Machado de Assis – Memórias Póstumas (último capítulo)

(Leia também: https://singularidadepoetica.art/2023/06/01/nelson-santander-dois-capitulos-perdidos-de-memorias-postumas-de-bras-cubas-2/)

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 25/02/2016

Machado de Assis – A Carolina

Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs um mundo inteiro.

Trago-te flores, – restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 18/02/2016

Nelson Santander – Dois capítulos perdidos de Memórias Póstumas de Brás Cubas

Capítulo ***

ESCOBAR

À entrada do Teatro São Pedro, deparei-me com Escobar, um negociante no ramo cafeeiro, apresentado a mim pelo meu cunhado Cotrim, com quem mantinha relações mercantis. Natural de Curitiba e ex-seminarista, Escobar começava a prosperar na capital, após um início modesto de carreira que fora impulsionado pela ajuda financeira aviada pela viúva do ex-Deputado Pedro de Albuquerque Santiago. Não faças mau juízo da viúva, caro leitor; o próprio Escobar me confidenciou que ela havia cedido o capital a título de empréstimo, exclusivamente por ingerência de seu filho único, Bentinho, que vinha de ser o melhor amigo de Escobar desde os tempos do seminário. Era de conhecimento geral que Escobar possuía uma certa habilidade ou vocação para administrar seus próprios recursos. E os dos outros também. Dizia-se no Andaraí que era dado a aventuras amorosas e que frequentava a casa de Bentinho e sua esposa Capitolina com muita frequência e em horários pouco comuns.

– Escobar, quanto tempo!

– Brás, que satisfação em revê-lo! Estava mesmo precisando falar com você.

Enquanto falava, Escobar me levou para um canto reservado sob a marquise do teatro, quase na esquina. Ele parecia deveras animado, o que me causou estranheza, pois sempre o tivera por reservado e pouco afeito ao alarde.

– Ouvi dizer que você alugou uma casa na Gamboa, perguntou.

Tive um sobressalto. Então já se comentava na cidade acerca do lugar que eu reservara para meus encontros com Virgília? Se Escobar estava sabendo, era possível que a história também já tivesse chegado aos ouvidos do Lobo Neves. Depois do episódio da carta anônima, Virgília me disse que o marido andava muito desconfiado. Será que ele já tinha ouvido alguma coisa sobre a Gamboa?

– Na verdade, a casa não me pertence, respondi; é da dona Plácida, uma senhora que foi agregada na casa de uma velha amiga. Eu apenas fiz um pequeno empréstimo e subscrevi algumas promissórias para que a pobre pudesse dar a entrada.

– Sei, respondeu ele com um meio sorriso; estou eu também à procura de uma casa como essa para acomodar a criada de uma amiga…

As palavras meticulosamente selecionadas e o olhar malicioso com que foram ditas deixaram pouca margem para dúvida: Escobar procurava estabelecer aquela espécie de relação de cumplicidade que às vezes há entre dois homens que se encontram na mesma situação de ilicitude matrimonial. Eu não tinha a menor intenção de manter tal nível de vínculo com aquele sujeito. Não confiava nele. Um homem que se prestava ao papel de comborço do melhor amigo não era alguém com quem se pudesse compartilhar segredos. Para mim, Escobar tinha o caráter de quem seria capaz de enviar um bilhete anônimo ao Lobo Neves apenas para ver o teatro em chamas.

– Dona Plácida tratou pessoalmente dos pormenores do negócio, repliquei secamente, iniciando meu caminho rumo à entrada do teatro.

– Que pena, disse ele, olhando divertido para mim enquanto me acompanhava; tenho uma certa urgência em encontrar algo. A criada que quero ajudar não é casada e está no início de uma gravidez. Quero acomodá-la antes que o estado dela se dê a mostrar. Minha amiga não deseja escândalos.

Então era verdade! Não havia criada alguma. Corria o boato de que dona Capitolina estava grávida. E que Bentinho não era o pai… Não sabia o que pensar disso. Embora eu também mantivesse um consórcio amoroso com uma mulher casada, começava a desenvolver, sem entender bem por que, um sentimento desconfortável de aversão por Escobar. Não conseguia precisar a causa exata daquela sensação. A princípio, pensei que minhas fidúcias decorriam de um desejo próprio por uma espécie de reserva de mercado no ramo dos amores ilícitos. Logo acudi que tal vaidade era uma impossibilidade: provavelmente havia centenas de homens na corte em situação semelhante à minha. Rapidamente compreendi que meu asco por Escobar decorria, na verdade, de um certo ciúme projetivo em relação à situação dos homens traídos em geral. Com efeito, o leitor pode não acreditar, mas às vezes eu fazia um exercício mental de projeção, colocando-me no lugar do Lobo Neves – embora raramente e despido de remorso. E, conquanto não me identificasse em nada com o Bentinho – um sujeito fechado, mal-humorado e desconfiado, com fama de sensível – o que acontecia com ele não me dava nenhuma satisfação particular. Ademais, Escobar se me apresentava como um reflexo mais limitado e menos pretensioso de mim mesmo – uma imagem que não parecia nem um pouco agradável.

– Preciso adentrar, a peça certamente já se iniciou, disse eu, impaciente; pedirei a Dona Plácida que pergunte nas redondezas se alguém sabe de alguma casa para vender ou alugar.

Ele pareceu se lembrar de algo. Contou-me então que estava a caminho da casa de um amigo para discutir um interdito proibitório – presumi logo que o amigo fosse o Bentinho. Antes de partir, pediu-me para manter discrição em relação às suas intenções com a casa, “para evitar maledicências desnecessárias”. Redargui que não se preocupasse.

