Paulo Henriques Britto – De “Bonbonnière”

I

A seletividade da memória —
a cor exata da pele, a textura,
o odor de cada côncavo e orifício,
o lábio, a língua, o dente, o plexo

solar, a sola do pé, o suor e a
saliva, a coxa arisca, a dobra escura,
o beijo salobro, o sabor difícil,
a carne assombrada, o esperma perplexo

— falsa perfeição, mero artifício
do tempo, a desmaiar todos os tons
do que destoaria do desejo

como um menino a retirar sem pejo
da caixa que lhe deram os bombons
de que ele abre mão sem nenhum sacrifício.

(…)

IV

Só não dói mais porque não é preciso.
Se fosse o caso, a dor era pior.
Não há nada nisso de extraordinário:

A natureza odeia o desperdício,
tal como o vácuo. Sem tirar nem pôr.
É exatamente a conta necessária,

até que alguma solução se encontre.
O que aliás não acontece nunca.
E isso também é natural. No entanto
há sempre um tralalá, um deus, um bálsamo

pra não perder a esperança e o bonde:
A caixa de bombons. A “Marcha húngara”
de Liszt. Ou Brahms. Um dos dois. Ou não. Tanto
faz. A dor continua. Hoje é sábado.

REPUBLICAÇÃO: poemas publicados no blog originalmente em 16 e 17/01/2017

Paulo Henriques Britto – De “Biographia Literária”

(…)

ii

Não volta mais, aquele voo cego
rumo ao que nunca esteve lá, porém
só surge em pleno ar. E não renego
a rota tonta que segui. Ninguém
se faz em linhas retas. Todo porto
a que se chega é a meta desejada.
E o caminho tomado, por mais torto,
acaba sempre sendo a exata estrada
a dar naquilo que, afinal, se é.
Assim, todo e qualquer passado, até
o que se esqueceria, se pudesse,
vai pouco a pouco virando uma espécie
de bala que se chupa com deleite,
mesmo se azeda. Isso, chupe. Aproveite.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 14/01/2017

Paulo Henriques Britto – De “Duas Bagatelas”

(…)

II

Então viver é isso,
é essa obrigação de ser feliz
a todo custo, mesmo que doa,
de amar alguma coisa, qualquer coisa,
uma causa, um corpo, o papel
em que se escreve,
a mão, a caneta até,
amar até a negação de amar,
mesmo que doa,
então viver é só
esse compromisso com a coisa,
esse contrato, esse cálculo
exato e preciso, esse vicio,
só isso.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 13/01/2017

Paulo Henriques Britto – De “Biographia Literária”

VII

Nada disso foi do jeito que eu quis.
Se fosse como eu quis, não haveria
de ser tão sofrido, tão infeliz.
Mas eu – o eu que sou – eu não seria.

Assim, não me lamento. Até me sinto
como quem tem não o que foi pedido,
e sim o que, guiado pelo instinto,
não pelo querer, teria querido.

O que de mais duro a vida me deu
– que dura mais quanto mais me custou
dele me acostar, e torná-lo meu –

o que não escolhi, mas me escolheu,
é o que, ao fim e ao cabo, mais eu sou.
Não é o eu que eu me quis. Mas sou eu.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 11/01/2017

Paulo Henriques Britto – Balanços

(…)

II

Como saber sem tentar?
Como tentar se é tão fácil
conformar-se de saída
com a ideia de fracasso?

Pois fracassar justifica
o não se ter nem sequer
admitido não querer-se
aquilo que mais se quer.

É um beco sem saída,
mas sempre é melhor que a rua:
mais estreito. Acolhedor.
Vem, entra. A casa é tua.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 10/01/2017

Paulo Henriques Britto – Circular

Neste mesmo instante, em algum lugar,
alguém está pensando a mesma coisa
que você estava prestes a dizer.
Pois é. Esta não é a primeira vez.

Originalidade não tem vez
neste mundo, nem tempo, nem lugar.
O que você fizer não muda coisa
alguma. Perda de tempo dizer

O que quer que você tenha a dizer.
Mesmo parecendo que desta vez
algo de importante vai ter lugar,
não caia nessa: é sempre a mesma coisa.

Sim. Tanto faz dizer coisa com coisa
ou simplesmente se contradizer.
Melhor calar-se para sempre, em vez
de ficar o tempo todo a alugar

todo mundo, sem sair do lugar,
dizendo sempre, sempre, a mesma coisa
que nunca foi necessário dizer.
Como faz este poema. Talvez.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 07/01/2017

Paulo Henriques Britto – De “Cinco Sonetos Frívolos”

(…)

III

Mesmo o mais sólido some
sem deixar nenhum vestígio,
sem nem se ter (como exige o
costume) lhe dado um nome.  

E, como sempre, o sentido —
que se dá a posteriori,
antes que se deteriore
de todo o mal percebido —  

não capta mais que um minúsculo
ângulo do evento único
que só durou um segundo

Entrementes, coisas mais
surgem, somem, num zás-trás,
e agora já é outro o mundo.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 05/01/2017

Paulo Henriques Britto – Mosaico

Os dias a amontoar-se
como se rumo a um sentido,
algo que se assemelhasse
a uma meta, ou um destino,  

mas formando (sem sabê-lo,
claro — o que sabem os dias?)
uma estrutura em relevo,
espécie de marchetaria,  

com padrão indecifrável
(por não seguir um projeto),
mas assim mesmo um resguardo,
um remédio contra o medo  

de nada haver — nem padrão,
nem projeto, nem destino
no mundo, nada senão
o amontoar-se dos dias

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 04/01/2017

Paulo Henriques Britto – De “Biographia Literária”

V

Céu azul. Cores vivas. Você rindo
de alguma coisa ou alguém que está à esquerda
do fotógrafo. É talvez domingo.
É claro que essa sensação de perda

não está na foto, não – não está na imagem
extremamente, absurdamente nítida.
E se fosse menor a claridade,
ou se estivesse sem foco, ou tremida,

ou se fosse em sépia, ou preto e branco,
talvez a foto não doesse tanto?
Você, às gargalhadas. O motivo

você não lembra. A foto é muito boa.
Naquele tempo você ria à toa,
você lembra. Você ainda era vivo.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 03/01/2017

Paulo Henriques Britto – De “Seis Sonetos Soturnos”

I

A qualquer hora, o que se chama vida
pode mudar da água pro vinho. Ou vice-
-versa. Cada palavra proferida —
uma sentença grave, uma tolice —
pode retornar feito um bumerangue
capaz de destruir o que encontrar.
E nada que se funde em carne e sangue
escapa dessas bólides de ar:
o amor e demais estados de graça,
reputações, ações, fazendas, gado,
longos corredores, salas de espera —
tudo à mercê do que afinal não passa
de ar comprimido, aos poucos exalado,
que logo se dissipa na atmosfera.

………………

V

As coisas sempre podem piorar.
Não há limite para o abismo estreito
que se abre justamente no lugar
onde a relação entre causa e efeito
parece indicar que a crosta é mais dura
e é mais remoto o risco da ruptura.

E no entanto, aberta a fenda, uma vez
desmascarada a aparência enganosa
de integridade e estrita solidez,
a mente busca uma saída honrosa
e com algo assim por fim se contenta:
Agora sei onde a corda arrebenta.

Refeita, pois, do golpe, e sem temer mais nada,
expõe um novo flanco à próxima porrada.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 02/01/2017