Ana Martins Marques – de “Livro das Semelhanças”

As casas pertencem aos vizinhos
os países, aos estrangeiros
os filhos são das mulheres
que não quiseram filhos
as viagens são daqueles
que nunca deixaram sua aldeia
como as fotografias por direito pertencem
aos que não saíram na fotografia
– é dos solitários o amor

Wislawa Szymborska – Amor à Primeira Vista

Ambos estão certos
de que uma paixão súbita os uniu.
É bela esta certeza,
mas é ainda mais bela a incerteza.

Acham que por não terem se encontrado antes
nunca havia se passado nada entre eles.
Mas e as ruas, escadas, corredores
nos quais há muito talvez se tenham cruzado?

Queria lhes perguntar,
se não lembram —
numa porta giratória talvez
algum dia face à face?
um “desculpe” em meio à multidão?
uma voz que diz “é engano” ao telefone?

— mas conheço a resposta.

Não, não lembram.

Muito os espantaria saber
que já faz tempo
o acaso brincava com eles.

Ainda não de todo preparado
para se transformar no seu destino
juntava-os e os separava
barrava-lhes o caminho
e abafando o riso
sumia de cena.

Houve marcas, sinais,
que importa se ilegíveis.
Quem sabe três anos atrás
ou terça-feira passada
uma certa folhinha voou
de um ombro ao outro?
Algo foi perdido e recolhido.
Quem sabe se não foi uma bola
nos arbustos da infância?

Houve maçanetas e campainhas
onde a seu tempo
um toque se sobrepunha ao outro.
As malas lado a lado no bagageiro.
Quem sabe numa noite o mesmo sonho
que logo ao despertar esvaneceu.

Porque afinal cada começo
é só continuação
e o livro dos eventos
está sempre aberto ao meio.

          Trad. Regina Przybycien

Luiz Olavo Fontes – Meu Amor de Soslaio

Faz tanto calor no Rio de Janeiro
que é bom sentir essa neve
partir de seu olhar

in http://antoniocicero.blogspot.com.br/2008/07/luiz-olavo-fontes-meu-amor-de-soslaio.html

Adília Lopes – A Propósito das Estrelas

Não sei se me interessei pelo rapaz
por ele se interessar por estrelas
se me interessei por estrelas por me interessar
pelo rapaz hoje quando penso no rapaz
penso em estrelas e quando penso em estrelas
penso no rapaz como me parece
que me vou ocupar com as estrelas
até ao fim dos meus dias parece-me que
não vou deixar de me interessar pelo rapaz
até ao fim dos meus dias
nunca saberei se me interesso por estrelas
se me interesso por um rapaz que se interessa
por estrelas já não me lembro
se vi primeiro as estrelas
se vi primeiro o rapaz
se quando vi o rapaz vi as estrelas 

Gary Snyder – Dezembro em Yase

Naquele Outubro
em que escolheu ser livre
na grama alta e seca junto ao pomar
você disse “quem sabe um dia, talvez daqui a dez anos”.

Terminada a universidade te vi
só mais uma vez. Você estava estranha.
E eu obcecado com um projeto.

Agora se passaram os tais dez anos
e até mais um pouco: eu sempre soube
onde você estava –

Devia ter ido te ver
movido pela esperança de recuperar seu amor.
Você continua solteira.
Mas não fiz nada disso.

Só em sonhos, como esta madrugada,
a intensidade terrível
de nosso amor de garotos
me ocupa de novo a mente, a carne.

Tivemos aquilo que todos
se esforçam tanto para ter;
e abandonamos tudo para trás aos dezenove anos.

Me sinto com mil anos, como se tivesse
vivido muitas vidas.

E talvez nunca descubra
se sou um idiota
ou fiz o que exigia
o meu karma.

Yehuda Amichai – O Corpo é a Causa do Amor

Primeiro o corpo é a causa do amor
depois a fortaleza que o protege
por fim seu cárcere.
E quando o corpo morre, o amor jorra
caudalosamente
como de um caça-níqueis clandestino quebrado
jorram de súbito
com estrondo
todas as moedas de gerações
e gerações entregues à própria sorte.

Yehuda Amichai – Outra Vez o Amor Terminou

Outra vez o amor terminou, como uma boa safra de laranjas,
ou como uma boa temporada de escavações, que extraiu das profundezas
coisas comovidas que buscavam o esquecimento.

Outra vez o amor terminou. E como depois de se demolir
uma casa grande e retirar os escombros, visitamos
o terreno vazio e quadrado e dizemos: como era pequeno
o lugar onde ficava a casa
com tantos andares e tantas pessoas.

E dos vales distantes chega
o som de um trator solitário,
e do passado distante chega o bater
do garfo no prato de porcelana, misturando
e batendo gema de ovo com açúcar para o menino,
e bate e bate.

Konstantinos Kaváfis – A Origem

Consumara-se o prazer ilícito.
Ergueram-se ambos do catre humilde.
À pressa se vestiram, sem falar.
Saíram separados, furtivamente;
e, ao caminhar inquietos pela rua,
como que receavam que algo neles traísse
em que espécie de amor há pouco se deitavam.

Mas quanto assim ganhou a vida do poeta!
Amanhã, depois, anos depois, serão
escritos os versos de que é esta a origem.

trad.: Jorge de Sena

Ricardo Silvestrin – Sem Título

ruas têm coração de pedra
não espere nada do seu amor por elas
a não ser cimento, asfalto
e uma família nova
na casa de um velho conhecido

quando menos se espera
uma rua muda de sentido

Ferreira Gullar – Visita

no dia de
finados ele foi
ao cemitério
porque era o único
lugar do mundo onde
podia estar
perto do filho mas
diante daquele
bloco negro
de pedra
impenetrável
entendeu
que nunca mais
poderia alcançá-lo

      Então
apanhou do chão um
pedaço amarrotado
de papel escreveu
eu te amo filho
pôs em cima do
mármore sob uma
flor
e saiu
soluçando