Ele se despediu e estava prestes a partir, mas se voltou novamente para mim:

– Esquecia-me de contar-lhe; outro dia, em São Cristóvão, encontrei com uma amiga em comum, Virgília…

Olhei-o desconfiado. Ele continuou:

– Ela ia triste, parece que o marido havia sido forçado a desistir da nomeação para presidente de província. Ela me disse que você seria Secretário, é verdade?

– Ainda estava avaliando a conveniência…

– Tomamos um café, continuou ele. Ela é uma companhia muito agradável. E que mulher espetacular! Que magníficos braços ela tem! Mas desconfio de algo…

– Do que suspeita?

– Acredito que ela não é feliz no casamento, respondeu. Vendo meu olhar desconfiado ele continuou: Como eu sei? Bem, você sabe como as mulheres são, elas geralmente evitam abordar certos assuntos, especialmente com homens casados. No entanto, naquele dia no café, Virgília estava especialmente eloquente.

Chegamos a uma das portas de entrada e paramos por um momento. Escobar trazia no rosto uma expressão divertida e gaiata. Segurava levemente meu braço para impedir que eu fugisse.

– Sabe, ela até me confessou algo bastante indiscreto… – disse ele.

– Sim?, acudi eu, já alarmado.

– Disse-me que não tinha um casamento satisfatório, foi sua resposta. Confesso que não me incomodaria em ajuda-la com alguns dos problemas dela…

Tenta imaginar tu, leitor, o pasmo que experimentei! Não era para mim nenhuma novidade a indiscrição e lascívia do Escobar. Mas Virgília confessando insatisfações matrimoniais a um homem conhecido por sua infidelidade à esposa e ao melhor amigo? Ela sequer havia-me dito que tinha se encontrado com Escobar. Sobre o que mais teriam conversado os dois? Teria sido ela a revelar-lhe sobre a Gamboa? As garras do ciúme enterraram-se-me no coração; sentia-me uma espécie de Lobo Neves de véspera. Súbito, me ocorreu o óbvio: se ela trai o marido por que não trairia também o amante?

– Se eu fosse você, não me metia com ela, respondi com aspereza; o marido tem fama de valente e já me confessou que não hesitaria em atirar em quem se aproximasse da esposa, a quem ele idolatra.

Escobar sorriu levemente. Aquele esgar malicioso denotava que ele sabia de tudo: da traição de Virgília e de minha posição privilegiada nesse evento doméstico. De minhas inseguranças em relação ao nosso relacionamento. E de que tudo o que eu podia fazer era inventar essa mentira disparatada sobre o Lobo Neves – que apenas no nome carregava vagas evocações de ferocidade.

Não sei se explico o ódio que senti contra Escobar naquele momento. Desejei que ele se afogasse na praia do Flamengo, onde costumava nadar quase todos os dias, mesmo com o mar bravio.

– Vou levar isso em consideração, respondeu ele, ainda sorrindo daquele jeito velhaco – e se despediu novamente.

Capítulo ****

UM CUBAS! (II)

Permaneci à porta do teatro, sem ânimo para entrar mas com nenhum desejo de partir. Rememorava a conversa que tivera com Virgília naquela tarde, quando ela me confidenciara acerca da carta anônima que o marido recebera dias antes, alertando-o contra mim. Lembrei-me do gesto de recuo que ela fez quando, à saída, pousei-lhe um beijo à testa. Era evidente que já se cansara de mim. Pensei também no Bentinho, destinado a criar como seu, sem jamais suspeitar, o filho que, a se dar crédito ao que dizia o vulgo, o amigo gerara em sua esposa. Um amontoado de sentimentos mal-costurados revolviam em mim. Ciúme, desesperança, raiva e autocomiseração compunham um todo indigesto que me mantinha inerte à porta do teatro.

Enquanto mergulhava em tais pensamentos, avistei, num vislumbre, através da porta aberta, Nhá-loló, acompanhada de seu pai, o Damasceno. Lembrou-me o dia em que a conheci, naquele jantar em casa de Sabina (capítulo XCIII), de como seus olhos permaneceram fixos em mim durante toda a noite. Próximos a eles, vi também um deputado conhecido ao lado da esposa, filha do ministro da Justiça. Estavam rodeados por um pequeno séquito de sabujos (Damasceno era um deles). A imagem dos rapapés suscitou em mim a nostalgia daquele velho desvanecimento que me acompanhou até o fim e espertou novamente a paixão pela notoriedade que, em última instância, acabaria por me matar.

Senti meu ânimo revigorado e até me esqueci por um instante de Virgília quando, enfim, decidi ingressar no teatro. Quais eram, afinal, meus reais sentimentos por ela naquela época? Ainda a amava? Mesmo hoje, aqui na terceira margem do rio, não saberia dizê-lo. Contudo, a maneira como meu ânimo se elevou assim que vislumbrei Nhá-loló sugeria, ao menos, que minha atenção já não se depositava unicamente em Virgília.

Por que, então, as insinuações de Escobar haviam me perturbado tão profundamente? Obviamente, como homem, não gostava de pensar na ideia de ser derrotado na disputa pelo amor de uma mulher, sobretudo porque não poderia recorrer a soluções drásticas – como desafiar o peralta para um duelo – uma vez que a mulher em questão não me pertencia. O amor-próprio, em tais momentos, inflama-se de tal modo que o apego e o despeito se entrelaçam indissoluvelmente com o ciúme. Não o confirmam as Escrituras? “Vaidade de vaidades, tudo é vaidade”

Mas o que verdadeiramente me desagradava era o fascínio que um sujeito tão vulgar e mal-nascido como Escobar parecia despertar nas mulheres. Como Virgília poderia cogitar substituir um puro-sangue por um matungo?

