triste
e
não é
triste

parece que a
coisa mais
sensata
que uma pessoa pode
fazer
é
se sentar
com uma bebida na
mão
enquanto as paredes
acenam seus sorrisos
de adeus

alguns passam por
tudo
isso
com uma certa
quantidade de
eficiência e
bravura
e então
se vão

alguns aceitam
a possibilidade de
Deus
para ajudá-los a
concluir a
travessia

outros
seguem
em frente

e a estes

eu bebo
esta noite.

Trad.: Nelson Santander

the finest of the breed

there’s nothing to
discuss
there’s nothing to
remember
there’s nothing to
forget

it’s sad
and
it’s not
sad

seems the
most sensible
thing
a person can
do
is
sit
with a drink in
hand
as the walls
wave
their goodbye
smiles

one comes through
it
all
with a certain
amount of
efficiency and
bravery
then
leaves

some accept
the possibility of
God
to help them
get
through

others
take it
straight on

and to these

I drink
tonight.

Sophia de Mello Breyner Andresen – Escuto

Escuto mas não sei
Se o que ouço é silêncio
Ou deus
Escuto sem saber se estou ouvindo
O ressoar das planícies do vazio
Ou a consciência atenta
Que nos confins do universo
Me decifra e fita
Apenas sei que caminho como quem
É olhado, amado e conhecido
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco.

Charles Bukowski – Outra Cama

outra cama
outra mulher

mais cortinas
outro banheiro
outra cozinha

outros olhos
outro cabelo
outros
pés e dedos.

todos à procura.
a busca eterna.

você fica na cama
ela se veste para o trabalho
e você se pergunta o que aconteceu
à última
e à outra antes dela…
é tudo tão confortável —
esse fazer amor
esse dormir juntos
a suave delicadeza…

após ela sair você se levanta e usa
o banheiro dela,
é tudo tão intimidante e estranho.
você retorna para a cama e
dorme mais uma hora.

quando você vai embora é com tristeza
mas você a verá novamente
quer funcione, quer não.

você dirige até a praia e fica sentado
em seu carro. é meio-dia.

— outra cama, outras orelhas, outros
brincos, outras bocas, outros chinelos, outros
vestidos
cores, portas, números de telefone.

você foi, certa vez, suficientemente forte para viver sozinho.
para um homem beirando os sessenta você deveria ser mais
sensato.

você dá a partida no carro e engata a primeira,
pensando, vou telefonar para janie logo que chegar,
não a vejo desde sexta-feira.

Trad.: Pedro Gonzaga