Nicanor Parra – Cartas a uma Desconhecida

Quando passarem os anos, quando passarem
os anos e o ar tenha cavado um fosso
entre tua alma e a minha; quando passarem os anos
e eu só seja um homem que amou,
um ser que se deteve um instante diante de teus lábios,
um pobre homem cansado de andar pelos jardins,
onde estarás tu? Onde
estarás, ó nascida de meus beijos!

Nicanor Parra – Acácias

Passeando anos atrás
por uma rua cheia de acácias em flor
soube por um amigo bem informado
que você tinha acabado de se casar.
Respondi que por certo
eu não tinha nada a ver com o assunto.
Mas apesar de nunca ter amado você
– e disso você sabe melhor do que eu –
cada vez que florescem as acácias
– imagina só –
sinto de novo a mesma coisa que senti
quanto me atiraram à queima-roupa
a notícia devastadora
de que você tinha se casado com outro.

José Saramago – Ouvindo Beethoven

Venham leis e homens de balanças,
Mandamentos daquém e dalém mundo,
Venham ordens, decretos e vinganças,
Desça o juiz em nós até ao fundo.

Nos cruzamentos todos da cidade,
Brilhe, vermelha, a luz inquisidora,
Risquem no chão os dentes da vaidade
E mandem que os lavemos a vassoura.

A quantas mãos existam, peçam dedos,
Para sujar nas fichas dos arquivos,
Não respeitem mistérios nem segredos,
Que é natural nos homens serem esquivos.

Ponham livros de ponto em toda a parte,
Relógios a marcar a hora exata,
Não aceitem nem votem noutra arte
Que a prosa de registo, o verso data.

Mas quando nos julgarem bem seguros,
Cercados de bastões e fortalezas,
Hão-de cair em estrondo os altos muros
E chegará o dia das surpresas.

Fernando Moreira Salles – Legado

Não há dor
partilhável
nem lamento
que se ouça

É pequeno
o destino
do teu sonho
e do meu

Se alguém
te viu passar
se o caminho
te pertence
segue
e sorri

Ana Martins Marques – Interiores

AÇUCAREIRO

De amargo
basta
o amor

Agridoce,
ela disse

Mas a mim
pareceu
amargo

CADEIRA

I

Repetes
diariamente
os gestos
do primeiro homem
que se sentou
numa tarde quente
olhando as savanas

II

Pouso
de gigantescos pássaros
cansados

FRUTEIRA

Quem se lembrou de pôr sobre a mesa
essas doces evidências
da morte?

CRISTALEIRA

Guarda
e revela
a nudez
branca
da louça
o incêndio
despareado
dos cristais

TALHERES

Colher

Se o sol nela
batesse
em cheio
por exemplo
numa mesa posta
no jardim
imediatamente se formaria
um pequeno lago
de luz

Garfo

Em três ramos
floresce
o metal

Faca

Sua fria elegância
não escamoteia
o fato:
é ela que melhor se presta
ao assassinato

CÔMODA

E dela
o que restou
senão
sobre a cômoda
um par de brincos
que talvez não sejam dela?

ESTANTE

Dentro da garrafa
o navio
acaba de partir

CORTINA

Entre o fora e o dentro
lês
o vento

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Ana Martins Marques – entre a casa/ e o acaso,

entre a casa
e o acaso

entre a jura
e os jogos

entre a volta
e as voltas

a morada
e o mar

penélopes
e circes

entre a ilha
e o ir-se

Gregório de Matos – Nasce o Sol e Não Dura mais que um Dia

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas, no Sol, e na Luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.

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Paulo Nunes – A um antianjo

Em memória de Júlio Caixeta

A mais longa distância que pode haver,
esta que agora vai dos teus pés ao chão,
não te fez mais leve:

foi o mundo e nossas vidas que se soltaram.

Eucanaã Ferraz – De “Orelhas” (1)

Estão certas todas as canções banais letras convencionais
seus corações como são de praxe; estão certos os poemas
enfáticos inchados de artifícios à luz óbvia da lua
ou de estúpidos crepúsculos; os sonetos mal alinhavados
toscos estão certos bem como as confissões íntimas
não lapidadas reles nem polidas; ouçamos o que dizem
sobre qualquer coisa; dizem não vai dar certo; repetem;
e se o verso é trivial é o mais sagaz quanto mais pueril
mais seguro quanto mais frouxo mais sólido quanto
mais rasteiro mais a toda prova e quanto mais barato
e quanto mais prolixo o alexandrino mais legítimo;
as formas desdentadas vêm do fundo; as odes indigestas
dizem tudo; o verso oco não traz menos que a verdade
nua e ponto. Estão certos os romances de aeroporto;
a quem busca um modelo procure o estúpido; se deseja
uma estrela de primeira grandeza escolha o simplório;
é o que digo não busque senão na aberração a sinceridade
e no disparate a franqueza; prêmios literários não passam
de hipocrisia; estiveram desde sempre certos os erros
de tipografia; o contrassenso deve ser o mandamento
de quem precisa disfarçar o mal-estar após mostrá-lo
sem pudor; sim a saudade arde exatamente como
nos roteiros dos filmes mas só as fitas mais chinfrins
e com fins infelizes não mistificam e dizem de antemão
o que seremos: redundância errância perfeição.

Mia Couto – O Espelho

Esse que em mim envelhece
assomou ao espelho
a tentar mostrar que sou eu.

Os outros de mim,
fingindo desconhecer a imagem,
deixaram-me, a sós, perplexo,
com meu súbito reflexo.

A idade é isto: o peso da luz
com que nos vemos.