Ocorreu-me que Virgília pudesse estar repetindo o lance que havia culminado na derrota das minhas pretensões matrimoniais, anos atrás, quando, sem maiores explicações, ela me substituiu pelo Lobo Neves. A diferença é que então éramos todos solteiros e a preterição de um pretendente por outro não passava de um capricho feminino socialmente aceitável. Virgília estava agora casada e eu era seu amante. Ao aceitar a possibilidade de me substituir por outro, ela deixava transparecer uma vontade de explorar outras vias escusas além daquelas que vínhamos trilhando.

Não nego que eu via um certo espírito empreendedor em sua atitude; só não me agradava a ideia de ser eu o negócio a ser sucedido para que ela alcançasse a glória…

Veio-me à memória a expressão de indignação que meu pai bradou quando Virgília me deixou pelo Lobo Neves:

– Um Cubas!

Aquela frase ecoou em meu pensamento e continuei repetindo-a mentalmente, enquanto procurava sofregamente o camarote de Nhá-loló.

– Um Cubas!

Convém intercalar o presente capítulo e o anterior entre a terceira e a quarta oração do capítulo XCVIII.

NOTAS SOBRE ESSA NARRATIVA

Dia desses, em uma página do Facebook, alguém que eu não conhecia nem de vista nem de chapéu postou um trecho curto propondo um exercício imaginativo: e se Machado tivesse promovido um encontro entre Capitu e Brás Cubas?

Comecei a tentar imaginar como seria, mas me ocorreu algo melhor: e se, em vez disso, o encontro fosse entre Brás e Escobar? O contraste entre o bem nascido Brás, típico representante da aristocracia oitocentista e o arrivista Escobar, arquétipo da burguesia do século XIX, poderia resultar em uma cena ainda mais interessante.

Ao iniciar minha narrativa de cara deparei-me com uma dificuldade. Os fatos narrados em Memórias Póstumas de Brás Cubas ocorrem entre 1805 e 1869, respectivamente as datas do nascimento e da morte de Brás. Não é possível precisar por quanto tempo e em que período Brás e Virgília viveram o seu relacionamento ilícito, pois Machado não quis dar datas exatas. Sabemos, todavia, que Brás se encontrou com Virgília uma vez mais, anos depois do término do relacionamento de ambos, em 1855 (Capítulo 130). Sabemos também que, àquela altura, ambos já estavam na fase de madureza pela descrição que Brás faz de sua ex-amante (“A primeira vez que pude falar a Virgília, depois da presidência, foi num baile em 1855. Trazia um soberbo vestido de gorgorão azul, e ostentava às luzes o mesmo par de ombros de outro tempo. Não era a frescura da primeira idade; ao contrário; mas ainda estava formosa de uma formosura outoniça, realçada pela noite.”). E também porque, na sequência, ele dedica um capítulo todo aos seus cinquenta anos de idade (Capítulo 134).

Já a história de ciúmes de Bentinho ocorre mais tarde: Machado não aponta a data de seu nascimento, mas nos conta que, em 1857, ele tinha 15 anos (de onde se presume que ele tenha nascido em 1842 – vide Capítulo II). Escobar, por sua vez, era três anos mais velho do que ele (vide Capítulo LVI) , tendo nascido, portanto, em 1839. Morreu em 1871 (Capítulo CXXII), aos 32 anos de idade. Pela leitura da obra, cogita-se que a suposta traição de Capitu não ocorreu antes do casamento dela com Bentinho, que se deu em 1865 (Capítulo CI). Assim, o suposto caso de adultério, se ocorreu, se deu entre 1865 e 1871, quando Virgília já teria mais de 60 anos. Portanto, cronologicamente falando, seria impossível que Escobar, por volta de seus 29, 30 anos de idade, pudesse ter algum interesse sexual por Virgília…

Não importa, a riqueza dessas criaturas de Machado de Assis é tão grande que me vi obrigado a cometer a heresia de antecipar os eventos narrados em Dom Casmurro para ajusta-los cronologicamente aos das Memórias Póstumas.

Do ponto de vista do Memórias Póstumas de Brás Cubas, o capítulo que imaginei se passa logo após o aborto espontâneo que Virgília sofrera e o recebimento de uma carta anônima por Lobo Neves entregando o caso amoroso de sua esposa com Brás. O caso dos dois está prestes a terminar, mas naquele momento os amantes não sabem disso. Não obstante, ao final do capítulo XCVI (“A Carta Anônima”), Brás relata que ao beijar Virgília na testa esta recuou, “como se fosse um beijo de defunto”. No capítulo seguinte, ele esclarece: “Há aí, no breve intervalo, entre a boca e a testa antes do beijo e depois do beijo, há aí largo espaço para muita coisa: a contração de um ressentimento, — a ruga da desconfiança, — ou enfim o nariz pálido e sonolento da saciedade… “

Em relação a Dom Casmurro, em minha narrativa Brás encontra Escobar logo após a gravidez de Capitu. Àquela altura do romance, Bentinho já havia iniciado sua estratégia de descrever fatos que, no clímax de suas memórias, mostrar-se-iam como verdadeiras peças acusatórias da traição e supostas provas do relacionamento entre Capitu e Escobar. São assim os Capítulo CV, CVI e CVIII. Em cada um desses capítulos, Bentinho conta uma passagem no qual fica subentendido de forma muito sutil o relacionamento de sua esposa com seu melhor amigo (Capitu só concorda em deixar de expor seus braços em eventos sociais depois que Bentinho diz que Escobar aprovava seu desagrado com esse fato; Capitu está com o olhar perdido no mar, o que leva a Bentinho a desconfiar de algo; na sequência, ela diz que estava “somando uns dinheiros para descobrir certa parcela que não achava”, o que, no final, leva à revelação de que Escobar fazia corretagens com as economias de Capitu e que naquele dia estivera com ela antes de Bentinho chegar; etc.).

Finalmente, o ponto de contato entre ambos não podia deixar de ser o Cotrim, cunhado de Brás Cubas, um self-made man na área do comércio, como Escobar.

Acho que não preciso mencionar que minha narrativa é apenas uma brincadeira pseudoliterária. Nem eu sou escritor e ainda que fosse não teria talento suficiente para reproduzir ou sequer imitar o estilo machadiano. Ninguém o tem, aliás. Na literatura latino-americana, Machado é incomparável. Coloca no bolso escritores como Guimarães Rosa, Borges ou Gabriel García Márquez. Na verdade, só vamos encontrar quem o ombreie na mais alta e estrita esfera da literatura mundial – falo de gente como Shakespeare, Dostoiévski, Faulkner.

No entanto, como diria Quincas Borba, “a inveja não é senão uma admiração que luta”. Assim, ao emular um ou dois capítulos das Memórias Póstumas estou apenas tentando ilustrar empiricamente um dos princípios humanitas mais bem elaborados. Se a inveja é uma virtude, como queria Quincas Borba, invejar o maior de todos – a ponto de querer interpolar alguns capítulos desnecessários em sua obra-prima – é sublime.

Independentemente de ter gostado ou não de minha narrativa, uma coisa é certa: você já a leu. Se gostou, caro leitor, ótimo; se não, não te pago com um piparote, como sugere Brás aos seus leitores. Tampouco lamento. Afinal de contas, como diria Quincas Borba, “Verdadeiramente há só uma desgraça: é não nascer.”

Em 20/06/2018

REPUBLICAÇÃO, com alterações no texto: narrativa publicada na página originalmente em 20/06/2018

Carlos Drummond de Andrade – A Um Bruxo Com Amor

Em certa casa da Rua Cosme Velho
(que se abre no vazio)
venho visitar-te; e me recebes
na sala trastejada com simplicidade
onde pensamentos idos e vividos
perdem o amarelo
de novo interrogando o céu e a noite.

Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro.
Daí esse cansaço nos gestos e, filtrada,
uma luz que não vem de parte alguma
pois todos os castiçais
estão apagados.

Contas a meia voz
maneiras de amar e de compor os ministérios
e deitá-los abaixo, entre malinas
e bruxelas.
Conheces a fundo
a geologia moral dos Lobo Neves
e essa espécie de olhos derramados
que não foram feitos para ciumentos.

E ficas mirando o ratinho meio cadáver
com a polida, minuciosa curiosidade
de quem saboreia por tabela
o prazer de Fortunato, vivisseccionista amador.
Olhas para a guerra, o murro, a facada
como para uma simples quebra da monotonia universal
e tens no rosto antigo
uma expressão a que não acho nome certo
(das sensações do mundo a mais sutil):
volúpia do aborrecimento?
ou, grande lascivo, do nada?

O vento que rola do Silvestre leva o diálogo,
e o mesmo som do relógio, lento, igual e seco,
tal um pigarro que parece vir do tempo da Stoltz e do gabinete Paraná,
mostra que os homens morreram.
A terra está nua deles.
Contudo, em longe recanto,
a ramagem começa a sussurrar alguma coisa
que não se entende logo
a parece a canção das manhãs novas.
Bem a distingo, ronda clara:
é Flora,
com olhos dotados de um mover particular
entre mavioso e pensativo;
Marcela, a rir com expressão cândida (e outra coisa);
Virgília,
cujos olhos dão a sensação singular de luz úmida;
Mariana, que os tem redondos e namorados;
e Sancha, de olhos intimativos;
e os grandes, de Capitu, abertos como a vaga do mar lá fora,
o mar que fala a mesma linguagem
obscura e nova de D. Severina
e das chinelinhas de alcova de Conceição.
A todas decifrastes íris e braços
e delas disseste a razão última e refolhada
moça, flor mulher flor canção de mulher nova…
E ao pé dessa música dissimulas (ou insinuas, quem sabe)
o turvo grunhir dos porcos, troça concentrada e filosófica
entre loucos que riem de ser loucos
e os que vão à Rua da Misericórdia e não a encontram.
O eflúvio da manhã,
quem o pede ao crepúsculo da tarde?
Uma presença, o clarineta,
vai pé ante pé procurar o remédio,
mas haverá remédio para existir
senão existir?
E, para os dias mais ásperos, além
da cocaína moral dos bons livros?
Que crime cometemos além de viver
e porventura o de amar
não se sabe a quem, mas amar?

Todos os cemitérios se parecem,
e não pousas em nenhum deles, mas onde a dúvida
apalpa o mármore da verdade, a descobrir
a fenda necessária;
onde o diabo joga dama com o destino,
estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro,
que revolves em mim tantos enigmas.

Um som remoto e brando
rompe em meio a embriões e ruínas,
eternas exéquias e aleluias eternas,
e chega ao despistamento de teu pencenê.
O estribeiro Oblivion
bate à porta e chama ao espetáculo
promovido para divertir o planeta Saturno.
Dás volta à chave,
envolves-te na capa,
e qual novo Ariel, sem mais resposta,
sais pela janela, dissolves-te no ar.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 14/10/2016

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Nelson Santander – A elite oitocentista pela ótica de Machado de Assis: a violação da norma como norma

O artigo que segue, de minha autoria, foi publicado na obra coletiva “Direito e desenvolvimento: estudos sobre a questão ambiental e a sustentabilidade – Homenagem ao Prof. Márcio Teixeira”, organizada por Caio Henrique Lopes Ramiro e Lis Maria Bonadio Precipito (São Paulo: LiberArs, 2015, 308p.).

Fortemente influenciado pela obra “Um mestre na periferia do capitalismo”, do professor e crítico literário Roberto Schwarz – uma leitura seminal das “Memórias Póstumas de Brás Cubas” -, o trabalho, além de tecer loas à genialidade e contemporaneidade de Machado de Assis, busca demonstrar a análise profunda que o escritor faz, nas “Memórias”, da sociedade brasileira do século XIX e a “denúncia oblíqua das iniquidades e contradições da classe dominante oitocentista no contexto histórico analisado”. Tenta demonstrar também “como Machado de Assis expõe e explora a maneira com que a oligarquia da época valia-se da violação sistemática das normas como instrumento de perpetuação e dominação das relações de poder.”

Nelson Santander – Dois capítulos perdidos de Memórias Póstumas de Brás Cubas

Capítulo ***

ESCOBAR

À entrada do teatro São Pedro encontrei-me com Escobar, um comerciante do ramo cafeeiro que conheci por intermédio do meu cunhado Cotrim, com quem ele mantinha relações mercantis. Natural de Curitiba, ex-seminarista, Escobar começava a enriquecer na capital – depois de um início tímido de carreira impulsionada com a ajuda financeira aviada pela viúva do ex-Deputado Pedro de Albuquerque Santiago. Não faças mau juízo da viúva, leitor; o próprio Escobar me confessou que ela havia cedido o cabedal a título de empréstimo exclusivamente por ingerência de seu filho único, Bentinho, que vinha de ser o melhor amigo de Escobar desde a época do seminário. Era voz corrente que Escobar tinha um certo talento ou vocação para administrar seus recursos. E os dos outros. Dizia-se no Andaraí que era dado a aventuras amorosas e que frequentava a casa de Bentinho e sua esposa Capitolina com frequência e em horários pouco comuns.

– Escobar, quanto tempo!

– Brás, que satisfação em revê-lo! Estava mesmo precisando falar com você.

Enquanto falava, Escobar me conduziu para um canto reservado sob a marquise do teatro, quase na esquina. Parecia deveras entusiasmado, o que me causou estranheza, pois sempre o tivera por reservado e pouco afeito ao espalhafato.

– Fiquei sabendo que você alugou uma casinha na Gamboa, perguntou.

Tive um sobressalto. Então já se comentava na cidade acerca do lugar que eu reservara para meus encontros com Virgília? Se Escobar estava sabendo era possível que a história também já tivesse chegado aos ouvidos do Lobo Neves. Depois do episódio da carta anônima, Virgília me disse que o marido andava muito desconfiado. Será que ouvira algo da Gamboa?

– Na verdade, a casa não me pertence, respondi; é da dona Plácida, uma senhora que foi agregada em casa de uma velha amiga. Apenas fiz um pequeno empréstimo e subscrevi umas promissórias para que a pobre pudesse dar a entrada.

– Sei, respondeu ele com um meio sorriso; estou eu também à procura de uma casinha como essa para acomodar a criada de uma amiga…

As palavras cuidadosamente escolhidas associadas ao olhar malicioso que ele me lançou ao dize-las não deixavam dúvidas: Escobar buscava travar aquela espécie de relação de cumplicidade que às vezes há entre dois homens que se encontram na mesma situação de ilicitude matrimonial. Eu não tinha a menor vontade de manter tal nível de vínculo com aquele sujeito. Não confiava nele. Um homem que se prestava ao papel de comborço do melhor amigo não era uma pessoa com quem se podia dividir segredos. Para mim Escobar possuía um caráter de alguém perfeitamente capaz de enviar um bilhete anônimo ao Lobo Neves só para ver o teatro em chamas.

– Foi dona Plácida quem fechou pessoalmente o negócio, respondi de forma seca, começando a andar em direção à entrada do teatro.

– Que pena, respondeu ele, olhando divertidamente para mim enquanto me acompanhava; eu tenho uma certa pressa em encontrar algo. A criada a quem pretendo auxiliar não é casada e está no início de uma gravidez. Quero acomoda-la antes que o estado dela se dê a mostrar. Minha amiga não quer escândalos.

Então era verdade! Não havia criada nenhuma. Corria o boato de que dona Capitolina estava grávida. E que Bentinho não era o pai… Não sabia o que pensar daquilo. Embora também mantivesse um consórcio com uma mulher casada, começava a desenvolver, sem entender bem por que, um sentimento desconfortável de aversão por Escobar. Não me ocorria o motivo exato daquela sensação. Pensei a princípio que minhas fidúcias se deviam a um desejo próprio por uma espécie de reserva de mercado no ramo dos amores ilícitos. Logo acudi que tal vaidade era uma impossibilidade: provavelmente havia centenas de homens na corte em situação análoga à minha. Percebi logo que meu asco por Escobar na verdade derivava de um certo ciúme projetivo em relação à situação dos homens traídos em geral. Com efeito, o leitor pode não acreditar mas, às vezes, eu fazia um exercício de projeção mental, colocando-me no lugar do Lobo Neves – embora raramente e despido de remorso. E, conquanto não me identificasse em nada com o Bentinho – um sujeito fechado, mal-humorado e desconfiado com fama de sensível – o que estava acontecendo com ele não me dava nenhuma satisfação particular. Ademais, Escobar se me aparecia como um reflexo mais limitado intelectualmente e menos pretensioso de mim mesmo – e não era uma visão muito bonita de se ver.

– Tenho que entrar, a peça já deve começar, falei começando a me sentir impaciente; pedirei a Dona Plácida que pergunte nas redondezas se alguém sabe de alguma casa para vender ou alugar.

Ele pareceu se lembrar de algo. Disse-me então que estava indo à casa de um amigo a fim de debater sobre um interdito proibitório – calculei logo que o amigo fosse o Bentinho. De saída, pediu-me discrição sobre suas intenções em relação à casa, “para evitar maledicências desnecessárias”. Redargui que não se preocupasse.

Despediu-se e já começava a se retirar, mas se voltou para mim novamente:

– Esquecia-me de contar-lhe; dia desses, em São Cristóvão, encontrei com uma amiga em comum, Virgília…

Olhei-o desconfiado. Ele continuou:

– Ela ia triste, parece que o marido fora obrigado a renunciar à nomeação como presidente de província. Disse-me que você seria Secretário, é verdade?

– Ainda estava avaliando a conveniência…

– Tomamos um café, continuou ele. Ela é uma companhia muito agradável. E que mulher espetacular! Que magníficos braços ela tem! Mas desconfio de uma coisa…

– Do quê?

– Acho que ela não está feliz no casamento, respondeu. Vendo meu olhar desconfiado ele continuou: Como eu sei? Como você sabe, mulheres não costumam abordar certos assuntos, especialmente com homens casados. Mas naquele dia no café Virgília estava particularmente eloquente.

Chegamos a uma das portas de entrada, onde paramos por um momento. Escobar trazia no rosto uma expressão divertida e gaiata. Segurava de leve no meu braço para me impedir de fugir.

– Sabe que ela até me fez uma confissão bastante indiscreta?

– Sim?, acudi eu, já alarmado.

– Disse-me que não tinha um casamento satisfatório, foi sua resposta. Confesso que não me incomodaria em ajuda-la com alguns dos problemas dela…

Tenta imaginar tu, leitor, o pasmo que experimentei! Não era para mim nenhuma surpresa a indiscrição e lubricidade do Escobar. Mas Virgília falando de suas insatisfações matrimoniais com um homem reconhecido por sua infidelidade à esposa e ao melhor amigo? Ela sequer havia-me dito que tinha se encontrado com Escobar. Sobre o que mais teriam conversado os dois? Teria sido ela quem lhe contou sobre a Gamboa? As garras do ciúme enterraram-se-me no coração; sentia-me como uma espécie de Lobo Neves de véspera. Súbito me ocorreu o óbvio: se ela trai o marido por que não haveria também de trair o próprio amante?

– Se eu fosse você, não me metia com ela, respondi com rispidez; o marido tem fama de valente e já me confessou que não hesitaria em atirar em quem se aproximar da esposa, que ele idolatra.

Escobar sorriu de leve. Percebi por aquele esgar malicioso que ele sabia de tudo: da traição de Virgília e de minha posição privilegiada nesse evento doméstico. De minhas inseguranças com o nosso relacionamento. E de que tudo o que eu podia fazer era inventar essa mentira disparatada sobre o Lobo Neves que apenas no nome carregava algo que vagamente evocava a ferocidade.

Não sei se explico o ódio que senti contra Escobar naquele momento. Desejei que ele se afogasse na praia do Flamengo, onde costumava nadar quase todos os dias, mesmo com o mar bravio.

– Vou levar isso em conta, respondeu – ainda sorrindo daquele jeito velhaco – e se despediu mais uma vez.

Capítulo ****

UM CUBAS! (II)

Fiquei ali, à porta do teatro, sem ânimo para entrar mas com nenhuma vontade de ir embora. Recordava-me a conversa que tivera com Virgília àquela tarde, quando ela me contou sobre a carta anônima que o marido recebera dias antes alertando-o contra mim. Lembrei o gesto de recuo que ela fez quando, à saída, pousei-lhe um beijo à testa. Era evidente que já se cansara de mim. Pensei também no Bentinho, destinado a criar como seu, sem jamais o saber, o filho que, a se dar crédito ao que dizia o vulgo, o amigo fizera em sua esposa. Um turbilhão de sentimentos mal-costurados bulia dentro mim. Ciúme, desesperança, raiva e autocomiseração formavam um todo indigesto que me mantinha prostrado à entrada do teatro.

Enquanto pensava em tais coisas, pude enxergar num vislumbre, através da porta aberta, Nhá-loló, acompanhada de seu pai, o Damasceno. Lembrou-me o dia em que a conheci, naquele jantar em casa de Sabina, de como seus olhos não se despegaram de mim nem por um instante naquela noite. Próximos a eles, vi também um deputado conhecido, ao lado da esposa, filha do ministro da Justiça. Estavam rodeados por um pequeno ajuntamento de sabujos (Damasceno era um deles). A imagem dos rapapés suscitou em mim a nostalgia daquele velho desvanecimento que me acompanhou até a morte e espertou novamente aquela paixão pela notoriedade que, em última instância, acabaria me matando.

Senti meu ânimo se elevar e até esqueci um instante de Virgília quando finalmente decidi entrar no teatro. Quais eram meus reais sentimentos por ela naquela época? Ainda a amaria? Mesmo hoje, aqui na terceira margem do rio, não saberia dizê-lo. Mas a maneira como meu ânimo retornou assim que avistei Nhá-loló sugeria ao menos que minha atenção já não se depositava exclusivamente em Virgília.

Por que me aborrecera então com as insinuações de Escobar? Obviamente, como homem, não gostava de pensar na ideia de ser derrotado na disputa pelo amor de uma mulher, ainda mais porque não poderia recorrer a soluções drásticas – como desafiar o peralta para um duelo – uma vez que a mulher em questão obviamente não me pertencia. O amor-próprio, nessas horas, dilata-se a ponto do apego e do despeito serem confundidos com ciúme. Não o confirmam as Escrituras? “Vaidade de vaidades, tudo é vaidade”

Mas o que me aborrecia mesmo era o fascínio que um sujeito tão vulgar e mal-nascido como Escobar parecia despertar nas mulheres. Como então Virgília estava cogitando substituir um puro-sangue por um matungo? Ocorreu-me que Virgília podia estar repetindo o lance que resultara no xeque-mate de minhas pretensões matrimoniais anos atrás, quando me substituíra, sem maiores explicações, pelo Lobo Neves. A diferença é que então éramos todos solteiros e a preterição de um pretendente por outro não passava de um capricho feminino socialmente aceitável. Virgília estava agora casada e eu era seu amante. Ao aceitar a possibilidade de me substituir por outro, Virgília demonstrava querer explorar outras vias escusas além daquelas que vínhamos percorrendo. E olha que eu não negava à sua atitude um certo espírito empreendedor; só não me agradava ser eu o negócio a ser sucedido para que ela alcançasse a glória…

Veio-me à memória a expressão de indignação que meu pai bradou quando Virgília me substituiu por Lobo Neves:

– Um Cubas!

Aquela frase penetrou em meu pensamento e continuei repetindo-a mentalmente, enquanto procurava sofregamente o camarote de Nhá-loló.

– Um Cubas!

Convém intercalar o presente capítulo e o anterior entre a terceira e a quarta oração do capítulo XCVIII.

NOTAS SOBRE ESSA NARRATIVA

Dia desses, em uma página do Facebook, alguém que eu não conhecia nem de vista nem de chapéu postou um trecho curto propondo um exercício imaginativo: e se Machado tivesse promovido um encontro entre Capitu e Brás Cubas?
Comecei a tentar imaginar como seria, mas me ocorreu algo melhor: e se o encontro fosse entre Brás e Escobar? A dinâmica entre o bem nascido Brás, típico representante da aristocracia oitocentista e o arrivista Escobar, arquétipo da burguesia da época (melhor descrita no perfil que Brás traça de seu cunhado Cotrim) me pareceu que poderia resultar em uma cena mais interessante.
Ao iniciar minha narrativa de cara deparei-me com uma dificuldade. Os fatos narrados em Memórias Póstumas de Brás Cubas ocorrem entre 1805 e 1869, respectivamente as datas do nascimento e da morte de Brás. Não é possível precisar por quanto tempo e em que período Brás e Virgília viveram o seu relacionamento ilícito, pois Machado não quis dar datas exatas. Sabemos, todavia, que Brás se encontrou com Virgília uma vez mais, anos depois do término do relacionamento de ambos, em 1855 (Capítulo 130). Sabemos também que, àquela altura, ambos já estavam na fase de madureza pela descrição que Brás faz de sua ex-amante (“A primeira vez que pude falar a Virgília, depois da presidência, foi num baile em 1855.
Trazia um soberbo vestido de gorgorão azul, e ostentava às luzes o mesmo par de
ombros de outro tempo. Não era a frescura da primeira idade; ao contrário; mas ainda estava formosa de uma formosura outoniça, realçada pela noite.”). E também porque, na sequência, ele dedica um capítulo todo aos seus cinquenta anos de idade (Capítulo 134)
Já a história de ciúmes de Bentinho ocorre mais tarde: Machado não aponta a data de seu nascimento, mas nos conta que, em 1857, ele tinha 15 anos (de onde se presume que ele tenha nascido em 1842 – vide Capítulo II). Escobar, por sua vez, era três anos mais velho do que ele (vide Capítulo LVI) , tendo nascido, portanto, em 1839. Morreu em 1871 (Capítulo CXXII), aos 32 anos de idade. Pela leitura da obra, cogita-se que a suposta traição de Capitu não ocorreu antes do casamento dela com Bentinho, que se deu em 1865 (Capítulo CI). Assim, o suposto caso de adultério, se ocorreu, se deu entre 1865 e 1871, quando Virgília já teria mais de 60 anos. Portanto, cronologicamente falando, seria impossível que Escobar, por volta de seus 29, 30 anos de idade, pudesse ter algum interesse sexual por Virgília…
Não importa, a riqueza dessas criaturas de Machado de Assis é tão grande que me vi obrigado a cometer a heresia de antecipar os eventos narrados em Dom Casmurro para ajusta-los cronologicamente aos das Memórias Póstumas.
Do ponto de vista do Memórias Póstumas de Brás Cubas, o capítulo que imaginei se passa logo após o aborto espontâneo que Virgília sofrera e o recebimento de uma carta anônima por Lobo Neves entregando o caso amoroso de sua esposa com Brás. O caso dos dois está prestes a terminar, mas naquele momento os amantes não sabem disso. Não obstante, ao final do capítulo XCVI (“A Carta Anônima”), Brás relata que ao beijar Virgília na testa esta recuou, “como se fosse um beijo de defunto”. No capítulo seguinte, ele esclarece: “Há aí, no breve intervalo, entre a boca e a testa antes do beijo e depois do beijo, há aí largo espaço para muita coisa: a contração de um ressentimento, — a ruga da desconfiança, — ou enfim o nariz pálido e sonolento da saciedade… “
Em relação a Dom Casmurro, em minha narrativa Brás encontra Escobar logo após a gravidez de Capitu. Àquela altura do romance, Bentinho já havia iniciado sua estratégia de descrever fatos que, no clímax de suas memórias, mostrar-se-iam como verdadeiras peças acusatórias da traição e supostas provas do relacionamento entre Capitu e Escobar. São assim os Capítulo CV, CVI e CVIII. Em cada um desses capítulos, Bentinho conta uma passagem no qual fica subentendido de forma muito sutil o relacionamento de sua esposa com seu melhor amigo (Capitu só concorda em deixar de expor seus braços em eventos sociais depois que Bentinho diz que Escobar aprovava seu desagrado com esse fato; Capitu está com o olhar perdido no mar, o que leva a Bentinho a desconfiar de algo; na sequência, ela diz que estava “somando uns dinheiros para descobrir certa parcela que não achava”, o que, no final, leva à revelação de que Escobar fazia corretagens com as economias de Capitu e que naquele dia estivera com ela antes de Bentinho chegar; etc.)
Finalmente, o ponto de contato entre ambos não podia deixar de ser o Cotrim, cunhado de Brás Cubas, um self-made man na área do comércio, como Escobar.
Acho que não preciso mencionar que minha narrativa é apenas uma brincadeira pseudoliterária. Nem eu sou escritor e ainda que fosse não teria talento suficiente para reproduzir ou sequer imitar o estilo machadiano. Ninguém o tem, aliás. Na literatura latino-americana, Machado é incomparável. Coloca no bolso escritores como Guimarães Rosa, Borges ou Gabriel García Márquez. Na verdade, só vamos encontrar quem o ombreie na mais alta e estrita esfera da literatura mundial – falo de gente como Shakespeare, Dostoiévski, Faulkner.
Mas, como diria Quincas Borba, “a inveja não é senão uma admiração que luta”… Assim, ao emular um ou dois capítulos das Memórias Póstumas estou apenas tentando demonstrar empiricamente um dos princípios humanitas mais bem elaborados.
Mas tem mais: se a inveja é uma virtude, como queria Quincas Borba, invejar o maior de todos – a ponto de querer interpolar alguns capítulos desnecessários em sua obra-prima – é sublime. Aliás, tenha ou não gostado de minha narrativa, você já a leu. Se gostou, ótimo; se não, paciência. Não é o fim do mundo. “Verdadeiramente há só uma desgraça: é não nascer.”, diria Quincas Borba.
Em 20/06/2018

Machado de Assis – Último Capítulo (excerto)

“Há entre os suicidas um excelente costume, que é não deixar a vida sem dizer o motivo e as circunstâncias que os armam contra ela. Os que se vão calados, raramente é por orgulho; na maior parte dos casos ou não têm tempo, ou não sabem escrever. Costume excelente: em primeiro lugar, é um ato de cortesia, não sendo este mundo um baile, de onde um homem possa esgueirar-se antes do cotilhão; em segundo lugar, a imprensa recolhe e divulga os bilhetes póstumos, e o morto vive ainda um dia ou dois, às vezes uma semana mais.”

A fina ironia de Machado de Assis: parágrafo inicial do conto “Último Capítulo” (in Histórias sem Data, Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1884)

Carlos Drummond de Andrade – A Um Bruxo Com Amor

Em certa casa da Rua Cosme Velho
(que se abre no vazio)
venho visitar-te; e me recebes
na sala trastejada com simplicidade
onde pensamentos idos e vividos
perdem o amarelo
de novo interrogando o céu e a noite.

Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro.
Daí esse cansaço nos gestos e, filtrada,
uma luz que não vem de parte alguma
pois todos os castiçais
estão apagados.

Contas a meia voz
maneiras de amar e de compor os ministérios
e deitá-los abaixo, entre malinas
e bruxelas.
Conheces a fundo
a geologia moral dos Lobo Neves
e essa espécie de olhos derramados
que não foram feitos para ciumentos.

E ficas mirando o ratinho meio cadáver
com a polida, minuciosa curiosidade
de quem saboreia por tabela
o prazer de Fortunato, vivisseccionista amador.
Olhas para a guerra, o murro, a facada
como para uma simples quebra da monotonia universal
e tens no rosto antigo
uma expressão a que não acho nome certo
(das sensações do mundo a mais sutil):
volúpia do aborrecimento?
ou, grande lascivo, do nada?

O vento que rola do Silvestre leva o diálogo,
e o mesmo som do relógio, lento, igual e seco,
tal um pigarro que parece vir do tempo da Stoltz e do gabinete Paraná,
mostra que os homens morreram.
A terra está nua deles.
Contudo, em longe recanto,
a ramagem começa a sussurrar alguma coisa
que não se entende logo
a parece a canção das manhãs novas.
Bem a distingo, ronda clara:
é Flora,
com olhos dotados de um mover particular
entre mavioso e pensativo;
Marcela, a rir com expressão cândida (e outra coisa);
Virgília,
cujos olhos dão a sensação singular de luz úmida;
Mariana, que os tem redondos e namorados;
e Sancha, de olhos intimativos;
e os grandes, de Capitu, abertos como a vaga do mar lá fora,
o mar que fala a mesma linguagem
obscura e nova de D. Severina
e das chinelinhas de alcova de Conceição.
A todas decifrastes íris e braços
e delas disseste a razão última e refolhada
moça, flor mulher flor canção de mulher nova…
E ao pé dessa música dissimulas (ou insinuas, quem sabe)
o turvo grunhir dos porcos, troça concentrada e filosófica
entre loucos que riem de ser loucos
e os que vão à Rua da Misericórdia e não a encontram.
O eflúvio da manhã,
quem o pede ao crepúsculo da tarde?
Uma presença, o clarineta,
vai pé ante pé procurar o remédio,
mas haverá remédio para existir
senão existir?
E, para os dias mais ásperos, além
da cocaína moral dos bons livros?
Que crime cometemos além de viver
e porventura o de amar
não se sabe a quem, mas amar?

Todos os cemitérios se parecem,
e não pousas em nenhum deles, mas onde a dúvida
apalpa o mármore da verdade, a descobrir
a fenda necessária;
onde o diabo joga dama com o destino,
estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro,
que revolves em mim tantos enigmas.

Um som remoto e brando
rompe em meio a embriões e ruínas,
eternas exéquias e aleluias eternas,
e chega ao despistamento de teu pencenê.
O estribeiro Oblivion
bate à porta e chama ao espetáculo
promovido para divertir o planeta Saturno.
Dás volta à chave,
envolves-te na capa,
e qual novo Ariel, sem mais resposta,
sais pela janela, dissolves-te no ar.

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Machado de Assis – Bagatela (excerto)

Machado de Assis – Epitáfios